Eis mais um motivo para usar menos o carro. Se existem valets é porque existe demanda, certo? É uma discussão que, para mim, serve para voltar a falar do transporte público. Algo que vai além do habitual "classe média sofre". O que fazem os flanelinhas, no entanto, é outra questão. Convido-os a leitura da reportagem publicada na Retrato do Brasil, de abril, no texto de Tomás Chiaverini, que aborda a questão dos flanelinhas, que trabalham à margem da lei, atuando nas grandes cidades sob o olhar desconfiado dos motoristas e sem o respaldo do poder público. Para baixar em PDF ou ler abaixo, na íntegra.
Trabalho
SE ESSA RUA FOSSE MINHA
À margem da lei, os flanelinhas atuam nas grandes cidades sob o olhar desconfiado dos motoristas e sem o respaldo do poder público
por Tomás Chiaverini
É noite no bairro boêmio da Vila Madalena, em São Paulo. Um “x” de fita reflexiva laranja sobre a camiseta pólo veste Alemão, 21 anos, que se posta ao lado de uma vaga vazia e espera. Quando percebe algum motorista à procura de vaga, assobia e depois gesticula, ajudando na baliza. Assim que o motorista sai, informa que zelará pelo automóvel até às 2h. Mais tarde, quando o “cliente” volta, corre até perto do carro e espera pelos trocados que lhe garantem o sustento.
À primeira vista, o trabalho de Alemão parece bastante simples. Tão simples que, muitas vezes, nem sequer é visto como uma profissão. Foi esse argumento, por exemplo, que fez com que a prefeitura de Porto Alegre (RS) interrompesse, no início de 2010, um projeto de regulamentação da função de guardadores de carro, iniciado em 2009.
A baixa adesão dos flanelinhas – apenas 70 se cadastraram – foi um dos motivos para a interrupção do projeto. Mas o fator determinante, de acordo com o governo municipal, foi o fato de que os guardadores não colaboram para o aumento da segurança e não há demanda real pelo trabalho que oferecem. Para a Prefeitura de Porto Alegre, portanto, não faz sentido legalizar e fiscalizar um serviço que não deveria existir.
Essa aparente simplicidade esconde, contudo, um sistema complexo e intrincado de um fenômeno presente na maioria das metrópoles do país. Grande parte dos flanelinhas atua sempre na mesma área. Ao longo do tempo, eles descobrem os hábitos dos moradores e do comércio local, tornam-se conhecidos e ganham confiança. Apoiam e recebem apoio dos demais trabalhadores. Inserem-se no ecossistema urbano e frequentemente acabam dominando regiões inteiras da cidade.
Alemão, por exemplo, é praticamente dono da quadra onde trabalha, na rua Mourato Coelho, entre a Inácio Pereira da Rocha e a Aspicuelta, em São Paulo. Seu domínio sobre aquela área específica foi construído ao longo de onze anos. Hoje, ele sabe de cor a rotina de cada morador e conhece bem todos os outros guardadores de carro da região, o que lhe permite atuar com calma e segurança. Numa sexta-feira de fevereiro, a Retrato do Brasil acompanhou o flanelinha durante as cerca de 8 horas que sua noite de trabalho durou.
A jornada começou pouco depois das seis da tarde. Antes disso, ele havia levado cerca de 50 minutos para viajar de ônibus do Taboão da Serra (região metropolitana de São Paulo) a Pinheiros. Veio acompanhado da mãe, Simone, 34 anos, e de dois irmãos – H., de nove anos, e T., um bebê de um ano e meio. Simone faz questão de acompanhar o trabalho do filho mais velho.
“Se eu não vier junto, ele passa a noite bebendo na banca de batida e não trabalha”, diz sorrindo, enquanto chacoalha a criança enrolada numa manta. Atualmente ela não aborda os motoristas, receosa de que a acusem de usar o bebê para sensibilizar os clientes. Apesar do incômodo de trazer o caçula consigo, diz que essa é a única saída. “Melhor na rua, comigo, do que em casa, com uma babá que não conheço, que pode judiar dele”, afirma.
Foi Simone, junto com o ex-marido, que começou a guardar carros por ali, depois de uma temporada como ajudante de cozinha, seguida de alguns meses vendendo cachorro-quente. Alemão aderiu logo à função, aos nove anos de idade. Hoje é o mais antigo e respeitado do grupo, tanto que a reportagem só conseguiu entrevistar os demais flanelinhas após sua autorização.
