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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Curvas


por Carlos Conte ilustração Ligia Morresi*

A tropa marchava sob o sol forte de janeiro. Eventualmente se revezavam chapéus, cangas, toalhas, camisetas, o que servisse para cobrir do sol as partes mais expostas do corpo. Debaixo de seus pés, do areal infinito, subia um bafo picante que pouco a pouco ia pegando na pele, junto com a areia que vinha de toda parte trazida pelo vento. Aliás, nas praias uruguaias o vento nunca dá descanso.

Nada que atrapalhasse a caminhada. Há alguns dias tinham encarnado o espírito “buena onda” dos uruguaios. Nem mesmo as dunas, enormes obstáculos que se sucediam como numa paisagem desértica, os desanimava. Era caminhar. Uma ânsia deambulatória que se misturava com uma vontade louca de falar. O único grilo foi do Pelo, que não sabe nadar, e preferiu atravessar o “arroyo” de barquinho junto com as bagagens. De resto, nenhuma chateação. Pacha empunhava seu inseparável cajado de outras viagens enrolado numa canga feminina, talvez da Juca, o que para os olhos chapados dos demais era a perfeita imagem de um visionário, um messias encarregado de anunciar ao povo alguma coisa muito boa, talvez a paz mundial ou algo do gênero. Tudo bem, estavam loucos de LSD e sua viagem era outra.

Tinham uma missão, na verdade. Chegar ao vilarejo de Cabo Polônio, ver os lobos e leões marinhos – que são bem diferentes, explicava Khan, os lobos são menores, os leões maiores e mais gordos, mas ambos extremamente agressivos, Khan lhes dizia. Sim, queriam chegar ao Polônio antes do sol se pôr, primeiro para não correr o risco de perder o último caminhão que os traria de volta a Valizas, onde estavam hospedados, depois porque queriam ver os tais lobos e leões marinhos – que são fedidos pra cacete, alertava Khan.

Chico, o mais falante da turma, contava a história de Juancho, um velho sábio uruguaio, rouco como todos os uruguaios (pois entraram na noia de que todos os uruguaios são roucos, uma maluquice, sem dúvida), e Juancho, com sua voz sempre tranquila e sempre rouca, tipicamente uruguaia, portanto, costuma dizer aos viajantes que passam por sua cabana que na vida só existem dois caminhos: “el camino del mar y el camino del bosque”. Assim, alerta Juancho, pelo caminho do mar deve-se tomar cuidado com os lobos, e pelo caminho do bosque, com “los cascaveles”.

A missão era chegar ao Polônio a tempo de ver os lobos e os leões marinhos, mas pelo caminhar da tropa via-se que seria difícil estar no Polônio antes do entardecer. Era aparecer um inseto exótico, ou pegadas animais misteriosas, uma borboleta colorida, rochas revestidas com uma trepadeira que parecia maconha, era alguém ter uma ideia, subir numa pedra e começar a solar sobre qualquer bobagem que a turma parava a caminhada para ouvir a explanação. Uma formação curiosa de nuvem. Paravam. Analisavam, como se aquela nuvem fosse a nuvem mais bonita e bem feita entre todas as nuvens. Numa baixada, passaram por um pedaço de areia que, para alguns, seria movediça, mas na realidade não era areia movediça nenhuma, apenas uma paranoia de quem está muito louco e quer experimentar enfiar o pé naquela areia fofa e úmida – e era de fato gostoso brincar de afundar o pé na areia – que, de todo modo, não chegava a ser movediça, como afirmavam, quem sabe uma prima distante da verdadeira e temível areia movediça que só se vê na televisão.

