.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 28 de maio de 2015

O cara

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.


 por Fernanda Pompeu    ilustração Fernando Carvall

Mariano Joaquim da Silva
Nascimento: 8 de maio de 1930
Cidade natal: Timbaúba - PE
Desparecimento: 31 de maio de 1971
Local final: Casa da Morte, Petrópolis - RJ

Com 12 anos, ele já pegava na enxada. Logo depois foi operário numa fábrica de sapatos. Percebeu ainda jovem que só melhoraria de vida se todos melhorassem. Aos vinte e dois anos entrou para o PCB. Ainda viriam as Ligas Camponesas, o Sindicato Rural, o PCdoB, a AP e a VAR-Palmares. Mariano era um sujeito de organizações. De luta também.

Foi preso vários vezes acusado de subversivo de alta cepa. No ano anterior ao Golpe Militar de 1964, ele participou da chamada Revolta dos Sargentos - que reivindicava elegibilidade dos militares para cargos do Poder Legislativo. Deu tudo errado, mas Mariano Joaquim seguiu na agitação política. Em 1966, com mais uma prisão decretada, entrou na clandestinidade. No primeiro de maio de 1971, foi finalmente preso na Rodoviária do Recife. A partir daí foi o show de arbítrio e horror. A última pessoa que falou com ele foi Inês Etienne Romeu - a única sobrevivente da Casa da Morte, em Petrópolis, Rio de Janeiro. Segundo ela, depois de continuamente torturado, ele simplesmente foi “desaparecido”.

* * * * * *

Fernanda Pompeu é a mulher do texto Fernando Carvall é o homem da arte

terça-feira, 26 de maio de 2015

O tempo que nos resta


por Fernando Evangelista* 

Minha crise existencial começou numa longínqua manhã de agosto de 2012, exatamente às 15h58min, quando a norte-americana Katie Ledecky tocou sua mão direita na borda da piscina do Parque Aquático de Londres e sagrou-se campeã olímpica de natação. Katie tinha 15 anos de idade.

“Ultimamente têm passado muitos anos”, percebeu Rubem Braga décadas atrás. E eles, os anos, parecem mais velozes e fugidios do que a adolescente americana, nascida em 17 de março de 1997. Valha-me Deus, 1997 foi logo ali, quase um piscar de olhos, quase anteontem. Certo? Errado – faz um tempão.

Em março de 1997, o Brasil mal conhecia o tenista Guga Kuerten – passou a conhecê-lo depois da vitória em Roland Garros, em junho daquele ano. Logo em seguida, outro cabeludo surpreenderia o mundo, sendo anunciado – com pompa e capim – como o primeiro mamífero clonado da história. Muita água poluída correu sob a ponte: Guga está aposentado e a ovelha Dolly já passou desta para a melhor.  

Foi o ano do Guga, da Dolly e do escândalo da compra de votos no Congresso, para aprovação da emenda da reeleição do Fernando Henrique Cardoso, que na época não gostava de maconha. Lula e o PT eram baluartes da ética e denunciaram a falcatrua.

Quando a campeã olímpica nasceu, ninguém conhecia a inglesa J. K. Rowling, porque a saga Harry Porter ainda não havia sido lançada. A Princesa Diana não havia morrido, Titanic era uma famosa tragédia marítima (e não um estrondoso sucesso cinematográfico) e a seleção francesa de futebol havia derrotado o Brasil apenas uma vez, na Copa de 1986.

Alhos e bugalhos à parte, há algo em comum entre navios, ex-presidentes, bruxos ingleses, uma princesa samaritana e a seleção brasileira. Todos prometeram fantasia e um final redentor, bateram recordes de popularidade e, em certos momentos, nos deram a sensação de invulnerabilidade.

Entretanto, a história ensina e a morte confirma, essas promessas só funcionam na literatura de ficção, porque na ficção da política ou mesmo na vida real, elas frequentemente acabam em retumbantes quebrações de cara, em naufrágios irremediáveis, como aquele (já faz tanto tempo) jogo entre Brasil e Alemanha na Copa de 2014.

Voltando ao passado remotíssimo, Neymar tinha 5 anos em 1997 e o maior medalhista olímpico da história, o anfíbio Michael Phelps, 12. Em 1997, a internet engatinhava e o bate-papo virtual mais conhecido era um troço chamado mirc – que a gurizada só usava depois da meia-noite por causa da conta telefônica. Não existia tela-plana, televisão HD, iPads, iPods, Android ou Michel Teló.

