por André Carvalho ilustração Kelvin Koubik "Kino"*
Hildemar Diniz recebeu o apelido que carregaria para o resto de sua vida aos 6 anos de idade. Vivia em Nova Iguaçu, que naquela época (final da década de 1930) estava mais para roça do que para subúrbio urbano. Certo dia, quando um amigo lia um gibi, em voz alta, para toda a turma, achou graça na parte da história que falava do “grande monarca”. Na sapecagem de criança, os amigos começaram, então, a lhe chamar de “Monarca”. Com o tempo, virou “Monarco”, nome com o qual o futuro portelense se tornaria conhecido.
Monarco celebrou, no último dia 17 de agosto, a chegada da 80ª primavera em sua vida e a festa de comemoração não poderia ser melhor. Na quadra de sua Escola de Samba do coração, o “Portelão”, cantou, sambou e festejou cada instante das oito décadas intensamente vividas, ao lado de amigos e familiares. Memória viva da Portela, Monarco, desde maio deste ano, é presidente de honra da agremiação, o que representa um sopro de esperança para uma legião de portelenses que, nas últimas décadas, viram interesses econômicos sobrepujarem toda uma tradição e uma história de cultura popular.
A chapa de oposição à antiga diretoria – que fez a Portela se acostumar a não mais brigar por títulos, sendo obscurecida por rivais menos tradicionais e com menos gabarito no quesito “samba” – venceu as eleições e pretende expurgar a conduta, nociva, de valorizar mais o aspecto financeiro ao cultural dentro de uma Escola de Samba. Apesar do jejum de 29 anos sem títulos, Portela ainda é a maior vencedora do Carnaval carioca. Nesta nova gestão, tão significativo quanto à presença de Monarco na composição da diretoria é o fato de o próprio presidente ser intimamente ligado à memória musical da Portela – Serginho Procópio, o novo mandatário, é cavaquinista da Velha Guarda, filho de um dos maiores instrumentistas que já passaram por lá, Osmar do Cavaco.
Sendo assim, a celebração de seu 80º aniversário foi, de fato, uma ode à Velha Portela. Estavam lá Waldir 59 – sócio número 1 da Escola –, Wilma Nascimento, Dodô, Noca, Cabelinho, Tia Surica, Tia Eunice, além de toda a Velha Guarda, incluindo seu padrinho, Paulinho da Viola. Familiares, como o filho Marquinhos Diniz e a neta Juliana Diniz, bem como amigos caros ao velho bamba, como as cantoras Cristina Buarque e Teresa Cristina, o veterano sambista mangueirense Nelson Sargento e o cartunista Lan também marcaram presença.
Aos 80, Monarco recebeu o cargo e o diploma de guardião da memória portelense, algo que sempre o fez, de maneira espontânea. Nesse contexto, os festejos terem sido realizados no “Portelão”, e não na “Portelinha”, primeira sede da escola, foi emblemático – a nova diretoria faz questão de fazer da sede oficial a casa da Velha Guarda, de modo a ressaltar a união entre a Escola de Samba, moderna, atual, inserida em um contexto de competitividade, e a memória musical desta mesma (a tradição), representada naqueles velhos bambas da Portela de outrora. A “Portelinha” foi casa da Velha Guarda durante os anos nebulosos da antiga administração. Assim, apesar de sua beleza, de seu significado e seu charme, ficou estigmatizada como o local onde se relegavam os “velhos”, que não poderia representar a Portela “oficial”, em detrimento do “novo”, moderno e mais adequado aos tempos atuais, esvaziado da tradição portelense.
Memória dos mais velhos,
legado para os mais novos
Monarco é a memória da Portela. Sempre foi. Agora, está oficialmente legitimado nessa função. Para os sambistas mais novos que se interessam pela bagagem cultural, pelo acervo valiosíssimo que faz da Portela uma Escola de Samba rica em tradição, o velho sambista também é a principal referência.
Sambistas de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, desvinculados de uma trajetória feita dentro de Escolas de Samba – longe, inclusive, da Portela – celebram o compositor frequentemente, promovendo rodas de samba com o portelense e aprendendo antigos sambas – muitos, quase totalmente esquecidos –, de forma a recuperar e tirar do ostracismo verdadeiras pérolas do nosso cancioneiro.
Monarco é a pessoa certa para lembrar aquele samba inédito do Alvaiade, dos irmãos Andrade, a melodia do Quininho, a “segunda” que nunca foi gravada, o verso original do samba que fez sucesso, o samba de terreiro de Paulo da Portela que a Escola desfilou nos anos 30 etc. A facilidade para lembrar sambas compostos há mais de meio século é herança de outro grande sambista da Portela, parceiro de primeira hora de Monarco em tempos passados: Alcides, o Malandro Histórico.
