Passou tanto tempo que
já não me lembro de como eram tuas mãos,
embora me recorde, perfeitamente, que eram lindas;
E agora tenho medo de que ao voltar a vê-las
elas já não me pareçam tão encantadoras.
Se isso acontecer, saberei que
não foram elas que mudaram, mas eu
H.M.S, em “Cartas Inéditas”
“Se olho para trás e tento recordar os acontecimentos que vivi, os passos que me trouxeram até aqui, nunca estou completamente seguro de se estou rememorando ou inventando (…) O que já aconteceu e o que está por vir, na minha cabeça, são apenas conjecturas”, escreveu o colombiano Héctor Abad Faciolince em seu livro “Traiciones de la Memoria”.
Faciolince tem total razão: a memória é ficção, talvez a maior e mais bem construída de todas. E está viva. E é mutável. (As lembranças que tenho hoje da minha infância são diferentes das de dez anos atrás, e em dez anos seguramente serão outras.)
No filme “O segredo dos seus olhos”, o jovem viúvo que teve a mulher assassinada lamenta que, passado um ano da morte, começa a se esquecer de como era sua esposa. “Tenho que fazer esforço para recordar dela todo dia, dia e noite”. E comenta que já não se lembra se o último chá que ela lhe preparou era com limão ou com mel. “Então começo a duvidar, e já não sei se isso que vai ficando é uma recordação ou a recordação de uma recordação”, sentencia.
Se a vida é o original, a memória é a cópia, diz Faciolince. E agora divago eu: só que a cópia vai perdendo a cor, sofre a ação do tempo, amarela, fica menos nítida, e não raro perde mesmo algumas folhas. É preciso então fazer nova cópia, que não é feita a partir do original (porque esse já não se sabe onde está), mas da cópia. Até que chega um tempo em que a sucessão das cópias faz com que reste bem pouco do conteúdo daquela matriz. A recordação da recordação vira uma cópia bem pouco precisa do original.
Ainda assim e mesmo sabendo que seremos um dia vencidos, lutamos contra o esquecimento. Tratamos de preencher os vazios da memória com a ficção. Romantizamos, distorcemos, criamos, mentimos a nós mesmos, e assim construímos o que somos. “Ya somos el olvido que seremos”, dizia o poema de Borges achado no bolso da jaqueta do pai de Faciolince no dia em que foi assassinado. Vinte anos depois, o escritor contou a história do seu pai e a desse poema, e diz que o fez para que ela não caísse no esquecimento.
Ricardo Viel, jornalista, escreve de Lisboa, Portugal
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