Desabrigados pelas enchentes desde 2010, moradores de alojamento improvisado em Atibaia (SP) sofrem, seguidamente, com descaso do Poder Público
Pela quinta vez, o Nota de Rodapé chega ao Campo do Santa Clara, no bairro do Caetetuba, periferia de Atibaia. Nesta visita à cidade interiorana, localizada a 60 quilômetros de São Paulo, encontramos Elisa da Fonseca, Josefa Ferreira da Silva, Eliane Aparecida Narciso e Regiane Aparecida Narciso. Quatro mulheres e um mesmo lugar. Nomes e documentos diferentes, mas situação de abandono e preconceito comum desde as enchentes que atingiram o município nos verões de 2010 e 2011.
Como tantos outros, elas são ex-moradoras da rua dos Pires, na Vila São José, bairro próximo e uma das áreas mais pobres da região bragantina. Todas tiveram as casas demolidas e queimadas pela Prefeitura em janeiro de 2010. De acordo com os números oficiais, atualmente são 32 famílias habitando o outrora campo de futebol.
Ali os moradores já foram enlatados em contêineres e quase entraram num alojamento com o venenoso amianto sob as cabeças, como denunciou este NR.
Além disso, até hoje estão nas precárias casas de madeirite do abrigo improvisado, recebem valores exorbitantes nas cobranças de água e luz, e ainda convivem com a truculência policial.
Eliane, que mora com cinco filhos no local, tenta proteger a família tanto da influência do tráfico de drogas quanto da agressividade e discriminação da polícia. “Eu nem trabalho, pois não posso largar eles aqui, não tem nada pra fazer. Se deixar, eles vão se envolver mesmo. É o que tem pra eles”, diz.
Com o poder dos traficantes, ela pouco pode fazer para cuidar da família. Fora isso, tem que enfrentar ações policiais que criminalizam a população do lugar e já até “profetizaram” o destino de dois de seus filhos. “Um policial da Rota falou pra mim assim: ‘esse bebê que está no seu colo, daqui a alguns dias já vai estar no meio das drogas e a de 11 anos vai estar vendendo’, contou.
“A Polícia Militar, o pessoal da Rota, da Força Tática, quer que a gente denuncie traficante, mas eles vêm aqui pra prender um ou outro e vão embora. Nós vamos continuar morando. Como fica a segurança se a gente entrega alguém?”, pergunta Eliane.
Elisa também vivenciou a condição de criminalidade ser estendida para toda e qualquer pessoa que viva no campo. A unidade do alojamento em que mora com o marido e a filha foi invadida por uma operação policial. A suspeita da PM era que a casa fosse “ponto de drogas”. A moradora lembra que foi vigiada por 15 dias até que cinco viaturas a cercaram na porta de casa. “Pensaram que eu ia sair correndo”, explica a senhora, hoje aposentada e que tem sérios problemas na coluna.
Violência e precariedade
Josefa Ferreira da Silva, conhecida no bairro como Julia, instalou, na parte do abrigo em que mora com o marido, uma mercearia. “A gente precisa de renda. Dá pra ganhar uns trocados aqui, né?”, comenta. O pequeno comércio acabou por se tornar ponto de encontro, principalmente para as mulheres que têm a precaução de vigiar os filhos.
A partir da esquerda: Eliane, Elisa, “Julia” e Regiane (Foto de Mayra Bondança) |
Segundo Julia, o abrigo, com a forte presença do tráfico, violência da polícia e precariedade estrutural, é “um pedacinho do inferno”. “Ficamos no meio do fogo cruzado, pois as casas são procuradas por gente que se esconde da polícia. Aí a PM entra sem pedir licença, acusando que a gente protege bandido”.
Não bastasse o que se vive de dificuldades de habitação, já que as casas, entre outros problemas, têm telhados que se assemelham a papelão – não suportam chuva e esquentam absurdamente expostos ao sol – e infestações de ratos que abalam as estruturas frágeis das casas, fazendo ceder pisos e abrindo buracos nas paredes, o preconceito com a comunidade alojada no Campo do Santa Clara vai além da polícia.
Regiane Aparecida Narciso, irmã de Eliane, foi vítima de discriminação quando buscava trabalho em Atibaia. Candidata a uma vaga no Supermercado Extra, situado em área central, chegou antes da hora marcada para a entrevista. “Meia hora depois, chegou outra moça. A pessoa que ia atender a gente perguntou onde cada uma morava. Quando eu disse Campo do Santa Clara, chamaram a outra pra fazer entrevista antes de mim, no meu horário marcado. Depois, avisaram que a vaga tinha sido preenchida. Mal falaram comigo”, revela. Grávida do quinto filho, ela segue desempregada.
Os exemplos de acontecimentos como esse parecem comuns. A juventude do alojamento está entre os que mais sofrem. “Meu filho de 15 anos também já passou por isso. Os meninos procuram trabalho, mas o pessoal não emprega, fala que tem medo. Tem preconceito sim. Gente que poderia dar oportunidade diz que não ajuda porque não conhece o tipo de gente que mora aqui”, aponta Eliane.
Até quando?
Durante bastante tempo, os moradores escutaram da Prefeitura que o prazo para sair do alojamento seria de dois anos, a contar de fevereiro de 2010, quando a obra do alojamento se iniciou. Na época, uma placa colocada no campo pelo Poder Público mostrava o mês, mas indicava uma data inusitada.
Vista dos prédios do futuro conjunto habitacional (Foto de Moriti Neto) |
A preocupação de Eliane é baseada não só nos comentários. Numa visita ao futuro conjunto, é fácil notar que a construção está em estágio que necessita da finalização de diversos itens. Os sete prédios, com 24 apartamentos cada, estão erguidos, mas não há qualquer sinal do acabamento no trabalho dos poucos operários que tocam a obra. Água e esgoto ainda não têm as instalações concluídas. Tudo indica que os dias no “inferno” estão longe de terminar.
Moriti Neto, jornalista, mantém a coluna mensal Escarafunchar
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