Repetindo movimentos cotidianos, desço na estação da Sé, centrão de São Paulo. Avisto a catedral, a praça e a multidão. Porém, faço pequena alteração na rota diária. Decido tomar um café fora do ambiente de trabalho. O objetivo é me manter razoavelmente desperto. Olho o visor do celular. Sexta-feira, 25 de março de 2011. São 10h08 quando sinto um toque. Estou na porta da lanchonete para tomar minha dose cavalar de estimulante.
Corte 2 / Apresentação
Com a mão no meu braço, alguém diz: “o senhor poderia me pagar um salgado?”. Automaticamente, me viro e encontro o homem de pele morena, cabelos grisalhos, alto e muito magro. Automaticamente, minha resposta é sim. João Antônio de Melo, 52 anos. Nome de grande escritor, penso. Saiu da Paraíba aos 27, com o tio. Pedreiro, jardineiro, o sonho, idem ao de tantos que vêm do Nordeste, era “fazer a vida” em São Paulo. Chegou em 1984. O tio, Anacleto, morreu sete anos depois, em 1991. “Era meu pai de verdade, meu parceiro, dava incentivo sempre. Sem ele, fiquei perdido”.
Trabalhando na construção civil e limpando piscinas “nas horas vagas”, João se casou, em 1995, com Dolores, pernambucana, dez anos mais nova. Morando em Guarulhos, tiveram quatro filhos: Joana, Miriam, Francisco e Clara. A separação veio em 2001. Dolores se casou novamente, com um primo de segundo grau. “Não fui bom marido, nem mesmo fui tão bom como pai. Ganhava pouco, passei a beber muito. Ela me deixou e meus filhos mal falam comigo. Não tenho mais ninguém aqui”.
Corte 3 / É pauta?
Por que o homem não volta para a terra natal? “Até tentei, fui uma vez, tenho parente vivo lá, mas é tudo diferente de antes, ninguém se dá mais comigo e eu não me dou com ninguém”. Mora no bairro do Belenzinho, na zona leste, num quarto alugado. Trabalha por conta. “Tá difícil pegar serviço fixo. Vim aqui pro centro, num desses postos da prefeitura, tentar trabalho certo”. E? “Disseram que não tem ocupação pra mim porque sou analfabeto. A moça que atende perguntou como eu faria pra escrever um bilhete, usar o computador ou celular pra mandar mensagem pro patrão. Nem sei direito o que é computador e não tenho celular”. Sabia o nome da atendente? “Ela falou, não lembro, mas reconheço”.
Ele procurou o Centro de Apoio ao Trabalho – CAT – e lá teve o tratamento nada cordial. João Antônio estava prestes a virar pauta, podia mesmo se tornar notícia. Era pedir que me levasse até o posto em que foi atendido e reconhecesse a funcionária. Dali seria possível desdobrar algo maior sobre como são recebidos pelo poder público tantos trabalhadores em busca de vagas. “Só quero serviço, moço. É só o que me resta na vida. Mudo pra qualquer lugar da cidade, pra outro quartinho, se conseguir emprego”.
Corte 4 / Não é pauta
Encostado no balcão, peço dois cafés fortes e me dou conta de que nem me importei com a preferência do homem. Ele confirma o café forte. “É bom pra acordar, né?”. Para comer, pede um salgado. “Não quer um lanche?”, indago. “Não senhor, tá bom assim”. Falo para ficar à vontade, pedir o que quiser. Timidamente, ele sorri. Ainda no automático, tomo meu primeiro gole de café amargo. Noto a enorme mochila em suas costas e tento, pretensiosa e preguiçosamente, adivinhar de onde vem. Esforço-me para travar o diálogo que, sabia, seria doloroso. Não poderia a cafeína dissolver minha letargia mental? Não. Só o interesse e a alteridade poderiam. “É de onde, João?”. “Sou de Alagoa Grande”. A pauta se desfazia. Vi apenas um homem que lutava para sobreviver e que não se identificava em lugar nenhum. Em São Paulo ou na Paraíba, entre estranhos ou com os filhos, João Antônio parecia invisível, separado do todo. Aquele café foi minha desburocratização e meu despertar. Pedi um contato a João, que deu o telefone de um vizinho. O homem não é pauta. Somente quer trabalhar.
Moriti Neto é jornalista e colunista do Nota de Rodapé
5 comentários:
Noto que ele não foi procurar um Bolsa Família, ou algum outro Bolsa Voto da vida. Foi procurar um emprego e, em vez de uma orientação e um programa para adequação ao mercado, foi rebaixado a uma condição sub-humana.
Triste realidade.
Muito bom esse texto!
Me dói muito saber que existem tantos como esse senhor... Tantos sem oportunidade...
Bonito é ser bonito assim
Quero essa beleza pra mim
Maravilhas mil para vocês
AnaBH
Ele não foi atrás do Bolsa Família porque, provavelmente, desconhece desse direito. É um direito dele! Parem com isso!
Moriti, belo texto. Chorei, me indignei...
Profundo. Obrigada!
Oi, Thaís. Texto escrito há tempos já. Relembrei por causa do Dia do Trabalho.
Você tem razão, o desconhecimento dos direitos - que é fruto da crise da educação, desmantelada mais fortemente desde a ditadura - é um dos problemas graves deste país.
Obrigado pela leitura e pela emoção. Muito me satisfaz a sua indignação.
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