.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Incomode-se


por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*

Há um incômodo novo me atazanando o juízo. Se estou lendo, dirigindo, cozinhando ou acordada no meio da noite, ela me aparece e demora para ir embora. Desde que tomei conhecimento do assunto, tem sido assim. Por qualquer coisa, Belén me vem à cabeça. A menina chilena de onze anos, que está grávida do padrasto, por quem foi seguidamente abusada, com a conivência de sua mãe. O aborto é radicalmente proibido lá, em qualquer circunstância. Portanto, apesar de algumas tentativas de argumentar que a gestação põe em risco a vida de Belén (ela tem onze anos!), e que caíram no vazio legal e na indiferença do Estado, ela terá o bebê. Ponto final. Belén que se dane.

São tantos elementos de hipocrisia, crueldade e cinismo, que fico imaginando a sensação de impotência e a frustração das várias pessoas sensatas e solidárias que, em diferentes níveis, tentaram interferir em favor da menina. A tragédia de Belén é completa, profunda e irreparável.

Não quero alimentar este incômodo, nem me ocupar de domá-lo até que se dissolva. Ele só me terá alguma serventia se puder contaminar você. E a hora é agora. Aqui no Brasil, os novos e velhos arautos da hipocrisia estão tentando se aproveitar de uma conjuntura aparentemente favorável para fazer aprovar uma nova legislação, que jogará o aborto na ilegalidade total, além de promover vários outros absurdos sobre o estupro e os direitos das mulheres. Incríveis absurdos, pelo que representam de obscurantismo e ignorância – sem falar do cinismo, onipresente quando se trata dos temas relacionados à sexualidade.

Conheço bem os argumentos de quem defende a manutenção de qualquer gestação em qualquer circunstância, quase todos de natureza religiosa. Não me cabe questionar crenças ou convicções, mas não posso deixar de observar que tais argumentos deliberadamente prescindem de dois elementos a meu ver essenciais para a defesa daquilo que entendemos como civilização humana: o respeito ao direito de decisão sobre temas de foro íntimo e a compaixão.

Incomode-se junto comigo e contamine. Precisamos mas é de andar para a frente, não para trás. O retrocesso não vai salvar nada nem ninguém. Quem diz que vai sabe que está mentindo.

Enquanto eu pensava e escrevia esse texto, nasceram, na mesma semana, os dois bebês que eu já havia mencionado aqui. Desejados, esperados e recebidos como celebrações da vida. A chegada deles só reforça ainda mais tudo o que eu disse acima.

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ju, seu apelo tem a minha total adesão.
Seu texto, mais uma vez, nos traz um assunto que nos convida a uma profunda reflexão.Você aborda um aspecto que, para mim,tem um peso e uma importância enormes: A COMPAIXÃO.
Somente quem é capaz de se pôr no lugar do outro pode nutrir tal sentimento e transformá-lo em aÇão em prol desse outro.
Parabéns! Abraço de admiradora.
Terê

Postar um comentário

Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.

Web Analytics