Para não pensar na rapidez do tempo, resolvi desperdiçá-lo na internet. E passei a vasculhar nas gavetas virtuais a identidade do esportista mais velho a conquistar uma medalha olímpica. Este deveria ser a minha referência e exemplo. Tremi de emoção ao descobrir que o mais velho atleta olímpico a ganhar uma medalha tinha 72 anos.

O sueco Oscar Swahn – este é o nome do vovô – conquistou medalha de bronze nos jogos olímpicos da Antuérpia em 1920. Tudo perfeito, não fosse um detalhe: ele ganhou medalha e fama mundial praticando “Tiro Duplo ao Veado”. Sendo eu vegetariano e a favor da diversidade, este sueco foi uma baita decepção.

Depois da descoberta deste vovô, até alegrei-me com o ouro conquistado pela adolescente Katie Ledecky, que poderia estar por aí matando bichos, mas vive de superar limites e bater recordes, numa luta constante contra o tempo.

E esta parece ser a grande ironia porque quanto mais os homens e as mulheres superam cronômetros e limitações, o tempo se defende correndo mais e mais, para que ninguém o alcance, nem mesmo o jamaicano Usain Bolt.

A nós, pobres mortais, medalhistas ou não, cabe a tarefa de lembrar o tempo que passou e, a partir daí, sem pressa e sem preguiça, usufruir o tempo que nos resta.  

Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Caixa de surpresas


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Na área de embarque do aeroporto de Quito, entramos numa livraria e procuramos a estante de Rosa Montero, à época bem menos conhecida e traduzida no Brasil. Faz uns doze anos. Cada uma de nós três comprou um livro diferente, com o acordo de fazermos um rodízio deles. Não lembro qual era o meu. Sentamos à espera do nosso embarque, folheando os livros novos. O título do que a colega ao meu lado havia comprado me chamou a atenção e pedi para vê-lo. Era "A louca da casa", que começa com uma instigante e divertida reflexão sobre a memória, tanto a individual como a compartilhada entre pessoas, por exemplo, da mesma família. Fala da construção que cada um faz dos fatos e situações vividas, tornando-as únicas, e das enormes discrepâncias entre os registros que individualmente fazemos de um mesmo episódio. Não consegui largar o livro e nunca o devolvi à sua dona.

Dado que a memória não é absoluta, muito menos objetiva, sendo, portanto, inútil buscar nela a verdade dos fatos, fica fácil entender a diferença entre o que sempre lembraremos e o que nunca esqueceremos, nuances sujeitas, em larga medida, aos sentimentos que associamos ao que nos acontece. E lembranças não pedem licença.

Durante as férias na fazenda, que eu detestava mas nunca consegui driblar, a solidão era a minha melhor amiga. Se fosse no meio do ano, a colheita do milho verde me dava algumas alegrias, como o curau, um dos doces preferidos, e o dia de pamonha, que era um acontecimento. Sacos enormes de espigas eram colocados na varanda de trás da casa e um grupo de umas dez mulheres se organizava para a trabalheira. Descascar e limpar as espigas cuidadosamente, de maneira a preservar a palha o mais inteira possível, ralar o milho em grandes ralos feitos de folhas de latas de óleo de vinte litros furadas com pregos, costurar à máquina bolsas com as folhas de palha, que receberiam a massa de milho verde, amarrar as bolsas cheias com finas tiras da mesma palha, ferver panelões de água e neles cozinhar as pamonhas. E eu ali no meio, ralando milho verde horas a fio e aprendendo o mundo daquelas matutas no conversê que nunca parava e era pura diversão. Era muito transparente o ar nos dias de inverno na roça.

Assim, passou-me voando pela cabeça a cena do grupo ralando o milho verde, enquanto eu escrevia o primeiro parágrafo. Que emendei, por razões insondáveis, com o relato do escritor chileno Antonio Skármeta sobre sua paixão adolescente pela Dalva de Oliveira. Nossa grande estrela do rádio excursionava pelo Chile, e o rapaz de quinze anos foi assisti-la. Saiu em êxtase, teve febre, insônia, inapetência, até descobrir onde a sua deusa estaria e ir até lá, levando um ramalhete de rosas, que lhe custou a mesada inteira. Dalva se comoveu com aquela aparição e, não sendo nada boba, sacou a fornalha que o consumia. Deu-lhe um beijo e lhe escreveu na capa de um disco: "ao meu único amor chileno". Queria que você visse a expressão dele contando a história. Emende aí à vontade.