Assim que chega ao ponto de sempre, Alemão vai até a pizzaria da esquina e pega a faixa refletora e um banquinho de madeira, guardados para ele pelo garçom. Na base da camaradagem, o banheiro do estabelecimento também pode ser usado, mas só quando o dono não está presente. Devidamente equipado, Alemão se posta ao lado do meio-fio, enquanto sua mãe se acomoda no banquinho diante de um estúdio de tatuagens fechado e amamenta o bebê.
Há quatro vagas na guia rebaixada diante do Gelly’s Tattoo. Alemão “aluga” três e a quarta fica reservada para o dono do estabelecimento. Diferentemente da rua, onde os motoristas pagam o que querem, ali o preço é fixo: dez reais. De acordo com a Polícia Militar, estipular valor por vagas em local público ou cobrar antecipadamente é crime de extorsão. Mas, como aquelas estão em propriedade particular, não há problema.
O acordo para usar a garagem, segundo Alemão, foi amigável. Em troca, ele garante que nenhum carro estacione bloqueando a saída, e inibi pichadores e boêmios alcoolizados que queiram aliviar a bexiga no canteiro do estabelecimento.
Já o dono do estúdio, Geleia, conta uma história ligeiramente diferente. “Temos uma relação simbiótica sem muita saída”, explica. Segundo ele, Alemão e a família realmente ajudam a manter a ordem na rua, mas a convivência foi difícil no começo. Havia muita gritaria, as vagas eram usadas sem sua autorização, e traficantes de droga se misturavam aos guardadores. “Tive que dar uma de maluco, sair gritando no meio da madrugada, daí as coisas se ajeitaram. Hoje está tudo bem, mas controlo a situação com mão de ferro”, afirma.
Lobo em pele de flanelinha
Tráfico de drogas, pequenos furtos e contravenções são atividades frequentes nas ruas das grandes cidades brasileiras. A fim de permanecer por longos períodos nos mesmos locais sem chamar atenção, é comum que traficantes e ladrões pés de chinelo busquem algum disfarce, geralmente como moradores de rua e, vez ou outra, como guardadores de carro.
Segundo o secretário-adjunto da Sedest (Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda do Distrito Federal), Daniel Seidel, foi isso que motivou o GDF (Governo do Distrito Federal) a cadastrar os guardadores e lavadores de carro de Brasília.
Segundo ele, havia um grande número de traficantes e ladrões que se disfarçavam de flanelinhas para cometer delitos na cidade. Agora, quem quiser exercer a função no DF precisa, antes de tudo, provar que não possui antecedentes criminais. Depois disso, tem que passar por um curso de capacitação onde recebe noções básicas de cidadania, leis de trânsito e capacitação para realizar o serviço de lavagem a seco. Desde 2009, o programa cadastrou 1.396 guardadores e lavadores, mas, ainda de acordo com Seidel, há muito a ser feito no setor.
Para o secretário, é preciso estipular áreas de atuação, tabelar valores a serem cobrados e impedir que guardadores não credenciados continuem a atuar. Além disso, o GDF pretende capacitar flanelinhas para trabalharem como guias turísticos, principalmente durante a Copa do Mundo de 2014. Por fim, para Seidel, é necessário elaborar um estudo socioeconômico para acompanhar os resultados das iniciativas. Segundo o secretário, as providências para que essas medidas sejam postas em prática já estão em andamento, mas as mudanças efetivas só devem sair do papel em 2012.
Jornada flexível
Em geral, Alemão trabalha de quarta a domingo. Ganha uma média de 40 reais por dia, mas há noites em que chega a faturar até cem. Por mês, recebe cerca de mil reais – dinheiro que nunca conseguiu receber em outros bicos e empregos.
Um pouco depois das 21h, o movimento aumenta nos bares, restaurantes e casas noturnas da Vila Madalena. O trânsito flui lento na quadra de Alemão. Com a cabeça erguida, atento o tempo inteiro, ele corre para ajudar um carro a estacionar, abre a porta para uma moça descer, depois já se adianta para sinalizar outra baliza. “Se a gente não mostrar que está aqui, o pessoal não deixa o nosso na volta”, explica. Diz que em geral recebe dois reais, que tem gente que não dá nada, e outros que dão muito. “Um dia parou um cara com um Porsche Cayenne, me deixou 30 reais e ficou menos de duas horas na vaga”.
Uma mulher estaciona um Citroën C3 na garagem da guia rebaixada e, quando Alemão informa o preço de dez reais, pergunta se pode pagar com cheque. Ele sorri, coça os cabelos oxigenados espetados de gel e diz que só trabalha com dinheiro. Ela ajeita a saia, fala que vai dar um jeito e caminha com o salto alto até o restaurante japonês, na outra quadra. “Sushi”, exclama Alemão. “Esse pessoal adora sushi. Come sushi até não poder mais.”