Assim, erravam por aquele espaço imenso, tomado por dunas intercaladas por terrenos baixos, de charco: a aridez das dunas, a umidade das baixadas. Devido a essas distrações, acabavam não seguindo uma linha reta, que, como se sabe, é o caminho mais curto entre dois pontos, mas faziam curvas, de acordo com a necessidade da loucura. Faziam curvas, curvas que são. Traçavam parábolas absurdas naquele areal, cujo rastro logo seria desfeito pelo vento incessante do Uruguai. E assim o grupo se distraía, demorava, atrasava... Mas seu objetivo, na verdade, seu verdadeiro objetivo nisso tudo não era chegar ao Polônio antes de escurecer; sua missão, se é que se pode lhe dar esse nome, era atender ao chamado das curvas, curvas que são. E para aumentar o grau de curvice da viagem juntou-se a eles, de última hora, uma colombiana chamada Paola, que viajava sozinha pelo Uruguai. Em poucas horas, já era adorada por todos: Salchi, Lili, Ju, o europeu da turma Robert, Cisne, Line e o argentino Julio. Ao todo, treze. Doze sem Paola. Treze com Paola, que estava acampada junto com a turma do Pacha no camping do pirata Hernán, e mantinha um diário do qual não se desgrudava. Num momento de distração, Chico teve acesso ao diário e leu um trecho em que ela descrevia a sensação de ter visto discos voadores na noite anterior. Foi o bastante para que Khan e Line, no final da viagem, chegassem à conclusão de que, entre todos os curvas dessa temporada de férias no Uruguai, Paola era a maior de todas, uma espécie de Tamburello, uma curva da estrada de Santos, o “oconcur” da curvice sulamericana, estando à frente até mesmo do pirata Hernán, o dono do camping, que, durante um “asado” noturno, enquanto cortava uma peça de carne, meteu a faca na palma da própria mão, fazendo-lhe um talho até que profundo, de onde imediatamente começou a escorrer sangue, que foi se juntando ao sangue da carne bovina crua; e foi nesta noite que comungaram o sangue de Hernán, também chamado de Profeta, que não deu a mínima nem para o corte nem para o sangue, que serviu de tempero pra carne.

O Hernán é um velho hippie típico dessa parte do litoral uruguaio. Os curvas estavam no lugar certo. Como na lenda de Juancho, enveredaram pelo “camino del bosque”, onde felizmente não se depararam com nenhum “cascabel”, mas, aproveitando a sombra, pararam mais uma vez: largaram suas mochilas, estenderam suas cangas no solo duro e espinhoso, repleto de folhas secas, ramos, pinhas e cascas de madeira. Quanto tempo passaram dentro desse bosque! Conversavam compulsivamente. Estavam loucos por falar, como diria Jack Kerouac, inclusive sobre a possibilidade de, quem sabe um dia, sair da cidade grande e ir morar num desses vilarejos rústicos, pouco povoados, extremamente tranquilos, do litoral uruguaio. Chico liderou um grupo expedicionário pelo interior do bosque. Paola, a colombiana dos óvnis, abriu seu inseparável diário e começou a escrever; estaria vendo alguma coisa extraordinária no meio daquele pinheiral? Elfos. Fantasmas. Quem sabe o lendário Juancho ao lado de um “cascabel”? Mas a surpresa veio do europeu da turma, o Richard, que explicou aos demais que “curva”, em polonês, significa “puta”. Ou soa parecido com “puta”. A palavra “curva”, desde então, passou a fazer mais sentido para todos.

Claro que não chegaram a tempo de ver os lobos e os leões marinhos. Assim que entraram no vilarejo do Polônio, no entardecer, ficaram sabendo que os dois últimos caminhões estavam de saída.



Hora de fugir para as montanhas, como costuma sugerir o Binho Miranda quando a barra pesa. Melhor, disse Pacha há um mês no facebook, voltemos às planícies uruguaias, banhadas pelo Atlântico, rever os “arroyos” translúcidos que cortam o país em direção ao oceano, os bosques litorâneos cheios de coelhinhos e esquilos, quem sabe trombar o Mujica de bobeira por lá, viver modestamente, mas felizes, com certeza, arrumar uma chica, comprar um pedacinho de terra e daí encher este mundo de “niños uruguayos”, que em vez de dizer “tchau” diriam “que pase lindo!” todo dia antes de ir pra escola. Será que por aqui a água está batendo no umbigo, meu chapa? A barra pesando, toca pro Uruguai! Viver com o pirata Hernán, entre o oceano e o bosque, num chalezinho hipponga, e quem sabe um dia topar com o mitológico Juancho, que certamente irá falar sobre os dois caminhos da vida e o perigo de se encontrar pela frente um lobo ou um “cascabel”.

* Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ligia Morresi, designer e ilustradora, especial para o texto

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