* * * * * *

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

terça-feira, 19 de maio de 2015

O adesivo do Fusca


por Fernando Evangelista*

As seis letras estavam grudadas no vidro traseiro do fusca: vida ok.

Eliza estava no trânsito, viu o fusca e não esqueceu aquele adesivo. Alguns dias depois, no sofá da minha casa, já tarde da noite, ela me disse:

– O dono do carro poderia ter escolhido aquelas lições de autoajuda ou gratidões religiosas. Preferiu a simplicidade.

– Tá, e daí?

– Daí nada.

Mas mudou de ideia, tomou um gole do vinho tinto, e se corrigiu:

– Daí tudo – ela disse – porque, em primeiro lugar, é muito difícil ser objetivo e simples. A gente tem a tendência de complicar as coisas. E também porque é assim que deve ser a vida, pelo menos a vida que procuro ter: curta nas explicações e infinita nos sentidos.

Ela esticou as pernas no sofá – sempre que se põe a filosofar ela estica as pernas – e continuou:

– Uma vida ok nas miudezas da rotina, simples no banal e no desimportante e, por isso mesmo, extraordinária. Tô viajando, né?”.

A viagem dela me fez pensar nas minhas crônicas e reportagens. Queria, sempre quis, e falei isso pra ela, produzir textos como o adesivo do fusca. Certeiros, sem firulas ou truques. Nunca consegui.

Citei Drummond em Confissões de Minas: – “certos espíritos dificilmente admitem que uma coisa simples possa ser bela, e menos ainda que uma coisa bela é, necessariamente, simples”.

A partir daí, pensando em voz alta, e nem um pouco impressionada com minha memória literária, ela juntou tudo e me confundiu, como de costume:

– No fundo, por alguns anos, andei procurando um amor que me levasse e um texto que me escrevesse e que ambos – amor e texto – deixassem a minha vida mais ok.

Não sabia a qual texto ela estava se referindo, supôs que estivesse falando da própria história.

– É tudo uma maneira de ver, entende? Quando menina, li uma frase assim: ‘Não vemos as coisas como são, mas como somos'. De quem será essa frase?

Eu não sabia. Ela continuou:

– Quando parei de procurar, encontrei. Não é louco isso?

– .....

– É louco ou não? – ela insistiu

– É – respondi.

Depois de algum tempo em silêncio, perguntei se ela estava bem. Eliza encolheu as pernas, tomou mais um gole de vinho, levantou as sobrancelhas e disse, sorrindo:

–Tudo ok.

E adormeceu no sofá.

* * * * * *

Fernando Evangelista escreve as terças no Nota de Rodapé. Foto: arquivo do autor.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Os fundos


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna

Os milhares de motoristas e passageiros que percorrem a W3 norte o tempo todo não veem, não têm como ver. Precisei morar vinte anos na região pra perceber.

Tem a avenida, com blocos comerciais dos dois lados, em toda a sua extensão e, atrás destes, no rumo oeste, pequenos blocos com lojas no térreo e dois ou três andares de apartamentos. Mais atrás ainda, outra linha de lojas e apartamentos. Entre estes e os conjuntos de casas, uma calçada.

Como em tudo o que se construiu aqui em Brasília, especialmente no Plano Piloto, houve uma ideia, um conceito inicial para esse estranho lugar, onde tudo parece improvisado. Ignoro totalmente qual tenha sido a proposta, mas acho que ela ficou perdida pelos caminhos gerenciais burocráticos. Um sinal disto são os endereços ininteligíveis, até mesmo para esta cronista candanga veterana.

O que se encontra, ao explorar a área, é uma calçada que começa e acaba de repente, começa e acaba de novo, sem qualquer razão aparente. De um lado, os fundos dos apartamentos, meio brutos, mal acabados e cheios de grades ⎼ sob cuja marquise às vezes se abrigam alguns moradores de rua com suas sacolas e cobertores ⎼, pessoas passeando cachorros, carros abandonados, carros estropiados, carros estacionados sobre a calçada, pneus velhos, oficinas mecânicas informais em vagas de estacionamento, lojas transformadas em igrejas evangélicas, pequenos restaurantes que servem por quilo, academias de ginástica e artes marciais e toda uma variedade de pequenos negócios. A melhor parte: como a circulação de veículos na área é complicada e desorganizada, os carros em movimento são poucos e, portanto, não tem barulho de trânsito.

