por Carlos Conte ilustração Ligia Morresi*
Vão pensar que estou ficando maluco. Por educação, ninguém vai ter coragem de me falar isso, mas vão pensar, tenho certeza: “Que coisa, o Carlos enlouqueceu! O que se pode fazer?...” Mas é verdade, pensem o que quiserem. Meu cachorro, o Roque, um vira-lata preto que acaba de completar 3 anos de vida no último 2 de fevereiro, dia de Iemanjá, consegue ler meus pensamentos.
Não entendo de psicologia canina, mas o pouco que sei de psicologia humana me faz duvidar do fenômeno da telepatia, assunto estudado pelos defensores da parapsicologia e seus métodos tão pouco científicos. Já tinha ouvido falar de cães com supostas habilidades paranormais: “Ah, o meu cachorro sabe quando estou triste”, ou “sabe que vou mandar ele pra casa da avó”, ou “sabe que está na hora de comer”... sabe isso, sabe aquilo, coisas que o animal, evidentemente, não teria como saber, pois estão na cabeça do dono, mas o que não falta é gente que acredita em transferência de pensamento, seja entre pessoas, seja entre bichos ou até mesmo entre pessoas e bichos.
Sempre duvidei. Papo aranha! Ora, cachorros são condicionados, como são condicionadas as orcas do Sea World, o Rin-Tin-Tin, ou o Flipper, aquele golfinho dos filmes antigos. Não sabem coisa nenhuma, mas foram amestrados, por algum espertinho que tem o olho na grana e poderia trabalhar num circo ensinando elefantes a dançar no picadeiro. É a velha história de estímulo-resposta inventada pelo Skinner. O elefante dança ao ritmo da música porque foi treinado por um longo tempo a associar a música com a experiência dolorosa de pisar numa chapa quente.
Por exemplo, tive uma cadela, a Tifany, que previa quando íamos sair de viagem. Imagino que ela relacionasse o fato de tirarmos as malas do guarda-roupa com a longa ausência que se seguiria, talvez pelo cheiro de mofo das malas sem uso durante meses, talvez pela simples imagem das malas. Fosse pelo cheiro, fosse pela imagem das malas, era começar a arrumar as bagagens que ela se enfiava debaixo do sofá, começava a salivar e a tremer, coitada, em completo desespero, porque tinha aprendido que as malditas malas eram o prenúncio de dias de solidão.
Com o Roque também é assim. Mas o Roque é mais inteligente que a Tifany. Ele sabe das coisas, diferentemente de cães comuns. (Todo dono de cachorro acha que o seu é mais esperto que os outros: “Ah, igual ao Brutus eu nunca vi! Até parece uma pessoa”). Pois o Roque, garanto, é como se fosse uma pessoa. Mais que isso. Pessoas não leem pensamentos, o Roque sim. Já disse: ele sabe das coisas.
No começo, não me espantei: a chave era o sinal. Quando ele ouvia o tilintar do molho de chaves, latia, porque sabia que ao som metálico das chaves se seguiria o nosso cooper diário. Até aí tudo bem. A Tifany também associava o barulho da coleirinha com o passeio. Sei de muitos cães que fazem isso. Mas o Roque foi além. Com o tempo, ele começou a se antecipar à etapa das chaves. Bastava tirar o shorts da gaveta que ele, lá embaixo, no quintal (meu quarto fica na parte de cima do sobrado), começava a latir. Incrível, pensei. Certamente está associando o cheiro do shorts com a corrida, que ele tanto adora. E cachorros, todos sabem, têm um faro extremamente apurado, a ponto de serem usados por caçadores atrás de veados ou por policiais federais atrás de drogas. Penso que o Roque bem que poderia ser útil pra essa gente, devido a essa enorme capacidade olfativa, mas está fora dos meus planos, e também dos planos do Roque, caçar veados ou prender alguém. Ele sabe, por exemplo, quando vai chover, sabe quando vou sair de casa (porque sente o cheiro da mochila), sabe todas essas coisas – ou, melhor dizendo, não é que ele saiba, mas está acostumado, condicionado, a associar o cheiro ao fenômeno que a ele está diretamente relacionado. Até aí nada de novo, porque os outros cães também sabem dessas coisas.
O susto veio num dia em que, escrevendo no laptop, pensei (não falei, nem fiz nenhum sinal – apenas pensei): “Bom, mais um parágrafo e vou correr!”. Mal termino de combinar isso comigo mesmo, ouço o Roque latindo lá embaixo. Olho pela janela e vejo que ele está sentado, língua de fora, bem debaixo da minha janela, naquela velha posição ansiosa, me esperando descer. Vejam: saio para correr todos os dias, portanto é de se esperar que ele, esperto que é, já tenha registrado isso na sua memoriazinha de cão; mas nem sempre corro nos mesmos horários. Tem dias que vou logo cedo, assim que acordo. Tem dias que vou à noite, pra fugir do calor. Não me perguntem como, mas ele sabe.
A partir de então é assim: não espera que o shorts saia da gaveta, nem que o molho de chaves faça o seu característico tilintar, sinal tão óbvio para qualquer cachorro normal. Posso estar no banheiro, lendo jornal enquanto me alivio, tomando banho, olhando os últimos posts no facebook: é pensar, mesmo que vagamente, que está na hora de correr, que o Roque começa a latir lá embaixo. Nos dias em que estou com preguiça, isso até me serve de estímulo. “Bom, ainda preciso enviar uns e-mails, preparar umas aulas, terminar esta crônica... Acho que hoje, só hoje, vou cabular a corrida...”. Mas aí, como um amigo pentelho convidando pra tomar cerveja numa segunda à noite, ou o louco do Cadão nos tempos de criança na Vila Ipojuca tocando a campainha insistindo pra jogar futebol, o Roque, percebendo minha hesitação, antecipa-se, e decide por ele mesmo, ou por nós dois, que hoje, sim, vai ter corrida. Nesses dias, talvez seja melhor não pensar.
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Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração especial para o texto de Ligia Morresi, designer e ilustradora
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