por Ricardo Sangiovanni*
Já chegou segunda e ainda não tenho nada concreto pensado a lhes dizer sobre o único assunto da semana digno dessa crônica.
Mas se não tenho nada concreto pensado sobre o que anda se passando, é menos por dificuldade de organizar o pensamento, e mais por dificuldade de entender com a devida precisão o que anda se passando.
Não será contudo por isso que deixarei o blog em branco – não é hora de deixar o blog em branco. Irei portanto enumerando alguns temas e alguma reflexão inicial sobre eles, convidando a todos de antemão ao debate, que é o único instrumento capaz de nos levar ao melhor entendimento, à melhor opinião, à melhor expressão do que cada um de nós leva no espírito.
1. De que protestos falamos? Parece que as manifestações de rua chegam ao final desta semana já são bem diferentes daquelas que começaram há duas semanas atrás. Protestar claramente contra o aumento do preço da passagem do transporte público – primeiro em São Paulo, em seguida em outras praças, mas sempre em torno da mesma demanda imediata (redução do preço já), da mesma agenda (vamos debater o modelo de transporte público), da mesma ideologia (o estado deve ser antetudo agente de pressão do empresariado a prestar serviços de qualidade que atendam às demandas dos cidadãos, e não o contrário) – me pareceu algo digno do maior apoio. Já protestar difusamente contra todo e qualquer problema, real ou irreal, visível ou invisível, palpável ou impalpável, de imediato ou de prolongado remédio, direcionando todas essas demandas, ainda que justas, a uma raiva desmedida da política em si, do Estado em si, tem-me parecido coisa difícil de apoiar.
2. A quem esse tipo de protesto interessa? Não tenho como afirmar que a maior parte das pessoas que estão na rua esteja protestando desse jeito amorfo e difuso. Tampouco afirmaria que, ainda que amorfas e difusas, as demandas de qualquer pessoa que esteja na rua sejam infundadas ou injustificadas – viver no Brasil é difícil mesmo, cada um sabe de si. Entretanto, a soma de protestos inconscientes de sua natureza mais profunda – de sua natureza ideológica – é que me parece a coisa perigosa. Perigosa porque basta que alguém, pessoa ou grupo, consiga pilotar a indignação popular, para que as demandas originais – a ideologia original – seja subvertida. De maneira que ir às ruas “para dizer que sou brasileiro”, convocar as pessoas para “mudar o Brasil”, animar-se porque “o gigante acordou”, dizer-se revoltado “contra isso tudo que está aí” significa menos ajudar a obter a universalização da cidadania no país (esse nosso mais grave problema) e mais abrir espaço para projetos de apropriação das instituições para finalidades completamente opostas a essa – já volto a essa questão.
3. É demais imaginar que possa estar-se desenhando um golpe? Infelizmente, acho que não. Porque à medida em que cresce o movimento de descredibilização da política, dos partidos, do governo em si – descredibilização essa embasada no simples fato de que a política, os partidos, o governo existem – cresce o risco de que as manifestações se traduzam em caos social incontrolável aos olhos de quem detém as armas, a força, o porrete. Ou seja: mesmo que não haja um golpe milimetricamente arquitetado em curso, criar um clima de ódio da política pode servir muito bem a quem deseje a supressão da agitação popular por um golpe mais duro de força, um golpe que, por um suposto bem da paz nas ruas, poderia atentar contra a institucionalidade democrática – coisa que o Brasil levou tanto tempo e tanta porrada para conquistar. Afinal, se nossa democracia tem problemas, esses talvez sejam menos decorrência do sistema, e mais da expressão da luta de classes que se faz através dele. Me parece difícil acreditar simplesmente que, se o modelo institucional fosse outro, e os atores esses mesmos, teríamos as transformações severas de que o Brasil precisa.
