Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar.Novos episódios toda quinta-feira.
(Episódio 2)
por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall
Ele viveu uma infância e adolescência danadas. Fazia o que dava para engolir as chacotas e os dedinhos apontados. Chegou a sonhar em trocar seu problema por outro menos ofensivo às pessoas. Gostaria ter nascido dentuço, ou vesgo, até mesmo manco. O mais intolerável era a solidão que sua condição causava. Eram os anos 1940, muitas famílias escondiam crianças diferentes no quartinho dos fundos. Os pais de Décio até que foram corajosos, botaram ele na escola. Socializar foi torturante para o menino. Ninguém o tratava como um igual. Mas infância e adolescência uma hora acabam.
Décio entrou na vida adulta como um sobrevivente. Um forte. Afastou, como pôde, os preconceitos e as discriminações que entristeciam seu caminho. Fez curso para técnico de som e conseguiu um emprego em uma rádio estatal. Mostrou-se um bom profissional. Fita magnética, durex e gilete ganhavam asas e arte nas mãos dele. Quando se deu por si, havia passado vinte anos no mesmo emprego. Décio não se casou, aliás nunca namorou. Depois da morte dos pais, sua vida social se restringia a domingos na casa da irmã Ivete. Ele também se dava bem com o cunhado, delegado de polícia. Era o início da década de 1970. A ditadura rugia solta no país. Décio dava a mínima para a política. Para ele política e futebol americano eram iguais. Ele não entendia nada e também jogos de bola e poder lhe eram indiferentes.
Mas o cunhado se importava e muito. Um dia perguntou para o Décio se ele conhecia os comunas da rádio estatal. Pois se conhecesse, que tal fazer uma lista com os nomes dos subversivos? "Você não precisa se envolver com nada. Ninguém nunca ficará sabendo. Top secret! É só me passar os nomes", explicou o cunhado. Por algum tempo, Décio se fez de desentendido. Não estava na alma dele ser um dedo duro. Pois lembrava e lembrava da dor provocada por dedinhos apontados para ele. Mas seus domingos se tornaram nublados por uma certa frieza de Ivete e a cara amarrada do delegado. Décio baixou a guarda. Afinal, os comunistas da rádio nem eram seus amigos. "Danem-se!", concluiu durante uma noite insone.
Aos pouquinhos dedurou um produtor de programa, um músico, uma moça do departamento pessoal. E foi gostando da coisa. Sentia a adrenalina subir ao pesquisar, se certificar e canetar o nome na lista. Passou a curtir a carícia sensual do poder. O último que Décio entregou foi um foca de jornalismo. Ele experimentou um prazer particular nessa delação, pois o comunazinho media quase dois metros. Ele odiava homens altos. Décio, agora alcaguete, nascera anão.
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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.
Um comentário:
então ...., olha para cá e não olhe para lã ...., preciso da sua atenção, olhe para o alto, não olhe para cá, preciso desviar sua tensão, digo atenção, por favor um escândalo ..., qualquer um ...., preciso desviar seu olhar antes que você comece a pensar .
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