Do lado oposto, as quadras residenciais, com suas casas geminadas e alguns blocos de apartamentos bem mais arrumados, cheias de gramados, belas árvores e cercas vivas. Um verde exuberante e bem cuidado, que abriga passarinhos, calangos, gatos, insetos, borboletas e parquinhos infantis onde ainda não vi criança brincando. Entre os dois territórios quase inconciliáveis, a estreita calçada que aparece e desaparece. Pouca gente circula por ela.

Nas primeiras caminhadas, eu ia imaginando como seria se aquela passarela intermitente fosse transformada num bulevar para pedestres, bem pavimentado e ajustado a caminhantes de todas as idades e diversas condições físicas. Em linguagem moderna, que tivesse acessibilidade, iluminação e sinalização adequadas, talvez uns bancos de praça e alguns lugares de descanso e encontro. Imaginar não paga imposto, inclusive porque desconfio que este lugar deve ocupar a milésima posição na ordem de prioridades do governo local.

Além de mais bonito, atrairia o uso dos moradores, que, no entanto, parecem não estar nada interessados. Minha sensação é de que demos as costas para este lugar, porque fica nos fundos de uma área comercial nada elegante, algo que a vizinhança despreza e não quer nem ver.

Pensando melhor, podia ficar tudo como está, só que com uma calçada contínua e lisinha, onde ninguém estacionasse seus malditos carros, pra que a gente pudesse percorrer a pé, sem interrupções, esse furdunço urbano inesperado no coração do Plano Piloto, cidade bem arrumada, feita para pessoas sobre rodas. Plano é bom, mudar o plano pode ser melhor.

* * * * * *

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Única

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.


por Fernanda Pompeu   ilustração Fernando Carvall

Inês Etienne Romeu
Nascimento: 1942
Cidade natal: Pouso Alegre - MG
Morte: 27 abril de 2015
Local final: Niterói - RJ

Dizem que morrer dormindo é dádiva. Talvez tenha sido uma espécie de agradecimento a Inês Etienne Romeu, morta no último 27 de abril, aos 72 anos, na graciosa Niterói. Não fosse ela com sua memória e coragem, provavelmente pouco ou nada saberíamos da tristemente hoje famosa Casa da Morte, Petrópolis, Rio de Janeiro. A Casa era um centro clandestino de interrogatórios com torturas. A exceção de Inês, todos os hóspedes de Petrópolis foram “desaparecidos” depois de assassinados.

Ela conseguiu se safar em troca de ser uma delatora. Papel que jamais cumpriu. Acabou condenada à prisão perpétua. Foi solta após a Anistia de 1979. A última presa política a ser libertada e única sobrevivente da Casa da Morte revelou nomes de algumas das vítimas, apelidos dos torturadores e narrou seus métodos de interrogatório. Descanse em paz, Inês Etienne Romeu!

* * * * * *

Fernanda Pompeu é a mulher do texto Fernando Carvall é o homem da arte

terça-feira, 12 de maio de 2015

Loira Gina

por Fernando Evangelista*

Para Marcelo, Vitor, Beatriz e Catarina

A mãe foi chamada para uma reunião do outro lado da cidade. Não tinha como pegar as crianças na escola e apelou para seu irmão, que morava perto. As crianças adoravam aquele tio, contador de histórias e um compulsivo comprador de chocolates, chicletes, balas e outros venenos deliciosos.

Tinha 30 anos, o tio. O sobrinho mais velho oito e o outro cinco. Foram numa lanchonete próxima ao edifício dos meninos, “lugar imundo, onde só se vende porcaria”, segundo a insuspeita opinião da mãe. No meio do lanche, comendo hambúrgueres e batatas fritas, unidos como os três mosqueteiros, o tio comentou:

– A Gina é muito velha.

– Quem é Gina? – quis saber o sobrinho de cinco anos.

O tio mostrou a caixinha de palitos de dente, com a foto da loira Gina, escondida entre a bisnaga de mostarda e o porta-guardanapo. Os dois meninos observaram cuidadosamente a caixa. Foi o sobrinho maior quem disse:

– Não parece velha, essa mulher é nova.