Por volta das 22h30, o trânsito para. Parece não haver mais vagas, mas Alemão continua encaixando carro atrás de carro, boa parte diante de garagens. Diz que sabe diferenciar os locais onde ainda vão entrar ou sair veículos daqueles que pode usar livremente. Também garante que a CET (Companhia de Engenharia de Tráfico) não multa quem estaciona em guia rebaixada, a não ser que o dono do imóvel ligue para a prefeitura para reclamar. Já a CET afirma que a orientação é para que os fiscais multem todos os carros parados em guia rebaixada, sem distinção.
Às vezes, quando Alemão se distrai, o irmão do meio, H., ajuda no serviço. Mas o garoto passa a maior parte do tempo brincando com um joguinho eletrônico ao lado da mãe. H. continua na escola e não quer seguir a profissão do irmão, que não completou nem o ensino fundamental. Espera ganhar a vida como jogador de futebol.
Enquanto sinaliza assobiando para os motoristas que o ignoram, Alemão diz que, se pudesse, também escolheria outro trabalho. O que faz em si não o incomoda. Mas a função de flanelinha, para ele, é humilhante. “Acham que a gente é tudo noia, maloqueiro, ladrão”, explica.
De olho na lei
A revista sãopaulo, do jornal Folha de S.Paulo, publicou recentemente uma reportagem sobre flanelinhas onde havia um levantamento da Polícia Militar com 134 “pontos críticos” de atuação dos guardadores em São Paulo. A região central é apontada como a mais problemática, com 55 pontos críticos, seguida pela oeste, com 41. Estádios, universidades, shows, bares e restaurantes estão entre os locais onde essa atuação é mais intensa. Na semana seguinte, o jornal fez uma pesquisa pela internet entre seus leitores. Foram mais de 21 mil respostas à pergunta: “Você é a favor dos flanelinhas?”. Ao menos na pesquisa, os números não deixam dúvida quanto ao baixo prestígio destes profissionais: 81% responderam que não, e apenas 2% que sim. Do restante, 2% disseram que depende: “só se eles não exigirem pagamento antecipado”; e outros 14% disseram que também depende, “se eles forem cadastrados pelo sindicato da categoria”.
Aos 51 anos, Marinaldo Oliveira da Silva conhece de perto as agruras da profissão. Filho e neto de flanelinhas, ele começou a cuidar de carros aos 16. Hoje é presidente do Sindiglaasp (Sindicato dos Guardadores e Lavadores Autônomos de Veículos Automotores do Estado de São Paulo). A entidade tem sede no centro da cidade e mantém um site na internet, mas possui pouca capacidade de atuação. Não há como sindicalizar trabalhadores de uma profissão que não é reconhecida pelo poder público.
Em 1977, o então presidente Ernesto Geisel publicou um decreto regulamentando a função de “guardador e lavador de veículos automotores” em todo o país. Segundo o texto, supostamente ainda em vigor, podem ser registrados flanelinhas que não tenham antecedentes criminais e que estejam em dia com as obrigações eleitorais e com o serviço militar. Na prática, contudo, essa lei nunca saiu do papel, e a função continua marginalizada.
Hoje, as esperanças de Marinaldo recaem sobre uma ação do Ministério Público de São Paulo, que, motivado por queixas de cidadãos quanto ao abuso de flanelinhas, abriu um inquérito para investigar o assunto. O objetivo é avaliar a atuação da prefeitura paulista e da Polícia Militar, e cobrar uma solução para o problema. “Do jeito que está não pode continuar”, afirma o promotor Raul de Godoy Filho. “Ou regulamenta a profissão, ou acaba com a atuação ilegal”. Diante da iniciativa do MP, a Prefeitura afirma que montou um grupo de trabalho para investigar a questão, mas que não irá se pronunciar até ter dados concretos.
A Polícia Militar não soube designar alguém para falar sobre o assunto e respondeu por nota. Sem mencionar o inquérito, afirmou que, na atuação dos guardadores, “além da extorsão, dependendo da conduta podem ser caracterizados os crimes de dano, furto, roubo, constrangimento ilegal ou ameaça”. Ainda segundo a PM, “a ação dos flanelinhas representa um sério problema à sociedade”. A corporação informou também que faz operações específicas para prevenir tais crimes, mas que é raro as pessoas darem queixa contra guardadores, o que dificulta o trabalho da polícia.
