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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Um abraço para outro



por Ricardo Viel*

 Un día, todos los elefantes se reunirán para olvidar. Todos, menos uno (Rafael Courtoise)

Não sei se era por educação, mas acabara de dizer ao garçom português, em um simpático portunhol, que aquele era o melhor bacalhau que comera na vida. Então me olhou demoradamente, mais do que o usual quando já se conhece a companhia de almoço, e pareceu duvidar de dizer algo. Por fim, tomou um gole da água e, como quem comenta sobre o clima, disse: sabe, você se parece muito a um amigo meu de muito tempo, da época do sindicato. E seguiu: você deve ser um pouco mais velho do que ele na época em que éramos amigos. Sou mais velho do que pareço, interrompi. Tenho 33 anos. Pois então sim, você é um pouco mais velho. Tínhamos vinte e poucos anos. Mas sim, você se parece muito com ele, os olhos, a barba, o nariz…

E começou a contar do que acontecia no Uruguai dos seus vinte e poucos anos; de como pouco a pouco os companheiros foram desaparecendo, sendo assassinados, até que já não havia outra opção a não ser ir embora. Comecei a criar imagens em minha cabeça, construídas a partir de filme, leituras e das vezes que andei por Montevidéu. Até que fui trazido de volta para aquela mesa com uma pergunta. E sabe o que fizeram com meu amigo? Era uma pergunta retórica, não tive que responder, só esperar. Um dia ele desapareceu, e uma semana depois encontramos seu corpo, desfigurado. Trazia um cartaz pendurado no pescoço que dizia: esse também pediu perdão.

Não contava com ódio, mas quase que com incredulidade. Como se às vezes tivesse que recordar aquilo para ter certeza que realmente aconteceu.

Ficamos em silêncio e em silêncio eu voltei ao bacalhau, que já não tinha o mesmo sabor. Depois reapareceram os assuntos amenos, como se aquela lembrança, igual à velha mendiga que entra em um shopping center e é rapidamente expulsa, tivesse ido embora. Se vai, mas a desgraçada imagem permanece na retina, fazendo-nos recordar o miserável que somos.

E quando nos despedimos, depois de promessas de seguirmos em contato, tive a impressão que o abraço que recebia estava guardado há décadas e tinha outro destinatário.

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Ricardo Viel, jornalista, atualmente em Lisboa, Portugal, é colunista do NR. Ilustração: Shanghai's Mojo Wang 

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