O tio explicou que aquilo era uma foto, tirada há muitos anos e que o tempo passa rápido e era bom eles aproveitarem porque assim, de repente, quando menos se espera, a gente vira adulto e assim, também de repente, o adulto fica velho e os velhos morrem, sem mais nem menos.

– Mas tem gente que vive bastante – disse o menino de cinco. – A bisa Rosa viveu 101 anos.

– A bisa Rosa é uma exceção – contrapôs o tio. – Poucos chegam a essa idade.

– Conheço uma coisa que durou muito mais – comentou o sobrinho mais velho. – O cajueiro de Natal.

E contou que na véspera havia escrito uma redação sobre esse cajueiro, de quase 130 anos. Disse que pesquisara na Wikipédia, trocara informações com amigos por e-mail, comparara com outros textos do Yahoo e produzira o texto para o seu blog, “só para passar o tempo, entre um episódio e outro do Sítio do Pica-Pau Amarelo”. E completou:

– É o maior cajueiro do mundo, foi plantado por um pescador no final do século XIX. O pescador morreu velhinho, deitado na sombra da árvore.

– Mas cajueiro não é gente – retrucou o sobrinho pequeno, enquanto limpava com guardanapo a boca suja de mostarda.

– Esse cajueiro de Natal foi tema da escola? – quis saber o tio.

– Não – respondeu o mais velho. – Fiz por conta própria porque gosto de ler e escrever sobre a natureza. A natureza nos ensina um bocado de coisas.

Tentando não demonstrar surpresa, porque demonstrar surpresa nessas horas é coisa de adulto inexperiente, o tio ficou com aquela sensação (ou seria constatação?) que atinge e atormenta os adultos ao conversarem com as crianças: elas são infinitamente mais espertas e inteligentes do que nós, adultos. Alguma coisa fundamental ocorrera nos neurônios desses pequenos seres. Ou isso é verdade, e ele esperava de coração que fosse, ou ele era, na infância, um completo retardado. Talvez as duas hipóteses fossem corretas, reconheceu.

Como que se defendendo daqueles dois espantos humanos, o tio pegou um jornal esquecido numa mesa ao lado e esbarrou os olhos na manchete: “Envelhecimento terá cura daqui a 25 anos”. Leu duas vezes para ter certeza. Era isso mesmo.

Achou estranha a notícia, fazendo crer que envelhecimento é uma doença à espera de cura, e considerou ainda pior a ideia de que será possível, de acordo com a reportagem, viver até os mil anos. Segundo o jornal, os cientistas estão desenvolvendo um remédio para bloquear o envelhecimento. Viver mil anos?

Mil anos são 365 mil dias ou 55 mil domingos. Se o tio, com 30 anos, já se considera um ancião idiota em frente das crianças, o que aconteceria se vivesse dez séculos? E então ele passou a vislumbrar os grandes pepinos à vista: Mil anos encarando filas de banco e engarrafamentos intermináveis, mil anos lavando louça no frio e fazendo tratamento de canal, mil anos desencravando unhas e indo a reuniões de condomínio, mil anos sendo obrigado a assistir propaganda eleitoral, mil anos recomeçando a dieta na segunda-feira.

Mil anos descascando abacaxis e andando em ônibus lotado, mil anos vendo o PFL mudar de sigla e o Renan Calheiros mudar de ideologia, mil anos esperando ganhar na loteria, mil anos vendo a cara jovem da velha Gina, a loira do palito.

Mesmo com o tal remédio no mercado, o tio decidiu que jamais, em hipótese alguma, viveria mil anos. Se 100 anos pode parecer pouco, mil é exagero.

Os meninos, alheios a essas reflexões, devoraram os lanches como se o mundo fosse mesmo terminar em breve. Pediram mais batatas fritas e, de sobremesa, dois enormes crepes de doce de leite com queijo.

* * * * * * 

Fernando Evangelista é jornalista. Escreve toda terça-feira no Nota de Rodapé. Esta crônica faz parte da série republicando.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Meninas roubadas


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Daqui deste meu canto com vista para os ipês amarelos floridos do quintal do vizinho, é fácil pensar nelas e mergulhar na inquietação que vem junto. As meninas roubadas na essência daquilo que a vida requer para ser uma vida bem básica. De seres humanos com potencial pleno, como quase todas nascemos, foram transformadas em coisas, peças dos terríveis jogos que tantos homens jogam para perpetuar sua superioridade, exigência maldita imposta a tantas mulheres, que não conseguimos conter, que dirá reverter.

