Na escola, havia mais vontades do que metragens de filmes, mais roteiros do que recursos. Os estudantes se dividiam em duas tendências. A primeira, da qual eu fazia parte, sonhava com os filmes de autor. Nossos ídolos eram Jean-Luc Godard (O Acossado), Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol), Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha), Werner Herzog (O Enigma de Kaspar Hauser).
A segunda tendência, hoje majoritária e vitoriosa, sonhava com os filmes de público. Seus ídolos eram todos os que deram certo em Hollywood, isto é, cinema com bilheteria gorda, diretores milionários e Oscar na prateleira. Para além dessa divisão, havia outra mais prosaica: os que preferiam as latas Fujifilm e os devotos da Kodak.
Eu era da turma Kodak. Adorava a historinha da firma nascida em 1888 nos Estados Unidos. O Steve Jobs dela atendia pelo nome de George Eastman. Ele queria tornar a fotografia "tão simples como um lápis". A empresa pegou porque fez algo inovador: "Você aperta o botão, nós fazemos o resto". O resto era revelar o filme e devolver a máquina com um novo rolo dentro. Prontinha para as próximas poses.
Esse processo, com consideráveis mudanças, teve sucesso por mais de um século. A Kodak começou a ser desbancada pela fotografia digital. Leia-se: celulares que fotografam; programas que corrigem sombras, rugas, celulites, barrigas, carecas; computadores que armazenam do primeiro beicinho do bebê ao último suspiro do vovô.
Mas quando eu era uma aluna de cinema não existia experiência digital. Me lembro do cheiro dos filmes nas latas Kodak. Acreditem, um cheio tão inebriante quanto o exalado pela dama-da-noite quando o vento agita suas flores. As latas eram a senha para o excitante comando: câmera! (ouvia-se o barulhinho do filme rodando), luzes! (acendiam-se os refletores), ação! (a cena começava).
Também é divertida a origem do nome da empresa. Contam que o pessoal do marketing queimou as pestanas para encontrar uma palavra pronunciável em qualquer idioma. Chegaram em Kodak.
A partir daí, popularizaram a câmera fotográfica. Ela saiu dos estúdios para a vida doméstica, das mãos de profissionais para dedos diletantes.
Ao ler a recente notícia de que a Kodak está próxima do The End, duas palavrinhas imortalizadas por filmes que ela possibilitou, senti uma lufada de nostalgia no meu cérebro século XX. Voltei à sensação recorrente, desde os meus 40 anos, de ser um disco de vinil num ambiente iTunes.
Tá bom! É só uma empresa. Apenas uma marca como tantas outras navegando célere para a falência. A Kodak vai fazer companhia à Varig – estrela brasileira no céu azul. Companhia ao Bamerindus – onde o vampiro de Curitiba tinha uma poupança. Companhia ao Jornal do Brasil – que se calou depois de 119 anos. E sabe-se lá a quais mais defuntos.
Não precisa me lembrar que isso acontecerá com todas as outras. Um dia a Apple fechará as portas, num outro será a Folha de S. Paulo, mais adiante a Estação Primeira de Mangueira. Sei que toda vez que uma delas fechar, alguém reabrirá o Dom Casmurro, do Machado de Assis, publicado em 1899. Está escrito lá : "Tudo acaba, leitor. É um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo." Mas como dói.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina.
6 comentários:
Massa (como sempre!) Fernanda :)
Sabe, ando lendo, mais por motivo profissional do que por gosto, algo sobre comunicação nas empresas, e tenho notado que uma das preocupações de quem mexe com isso é a tal da "perenidade" das organizações e de suas marcas. Quer dizer: nenhum negócio que se pretende grande e importante nasce/ trabalha contando com a possibilidade (mais que isso, com a necessidade) de um dia acabar. Não se pensa em produzir algo que preencha uma demanda real, uma lacuna na vida das pessoas, e sim em "existir para sempre". Não sei o que você pensa; cá comigo, acho isso ruim, chato: todas as grandes empresas (ou empreitadas) que acabam, acabam porque foram superadas, ou porque faliram, ou porque etc etc. Muitas deixam de ser o que eram, abandonam seus propósitos, passam a fazer / fabricar coisas que não sabem fazer, tudo pela tal da "perenidade". "Acabar" - no capitalismo, mas também antes dele, pensemos, sei lá, p.ex. , na perenidade das Igrejas em geral - é sempre visto como algo indesejável, inesperado e até indigno... Como se projetássemos em nossas 'criaturas' certo desejo humano de imortalidade - e também, o que é mais curioso, nossos tabus, nosso inconformismo, nosso despreparo para o fim, para a morte.
Enfim... viva, de certa forma, o fim da Kodak :) bjs
Sonho com mais tinta venosa de sua estirpe rodando sobre aquele tempo!
...que o diga a Biblioteca de Alexandria! Valeu Fê. Nos lembrando das coisas que passam, mas vão deixando seus tijolinhos por aí, "Prá sempre!"
Me lembrei da Kodak dos meus pais e das deliciosas viagens da minha infância em que ela nos acompanhou. Em uma dessas viagens, ela registrou meu encontro com a minha primeira bicicleta, trazida pelo Papai Noel. Também me lembrei do Buda e seu conceito da impermanência. Tem vezes que perceber a transitoriedade de tudo dá uma tristeza danada de ruim...
Eêêê Fêêê ! Por onde seguem nossos sentimentos quando puxamos um fio da teia, hein! Dói sim mas até que é uma dor gostosa, dor de lembrança ou talvez lembrança de dor, momento vivido, daqueles que são passado mas que ainda mexem no presente. Nessa minha época de recém aposentadoria tenho vivido um bom pacote desses momentos. Beijão jsavio
Também me recordoda emoção de por um filme Kodak na máquina e sair fotografando à esmo. Primeiro o cursinho Equipe, depois os ensaios de teatro,a Natureza, a filha,o cachorro,os gatos, tartaruga, etc...
Em teatroa gente sabe que o tempo de validade é bem pequeno, mas cinema pode durar bastante, apesar da Kodak ter acabado.
Aprendi com a minha avó a fazer coisas que durassem a eternidade! Mas só faço coisas descartaveis como o nosso tempo,pinto, bordo, escrevo, desenho, nada permanente!
Legalme fazer pensar sobre isto!
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