4. É hora de sair das ruas? Questão complicada. A princípio responderia que não, porque é sempre possível disputar na própria rua a escolha que cada pessoa fará do direcionamento a ser dado à sua indignação. E também por acreditar que a maioria das pessoas que está protestando estaria sim propensa a direcionar sua indignação a demandas claras de democratização acelerada da condição cidadã – como era, por exemplo, a dos 0,20 do Passe Livre, um rótulo excelente para aglutinar pessoas e pautar uma discussão mais ampla, de um novo modelo de transporte público. Mas interponho a esse meu entusiasmo um problema: será que essa disputa pode ser de fato ganha nas ruas na atual circunstância, tendo em vista a quantidade de atores/grupos sociais que já entrou na concorrência pelo direcionamento e pelos resultados de uma mesma revolta popular? Será que, dado o atual grau de agitação, o chamado a se batalhar por coisas claras (algo que demanda pesquisa, conversa, entendimento, coisas que levam tempo e requerem um investimento que muita gente não sabe ou não quer fazer) tem condições de enfrentar o facilismo da argumentação “pelo Brasil”, “contra os políticos”, “contra o governo”, “contra tudo que está aí”? Gostaria de crer que sim, mas não creio. Talvez, entre sair ou ficar nas ruas, a alternativa seja continuar a se reunir gente na rua, porém começando a tentar formar, ainda que na própria rua, grupos com nome e cara, a separar de forma mais evidente quem é quem nos protestos, a procurar saber ao lado de quem está se protestando, pelo que se está protestando, onde se está protestando, quais são as ideias que se somam de fato ao que se tem como alvo de protesto.
5. A repressão policial. Apenas para repisar que segue vergonhosa. Porque não consegue distinguir protesto de verdade de vandalismo picareta, e quase sempre massacra mais quem se manifesta por alguma razão justa. Porque, afinal, essas são as pessoas mais frágeis, seus inimigos mais antigos: a gente pobre comum, historicamente massacrada.
6. Sobre as redes sociais. Muita gente tem falado que as redes sociais são a grande diferença dessas manifestações, já vi “especialista” por aí dizendo que “chegou a hora do pessoal que ficava debatendo e se manifestando virtualmente ir se manifestar na rua”. O problema é que não consigo ver nas redes todo esse debate. Pela rede se consegue sim agendar atos públicos, se consegue aglutinar quem pensa de forma parecida, mas a regra até agora não tem sido o debate de fato, a polêmica, o amadurecimento de ideias. Nas redes sociais me parecem ainda ser predominantes os desaguadouros de posicionamentos que não precisam necessariamente de debate, porque, quando encontram as portas fechadas em um grupo, correm para outro onde sejam mais amplamente aceitos. Outro cuidado que temos que ter é de não misturar a horizontalidade do movimento Passe Livre – uma forma convencionada entre os integrantes do movimento, uma decisão coletiva e política – com a suposta horizontalidade de toda e qualquer manifestação marcada pelas redes. Rede social não é sinônimo de horizontalidade e falta de liderança. Quem marca cada protesto? Os perfis são todos verdadeiros? Dizer/escrever o que pensa significa pensar com a própria cabeça? São perguntas que me faço.
7. A mídia nessa história. Retomando o ponto 2, um dos grupos a quem interessa pilotar essa onda de manifestações que sou capaz de individualizar é certamente a mídia. A mídia quer dizer os quatro ou cinco grandes grupos familiares de comunicação do país e, com nuances, seus sucedâneos nos Estados a fora. Grupos que, por sua vez, representam, diretamente ou por solidariedade ideológica, a classe empresarial (ou a parte dela) preocupada em manter a atual repartição do bolo nacional de privilégios. De maneira que me parece muito estranho que a reação raivosa da mídia contra as manifestações pela redução da passagem, semana passada, tenham se tornado tão rapidamente apoio entusiasmado – até incitação, em alguns casos – à continuidade dos protestos “contra os governos”. Tudo se torna muito esquisito quanto William Bonner aparece dando dicas de como se diferenciar dos “vândalos” nas manifestações, dicas as quais ele teria visto circulando por aí, nas redes sociais. Mais estranho ainda quando a Globonews encerra seus noticiários com o hino nacional, homenageando as manifestações. Quando os grandes veículos de comunicação brasileiros se viram diretamente implicados como alvos da revolta popular – após seus editoriais contrários às manifestações, defendendo a repressão policial há duas semanas – , tiveram a sacada magistral e oportunista de passarem rapidamente a se posicionar a favor dos manifestos. Desse modo, a mídia conseguiu retornar ao papel que lhe é mais conveniente ocupar aos olhos do espectador: o de suposta “refletidora” e “debatedora” do que está se passando no mundo, nas ruas, como se não estivesse ela mesma implicada nesse cenário e no que leva as pessoas a se manifestarem. E assim, excluindo-se do contexto social, a mídia exclui também (por solidariedade de classe, já sabemos) toda a classe empresarial brasileira do tabuleiro dos manifestos. Como se o que estivesse em jogo fosse uma revolta do povo apenas contra os governos, contra os partidos, contra os políticos. Como se esses governos, políticos e partidos fossem corruptos sozinhos, como se não houvesse uma classe empresarial corrupta/corruptora por detrás deles, pressionando-os a continuarem a ser corruptos, a continuarem a utilizar o poder que recebem do povo para manter privilégios. De maneira que não adiantará muito pressionar os governos, mudar ou depor os governos, recomeçar a democracia no Brasil, sem questionar o papel do alto empresariado – do capital, me perdoe quem não gosta dessa terminologia – numa suposta reconstrução desse sistema. No fundo, esses grupos – entre os quais a mídia – sabem que, qualquer que seja o resultado de uma rebelião popular sem consciência da velha luta de classes em questão, toda reconstrução que advir daí não prescindirá deles.