Quando nasci um anjo esbelto, /desses que tocam trombeta, anunciou: /vai carregar bandeira. /Cargo muito pesado pra mulher, /esta espécie ainda envergonhada, disse Adélia Prado no definitivo poema "Com licença poética”.

Meninas nigerianas, que cometeram dois equívocos essenciais: nascer mulher e ir à escola. Tragadas pelo jogo de vida e morte, ou morte em vida, ditado pelos senhores ensandecidos que o vêm herdando desde sempre, e sempre acrescentando novos ingredientes de horror, que parece jamais bastar.

Fácil pensar nelas e nas muitas outras usadas e abusadas nos conflitos e nas guerras, entre países ou facções criminosas, por guerreiros brutos e mal encarados ou por moços branquinhos limpinhos encarregados de protegê-las. As mulheres não fazem as guerras, mas as sofrem profundamente, mesmo sem dar um único passo neste sentido. As guerras dos homens sempre as alcançam.

Foram resgatadas do cativeiro extremista, as meninas nigerianas, depois de ver e sofrer o inominável. Das centenas que sobreviveram ao quinto ou sétimo inferno, mais de duzentas estão grávidas, como resultado da violência sexual a que foram submetidas, no seu papel obrigatório e inescapável de trastes disponíveis aos tais jogos. Voltam com filhos da tragédia no ventre ou nos braços, perdidas, esvaziadas de si mesmas. Fácil pensar nelas, mas, por mais que eu me esforce, não faço ideia de como se sentem.

* * * * * *

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Do fim ao começo

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.


por Fernanda Pompeu    ilustração Fernando Carvall

Helenira Rezende
Nascimento: 11 de janeiro de 1944
Cidade natal: Cerqueira César - SP
Morte: 29 de setembro de 1972
Local final: Oito Barracas - Araguaia

Antes de ser derrotada pela balas disparadas por homens fardados em confronto com guerrilheiros no Araguaia. Antes de ter seu corpo sequestrado e desaparecido, Helenira Rezende de Souza Nazareth foi jogadora de basquete e saltadora a distância. Também estudou Letras na USP e deu aulas de português na periferia de Guarulhos. Se tivesse vivido num país democrático provavelmente ainda estaria viva. Mas quis a História que os tempos fossem de ditadura militar. Quis a vida que ela pegasse em armas e morresse por desejar o Brasil mais justo.

* * * * * *

Fernanda Pompeu é a mulher do texto Fernando Carvall é o homem da arte

terça-feira, 5 de maio de 2015

Estimada e desconhecida alma gêmea

por Fernando Evangelista*

Saudações. Meu nome é Cristina – a família me chama de Tina, os colegas do trabalho me conhecem como Cris e tu podes me chamar como quiseres. Bom, eu estou escrevendo esta carta porque, puta que o pariu, cansei de te esperar.

Olha que te procurei pelos lugares mais respeitáveis e pelos becos mais suspeitos. Experimentei de tudo e não me arrependo de quase nada, exceto, verdade seja dita, do caso com o chinês e com aquele capixaba, que colecionava mulheres e passagens pela polícia.

Eu sei, só uma idiota para acreditar nessa bobajada de amor romântico, de amor perfeito, de príncipe herói. Sou uma idiota completa. Para te achar, rezei, fiz mandinga, simpatia, fingi indiferença, fiz promessa, dancei sertanejo universitário, fiz de tudo, só não espetei agulha em boneco, que não me serviria de nada.

Querida alma gêmea, amor da minha vida, tu és padre? Estás casada com a pessoa errada? Morreste há muitos anos e não cumpriste o destino? Eu sou aquela que sobrou?

Sou dramática, né? Dramática e um pouco louca, sabe? Várias vezes tive a certeza de ter te encontrado. No começo, todos os homens meio que se parecem contigo. São atenciosos, interessados, educados. Todos têm um brilho nos olhos, uma ternura, uma carinha que dá aquela alegria no coração. Mas depois...

Depois é aquela coisa desagradável que vem junto com a intimidade e a convivência diária.