Já segundo Marinaldo, a polícia muitas vezes atrapalha o trabalho dos cerca de 15 mil flanelinhas que, de acordo com ele, atuam na cidade. Para o presidente do Sindiglaasp, os maiores problemas com a polícia ocorrem no entorno de estádios, onde os guardadores frequentemente acabam detidos para averiguação. “Quando o cliente volta, acha que o flanelinha pegou o dinheiro adiantado e se mandou, mas na verdade ele pode estar preso”, afirma.
Para quem se arrisca a estacionar diante do estádio em dia de jogo, as ações da PM certamente não parecem descabidas. Talvez não haja local da cidade onde a atuação dos guardadores de carro seja tão acintosa, às vezes até violenta. Eles são muitos, chegam a centenas, de acordo com a polícia, e disputam os motoristas numa batalha ferrenha.
Nas ruas ao redor do estádio Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, mesmo quem não pretende estacionar tem que estar sempre atento, a fim de não abalroar os vários guardadores que se jogam diante do carro, gritando e agitando os braços – intervenções que contribuem para agravar os congestionamentos antes dos jogos. “Se não for assim, não tem jeito de ganhar freguês”, afirma um flanelinha que, como todos os outros abordados na região, preferiu não se identificar.
Tranquilo, mas nem tanto
“Guardar carro em estádio é coisa de louco, eu, hein!”, exclama Alemão, que uma vez se arriscou a trabalhar durante um jogo junto com um amigo, mas foi expulso aos sopapos por flanelinhas locais. Na sua vizinhança, tudo parece mais calmo. Se bem que ali, vez ou outra, também espocam algumas desavenças.
Pouco depois das 23h, Alemão é chamado às pressas até a quadra de cima. Quando chega por lá, dois dos seus colegas se atracam no meio da rua, um acusando o outro de ficar com mais dinheiro. Alemão separa a briga e depois de alguns instantes de conversa tensa o entrevero se desfaz, com o prejuízo de uma camiseta rasgada, apenas. Para acalmar os nervos e manter o ânimo da noite, o guardador descola uma batida de limão com uma garota, também do Taboão, que vende bebidas numa mesa improvisada sobre o porta-malas de um Gol branco, caindo aos pedaços de velho.
Quando volta para a frente do estúdio de tatuagem, o trânsito está parado e todas as trinta vagas de que dispõe estão ocupadas. Combate o tédio ouvindo axé no alto-falante estridente do celular.
Por volta das 23h30, o manobrista de um estacionamento particular, o chamado valet, estaciona um Astra preto na vaga do dono do estúdio de tatuagem e entrega as chaves a Alemão. É um acordo entre eles: o flanelinha reserva um lugar para o manobrista que, em troca, sempre deixa um carro bem bacana destrancado. Assim, Simone pode colocar o bebê para dormir no banco de couro e descansar um pouco os braços. H. também aproveita a mordomia, e se aboleta com seu joguinho eletrônico no assento do passageiro.
Pouco depois da meia-noite, H. ganha dois pedaços de pizza muçarela do garçom da pizzaria. Enquanto o garoto devora o jantar tardio, no trânsito, cinco garotas gritam e pulam dentro de um carro ao som de Lady Gaga. Dois rapazes num Golf vermelho de rodas customizadas emparelham ao lado delas. Com o tráfego parado, conversam por alguns instantes. Quando o semáforo abre, ambos os automóveis estacionam na guia rebaixada de Alemão, que assiste à distância.
Todos desembarcam, menos uma das meninas, que permanece no banco traseiro. As outras conversam com os dois rapazes até que um deles mergulha no carro das garotas e abraça a moça que havia permanecido lá dentro. Enquanto os dois se beijam, as amigas explicam que aquela é a noite de despedida de solteira da garota do banco de trás. Após algum tempo, uma das moças coloca a cabeça para dentro e diz: “Agora chega, Rê, vamos embora”. O rapaz sai do carro cambaleante. “Se contar, ninguém acredita”, comenta com Alemão antes de entrar novamente no Golf e seguir para a noitada.
Já é madrugada e o trânsito flui, as vagas seguem ocupadas e não há muito a fazer a não ser esperar. De tempos em tempos, quando algum motorista volta, Alemão corre para receber os trocados e gesticula ajudando na manobra. Mas, na maior parte do tempo, não há nada a fazer. O tédio é parte da profissão. Vez ou outra há, claro, momentos de emoção, que Alemão relembra empolgado.