8. Do preço do ônibus ao fora Dilma. Tento há dias recuperar a conexão lógica entre essas duas pontas. Não consigo. Vá lá que a postura de Haddad em São Paulo tenha sido vexatória no episódio do preço das passagens. Mas a velocidade com que se virou o leme das manifestações é tremenda. E, infelizmente, não me parece que seja resultado da luta de esquerda contra os erros do PT e do governo Dilma. Na falta de argumento que me convença do contrário, entendo que os protestos chegaram ao ponto em que chegaram porque alguns setores descontentes com o governo viram neles uma oportunidade de tirar proveito da situação. Lembremos que Dilma, apesar de toda crítica que possamos (e devamos) fazer a seu governo, mexeu recentemente com os bancos, reduzindo as taxas de juros; mexeu com as energéticas, baixando as contas de luz; mexeu com o PMDB, ao pressionar que 100% dos royalties do petróleo vão para a educação; enfrenta resistência na MP dos Portos; enfrenta uma campanha pela volta da inflação, o que ressuscitaria o PSDB para as eleições de 2014. Enfim: se os que estão à esquerda do governo não estão contentes, os que estão à direita estão menos contentes ainda. E as alternativas que eles oferecem não são nada animadoras.
9. Por falar em inflação, vou aproveitar para contar um caso, e já encerro este bolodório. Estive nesta semana na Ceasa de Campinas, um dos maiores centros de distribuição de alimentos do país. Me parou um senhorzinho, que há décadas vende tomates na feira. Falou assim: p"or que é que, quando tem pouco tomate para vender e sai na televisão que o preço do tomate disparou, chove gente aqui para fazer reportagem de que o tomate está caro; e agora, quando sobra tomate e o preço vai lá para baixo, não aparece ninguém para fazer matéria?” Me disse isso na frente de pilhas e pilhas de caixas de tomates não vendidos.
10. Em qualquer desses pontos, por favor me corrija quem tiver informação ou reflexão de melhor qualidade.
*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.
3 comentários:
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Revelação
Deivid convidou Manuella pelo seu iPad
que convidou Giullia que usou seu iPhone pra convidar
Lucca que tuitou Catharina que postou pra Mário Augusto
que não convidou ninguém.
Deivid foi pra Assembleia, Manuella pro Supremo,
Giullia foi ferida por bala de borracha, Lucca foi pra delegacia,Catharina depredou Niemeyer e Mário Augusto
foi a pé pra casa com José da Silva
que teve o ônibus incendiado quando voltava do trabalho
e não tinha entrado na história.
tomei por empréstimo de Drummond – e fiz algumas alterações...)
Mário Nhardes
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Ótimas reflexões, Ricardo.
A questão do empresariado, do que deve ser cobrado do setor privado - que é sempre poupado enquanto se demoniza o Estado - é fundamental.
Estive, neste final de semana, pensando justamente em escrever sobre isso. Não preciso mais, você já disse tudo. Parabéns.
Beleza, Moriti, que bom que gostou :) abração
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