Lá no fundo, vou ser sincera, sonho com um amor no estilo daquele noticiado pelo jornal The Sun. É a história de uma inglesa de 43 anos e uma porca. O nome da mulher é Janey Byrne e da porca é Meeka, ou alguma coisa assim, sem sobrenome.

Janey comprou a mini porquinha e confiou na promessa do vendedor de que o bicho permaneceria pequeno para sempre, como um cachorro maltês. Até o fim de sua suínica vida, garantiu o homem, Meeka seria um porquinho-anão, um bonsai-porquinho.

Pois três anos depois, criada desde então dentro de casa, a mini porquinha transformou-se numa porca de 107 quilos, com 76 centímetros de altura e 1,5m de comprimento.

Aí alguém perguntou para Janey sobre essa transformação drástica e ela, veja você, disse alguma coisa assim: “No início, fiquei decepcionada por Meeka não ser micro, mas agora não mudaria nada nela. Eu a amo assim”. Uau!

Eu queria um amor deste tipo – e você nem precisaria ficar com 107 quilos. Pensando bem, embora frustrante e doída, essa minha procura permite a ideia de perfeição, de eternidade, permite qualquer coisa, menos, lógico, viver um grande amor. Mas viver um grande amor, tu deves saber, é muito arriscado, perigoso mesmo. Ainda assim, sigo te procurando.

Onde tu estás?

* * * * * *

Fernando Evangelista é jornalista. Escreve as terças-feiras no Nota de Rodapé. Crônica da série republicando.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Puritana


por Júnia Puglia      ilustração Fernando Vianna

Intriga-me que sejamos protestantes há pelo menos quatro gerações, de ambos os lados da família, num Brasil onde os protestantes, ou "evangélicos", como se diz hoje, eram uns gatos pingados - até bem pouco tempo. Do lado paterno, descendentes diretos de imigrantes italianos, desembarcados por aqui na década de 1890. Do materno, uma mistura bem brasileira de portugueses, espanhóis e italianos, além de seculares mineiros. Todos misteriosamente metodistas. Nunca consegui uma boa explicação para isto.

O que importa mesmo, aqui, é o que veio junto. Ainda que os seguidores do inglês John Wesley sejam dos mais liberais, os primeiros que aqui chegaram, em meados do século 19, eram norte-americanos, trazendo consigo, mais que uma doutrina religiosa, uma inconfundível e pesada herança puritana, que se traduziu nos mínimos detalhes da formação de várias gerações da família. E que foi um pouco mais longe, pois uma importante ala de ambos os lados tornou-se pentecostal, atraída pela grande novidade que aportou pelo interior de São Paulo nos idos de 1950-60, também por obra de americanos. Meu pai, então pastor metodista, desencadeou a guinada familiar e se tornou um líder pentecostal de algum prestígio. Nesse meio, conheci o que bem mais tarde vim a identificar como fundamentalismo religioso.

O recado, como eu o recebi, era muito claro: sem o evangelho não havia salvação. Com o evangelho, não se podia: falar palavrão, brigar, reclamar, ter medo do escuro, expressar raiva, contestar a autoridade, dançar, fumar, beber algo que valesse a pena, usar roupa provocante, explorar o corpo de quem quer que fosse e mais uma lista enorme. Depois de tudo, ganhava-se a vida eterna no céu.

Assim crescemos: recatados, ingênuos, contidos, reprimidos e culpados. E volto ao singular, pois não falo em nome de ninguém mais. Lá pelas tantas, quando pude pensar e agir por conta própria, o peso pesou de vez. Dei um basta e me afastei de qualquer prática religiosa.

Durante alguns anos, acreditei que havia conseguido exorcizar a religião e o grande olho de Deus que haviam posto a me vigiar a cada minuto. Até me dar conta de que é inútil, nunca vai ser possível. Independentemente de como vivo e das minhas convicções de hoje, é só cavoucar um pouco para constatar que, no terreno do básico e primordial, não deixei de ser protestante, pentecostal, puritana. Porque a religião a gente herda no sangue, no leite, ela se mistura aos mínimos detalhes da nossa definição como indivíduo, do olhar para o mundo. Mesmo descolada da intenção ou da prática, ela joga um papel tão essencial na formação de pessoas e sociedades, que até mesmo a sua ausência torna-se definidora.

Puritana coroa rebelde libertária convicta. Pode ser?

* * * * * *

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
Web Analytics