Diz ter percebido uma vez que duas pessoas haviam arrombado um carro do qual estava tomando conta. Não havia tempo de chamar a polícia e, com os joelhos tremendo de medo, o guardador, à época com 15 anos, se aproximou devagar, enquanto os sujeitos reviravam o porta-luvas. “Estava morrendo de medo, mas dei uma ideia nos caras, disse que estava cuidado do carro e que se eles roubassem a coisa ia ficar ruim pra mim”. Os sujeitos ainda continuaram vasculhando o veículo por um tempo, mas depois saíram sem levar nada, nem o tocador de CD. “Ó, a gente só vai deixar isso aí porque você não chamou a polícia”, teriam dito, antes de irem embora.
Mas, ainda segundo Alemão, nem sempre é possível impedir furtos e pequenos acidentes. Já houve casos de carros cuidados por ele que acabaram com retrovisor quebrado ou aparelhos de som furtados. “Daí é esperar o cliente e ouvir a dura, fazer o que, né?”.
Profissão de risco
Assim como Alemão, Adriano trabalha sempre na mesma quadra, mas no bairro das Perdizes, em frente à PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica). Hoje com 43 anos, passou mais de três décadas na função, o que lhe tornou conhecido e permite até que receba mensalmente para reservar vagas da rua para os moradores do entorno. O “aluguel” custa cerca de cem reais, e Adriano garante que seus serviços valem a pena. Cadastrado como vigia pela Polícia Civil, diz que cansou de impedir assaltos na região e conta que chegou a ser baleado para defender o carro de um cliente. “Levei três tiros no peito e ainda tenho uma bala dentro do pulmão”, diz.
Maria Stela Graciani, pedagoga da PUC, diz que os flanelinhas contribuem para a diminuição dos roubos de veículos no entorno da faculdade. Ela trabalhou durante 30 anos num projeto de convívio, atividades lúdicas e alfabetização com os guardadores da região.
Quando o programa teve início, a maioria dos flanelinhas era composta por crianças de 7 a 12 anos. Hoje, muitos deles conseguiram outros empregos, principalmente como taxistas ou manobristas. Dos cerca de 40 guardadores que passaram pelo programa, apenas três permanecem na mesma função. Adriano é um deles. Tem outro emprego, como porteiro, durante a noite. Mas só com o salário não dá conta de sustentar a esposa e os quatro filhos.
Para Graciani, que possui mestrado em Ciências Sociais, a regulamentação da profissão de guardador seria bem-vinda, pois, ainda que conhecidos da vizinhança e atuando na mesma região, eles sofrem preconceito. “Todo começo de ano há algum problema com calouros que não querem pagar ou acham que seus carros vão ser vandalizados”, explica. Mas, com o tempo, eles acabam se acostumando. “Atualmente a rua não é mais pública, pelo menos não no entorno de locais como universidades, teatros e estádios – regiões que foram mapeadas, não só por flanelinhas, mas por pedintes, ambulantes e toda a sorte de trabalhadores informais”, argumenta.
A regulamentação, ainda segundo a professora, também poderia ajudar a levar benefícios sociais para os guardadores, como fundo de garantia, férias, décimo terceiro e assim por diante.
Além disso, afirma que uma proibição legal dificilmente resolverá o problema enquanto não houver condições plenas de emprego no país. “Flanelinhas vão existir independentemente de leis e instituições. São pessoas que precisam sobreviver, subsistir”, diz.
Fim de noite
Pouco antes das 2h, um carro estaciona na vaga diante do estúdio de tatuagem. Um casal desce, Alemão se aproxima, informa o preço e pede o pagamento adiantado. Garante que permanecerá por ali até às 4h, mesmo sabendo que seu horário está prestes a vencer.
Pouco depois, mais seis guardadores se aproximam. Um deles estende um copo descartável a Alemão. Ele dá uns dois goles e abre um sorriso: “Tem que esquentar pra balada, né?”. Enquanto os amigos conversam combinando onde será o fim da noite, Simone junta seus pertences espalhados no banco traseiro do Vectra e enrola o bebê no cobertor. Depois se despede do filho mais velho e pede que tenha cuidado, antes de descer a rua acompanhada de H.
Caminhará até o Largo da Batata, em Pinheiros, onde tomará o último ônibus para o Taboão da Serra. Como mora em uma região muito violenta, o marido estará à sua espera no ponto, às margens da rodovia Régis Bittencourt. Com ela, Simone leva 60 dos 80 reais que o filho faturou naquela noite. É uma maneira de garantir que o rapaz não gaste tudo na diversão.
Assim que Simone se despede, os sete flanelinhas se livram dos coletes e faixas reflexivas e rumam para o Pancadão, uma boate de funk próxima. Quase todas as vagas de Alemão ainda estão ocupadas.
Um comentário:
Matéria muito boa!
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