por Ricardo Viel, de Lisboa*
“Não sei o que de comunicativo tem o acordeão que quando o escutamos nos encolhe o sentimento”, escreveu Gabriel García Márquez em uma crônica sobre o vallenato, típico ritmo da costa caribenha colombiana. Pois essa sentença do genial Gabo me veio à cabeça tão logo Renato Borghetti abriu seu fole em cima do palco, na sexta-feira, 17 de maio, em Lisboa.
Em escassos metros de palco e por quase uma hora o músico de origem gaúcha domou diante de mim (e uma centena mais de afortunados) um animal arisco que insistia em expandir-se e contrair-se. Parecia querer fugir, mas ao mesmo tempo aparentava deleitar-se ao cerco a que foi submetido. E suas queixas tinham algo de lamento e de desabafo.
Contorciam-se ambos, mas o homem era sempre quem tinha o comando. Sabia o momento exato de cada gesto, o começo e o fim de cada ato. Às vezes, deixava a fera tomar ar, afastar-se, para logo em seguida encolhe-la sobre seu regaço. Com os olhos fechados, o artista media os movimentos – que variavam entre brutalidade e a candura – e por ora parecia desafiar aquela fera ao dançar de rosto colado com ela.
Já pela terceira música concluí que sem saber eu havia entrado numa tourada cujo touro fora substituído por um acordeão (para ser mais correto uma gaita de ponto).
O matador, vestido de negro, com um cinto de pano e um chapéu na cabeça, tinha seus auxiliares, como há de ser. Mas esses, em vez de portarem capas e lanças, traziam clarinete, violão e teclado. E o ajudavam, estavam a seu lado, cientes do que acontecia e atentos para se preciso fosse agirem no intento de evitar um fatal escorregão. Mas era óbvio: o duelo mesmo era entre o fole e o homem. Caminhavam pelo palco agarrados, amarrados peito com peito, desenhando invisíveis caminhos.
Foi uma linda e emotiva tourada. Cheia de arte, como deve ser, mas sem humilhação. A vitória de um não foi a derrota de outro. Não houve marca de sangue no solo, nenhuma agonia, nenhuma traiçoeira estocada. Não aplaudimos a morte, mas a vitória sobre ela.
E findo o ato, quando Renato Borghetti afastou as mãos da fera, foi como se dela tivesse arrancado a alma. A vi estática, retraída, depositada em um caixote sem qualquer resistência. Nem de longe lembrava o animal imponente que segundos atrás mostrava seu esplendor ao desafiar o artista diante do público. Parecia mesmo sentir falta daquele homem que, ao tê-la nos braços, a havia encantado. A ela e a um mortal que, sentado logo na primeira fileira, parecia encolhido em seus sentimentos.
*Ricardo Viel, jornalista, atualmente em Lisboa, Portugal, é colunista do NR
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