Desde cedo, Monarco fez questão de se associar aos sambistas mais velhos da Portela, procurando adotar, inclusive, a mesma linha de composição dos veteranos. Entre seus parceiros na Escola, estão nomes como Manacéa, Francisco Santana, Mijinha, Antônio Caetano e Alvaiade, bem como o grande baluarte da escola, Paulo da Portela, com o qual fez uma série de parcerias póstumas, colocando “segundas” em sambas curtos criados pelo bamba.
Curiosamente, o compositor pouco se associou aos sambistas da sua mesma faixa etária, como Candeia (com ele, fez apenas um samba, o clássico “Portela é uma família reunida”), Casquinha e Picolino (conhecidos como a Turma do Muro), preferindo manter a tradicional linha de composição dos mais velhos - depois superada e modificada por esta nova geração, inclusive, nas disputas de samba enredo.
Velha guarda,
aos 37 anos
Foi pelo fato de manter esta linha e caminhar lado a lado com os sambistas que participaram da fundação da Portela e edificaram o estilo de composição portelense, que Monarco, aos 37 anos, foi convidado a integrar a primeira formação da Velha Guarda da Portela, em 1970, idealizada por Paulinho da Viola.
Dotado de voz potente, Monarco era presença marcante nas rodas de samba no terreiro da Portela, tirando da mente sambas das mais diversas procedências – inclusive seus -, cantados em uma afinação impecável. Assim, foi um dos selecionados para o registro pioneiro da Velha Guarda da Portela, tendo a honra de ter sua composição elevada a nome do disco: “Portela, Passado de Glória”. Trabalhando duro, como peixeiro, entretanto, o sambista não pôde comparecer no estúdio, no dia da gravação (não havia, à época, para cidadãos suburbanos pobres, a opção de querer, ou tentar, levar vida de “artista” – a necessidade falava mais alto).
Esta frustração foi dissipada nas gravações seguintes da Velha Guarda, já nos anos 80, quando Monarco foi intérprete de várias faixas, atuando ativamente, também, na elaboração do repertório, fruto de sua memória sagaz. Seu cantar, desde o primeiro registro, tornou-se evidente a beleza e a força. Tem “gogó” de sambista de terreiro, que canta alto para fazer-se ouvir em meio ao rufar de tamborins, pandeiros e cuícas. Lançou o primeiro disco solo em 1976, pela Continental, com capa ricamente ilustrada por Lan. Outros quatro viriam depois.
Um compositor
portelense
Como compositor, emplacou grandes sucessos. Sozinho ou com seus parceiros da Portela, teve registrado sambas por João Nogueira, Martinho da Vila, Roberto Ribeiro, Beth Carvalho, Clara Nunes, Paulinho da Viola, entre outros. Clássicos, como “Tudo menos amor” (com Walter Rosa), “Quitandeiro” (com Paulo da Portela) e “Lenço” (com Francisco Santana) foram fartamente executados em uma grande parcela de lares brasileiros, nos anos 70.
A partir dos anos 80, Monarco formou uma parceria com o compositor Ratinho que seria muito gravada por Zeca Pagodinho e resultaria em sucessos retumbantes (que ajudaram a melhorar a condição de vida do sambista), como “Coração em desalinho” e “Vai vadiar”. Além das dezenas de músicas gravadas, o compositor possui, ainda, uma série de inéditas – e, claro, traz na lembrança outras tantas composições de portelenses de outrora.
Por muito tempo, essa linha de sambas da Portela, bem como a própria tradição portelense perderam espaço. Nas rodas de samba poucos se lembravam dos sambas de terreiro dos compositores da antiga. Dentro da Escola então, nem se fala. Monarco se viu nesta aridez por muitos anos, muitas gestões. Agora, é chegada a hora da Águia da Portela voar, altaneira, novamente. No belo samba de Argemiro do Pandeiro e Francisco Santana, feito quando os títulos começaram a escassear, já há várias décadas, o estado de espírito dos portelenses era retratado nos seguintes versos: “Vitória para a Portela era banalidade, mas da vitória estou sentindo saudade”. Nos últimos anos, Monarco concordou, triste e resignado. Agora, porém, quer que as glórias do passado voltem a ser, novamente, doces trivialidades.
"Escute, na íntegra, o disco de estreia de Monarco, lançado pela Continental, em 1976"
*André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba. Ilustração de Kelvin Koubik, "Kino", colunista do NR, artista visual, grafiteiro e músico de Porto Alegre
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