por Aleksander Aguilar*
Desde 1888, num episódio de luta, e tragédia, nos Estados Unidos, o dia 1º de Maio passou a ganhar referência em todos os continentes - é uma data fundamental na história da resistência popular de abrangência realmente mundial. Deveria ser lembrado como um dia de reflexão sobre o papel do trabalhador na sociedade e pela construção da cidadania popular, mas no Brasil a data é muitas vezes apenas um dia de feriado, distribuição de prêmios e de grandes shows nos principais centros do país.
E embora isso se reflita também em Pernambuco, aqui o 1º de maio também é dia de algo mais: é o dia da Festa da Lavadeira. Patrimônio Cultural Imaterial do Estado, é um fundamental evento de cultura popular tradicional e de terreiro da região que, desta vez, se fez de forma atípica numa área central do Recife, na Avenida Nossa Senhora do Carmo. Desde que foi criado, em 1987, o encontro que reúne diversas manifestações da cultura popular pernambucana, tomava conta mesmo era da beira-mar, na praia do Paiva, num dia inteiro de festividades de cunho popular/religioso, com direito ao tradicional banho de lama durante esta poderosa reunião de expressões culturais, artísticas e religiosas de matriz afro-brasileira como Afoxés, Nações de Maracatu, Cirandas, Cocos, Caboclinho, Jurema e Caboclos de lança.
A praia do Paiva, no município do Cabo de Santo Agostinho – região metropolitana da Grande Recife e centro dos bilionários investimentos do Complexo Portuário-Industrial de Suape – foi sede durante 25 anos dessa importante expressão cultural, mas os “brincantes”, como se denominam aqueles que vivem e mantem vivas essas tradições, e as cerca de 30 mil pessoas que costumavam a prestigiar o evento, foram obrigados, por conta da força do capital, a deixar a natureza e ir para o asfalto.
Participei em 2011 da última edição da Festa da Lavadeira na praia do Paiva, que teve pelo menos um terço da sua tradicional força, mas foi o suficiente para se envolver, admirar e respeitar. A Lavadeira é um ancestral filho do Orixá Iemanjá. Em maio de 1987, a escultura de uma “lavadeira” foi colocada em frente a uma casa na praia do Paiva. A estátua despertou o interesse da comunidade nativa da praia que a nominaram de “mulher” e a visitavam, levando oferendas. É uma festa essencialmente de matizes negros e índios que agrega, congrega os povos. A Lavadeira é instrumento dos Orixás, Mestres, Mestras, Caboclos, Exús e Trunqueiros, uma forte demonstração das manifestações culturais brasileiras do Nordeste.
A Festa da Lavadeira, ao longo do tempo, ganhou contornos de resistência popular em defesa das matrizes destas expressões culturais contra a mercantilização da arte. Ela sempre acontece no do Dia do Trabalhador, e já chegou a reunir cerca de 100 mil pessoas. Já recebeu por duas vezes o Prêmio IPHAN de melhor projeto de divulgação da cultura popular no nordeste, em 1998 e em 2008. E em 2007 recebeu o “Prêmio Culturas Populares” do Ministério da Cultura.
Mas toda esta simbologia cultural foi relegada a segundo plano por conta dos interesses econômicos que se sobrepõem sem pudor à cultura popular. Grandes empreiteiras construíram imponentes condomínios fechados de luxo no Paiva e ajudaram a privatizar a praia, que já conta com pedágios para segregar o acesso público – instalado precisamente para promover divisões.
Em 2010, a festa só aconteceu por força de um termo de ajuste de conduta feito no Ministério Público. E na sequência a Prefeitura do Cabo de Santo Agostinho, através de uma lei municipal descaradamente aprovada para atender os interesses da construtora, estabeleceu limitações à presença da população na área denominada Loteamento Reserva do Paiva, na praia onde ocorre a Festa. A Construtora Odebrecht, quando quis aprovar seu projeto milionário no Paiva, em seu site afirmava que iria respeitar as manifestações culturais da região e o desenvolvimento sustentável das comunidades vizinhas. Exatamente por isto a área onde acontece a Festa da Lavadeira foi garantida no projeto Reserva do Paiva como área de uso comum, área pública, para permitir a manutenção e desenvolvimento da manifestação popular.
Através, porém, de legislação a prefeitura local aprovou ato de segregação em relação ao público da Festa da Lavadeira constituído, em sua grande maioria, por mulheres e homens da classe trabalhadora. Esta atitude gerou um dano moral coletivo à cultura popular. Não teve como objetivo a preservação do meio ambiente, mas a preservação do poder econômico privado.
O evento deste 1 de maio que seria a 28° edição da Festa, no centro da capital, foi na verdade um cortejo-protesto, e fazia uma alusão à Festa, pois a edição de fato deste ano foi cancelada por falta de investimentos públicos. Intitulada de Vamos Passear a manifestação comemorativa ocorreu sob protestos, As críticas não foram apenas sobre a mudança de local, pois os brincantes exigem mais ajuda dos órgãos governamentais. O ato religioso tradicional virou um ato de protesto disperso e frágil, e a Festa da Lavadeira está sob o risco de acabar se o seu caráter de resistência não se apresentar ainda com mais força e garantir suas expressões.
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*Aleksander Aguilar é jornalista, doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais, candidato a escritor, e viajante à Ítaca, especial para o Nota de Rodapé
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