por
Fernando Evangelista*
Para Marcelo, Vitor, Beatriz e Catarina
A mãe foi chamada para uma reunião do outro lado da cidade. Não tinha como pegar as crianças na escola e apelou para seu irmão, que morava perto. As crianças adoravam aquele tio, contador de histórias e um compulsivo comprador de chocolates, chicletes, balas e outros venenos deliciosos.
Tinha 30 anos, o tio. O sobrinho mais velho oito e o outro cinco. Foram numa lanchonete próxima ao edifício dos meninos, “lugar imundo, onde só se vende porcaria”, segundo a insuspeita opinião da mãe. No meio do lanche, comendo hambúrgueres e batatas fritas, unidos como os três mosqueteiros, o tio comentou:
– A Gina é muito velha.
– Quem é Gina? – quis saber o sobrinho de cinco anos.
O tio mostrou a caixinha de palitos de dente, com a foto da loira Gina, escondida entre a bisnaga de mostarda e o porta-guardanapo. Os dois meninos observaram cuidadosamente a caixa. Foi o sobrinho maior quem disse:
– Não parece velha, essa mulher é nova.
O tio explicou que aquilo era uma foto, tirada há muitos anos e que o tempo passa rápido e era bom eles aproveitarem porque assim, de repente, quando menos se espera, a gente vira adulto e assim, também de repente, o adulto fica velho e os velhos morrem, sem mais nem menos.
– Mas tem gente que vive bastante – disse o menino de cinco. – A bisa Rosa viveu 101 anos.
– A bisa Rosa é uma exceção – contrapôs o tio. – Poucos chegam a essa idade.
– Conheço uma coisa que durou muito mais – comentou o sobrinho mais velho. – O cajueiro de Natal.
E contou que na véspera havia escrito uma redação sobre esse cajueiro, de quase 130 anos. Disse que pesquisara na Wikipédia, trocara informações com amigos por e-mail, comparara com outros textos do Yahoo e produzira o texto para o seu blog, “só para passar o tempo, entre um episódio e outro do Sítio do Pica-Pau Amarelo”. E completou:
– É o maior cajueiro do mundo, foi plantado por um pescador no final do século XIX. O pescador morreu velhinho, deitado na sombra da árvore.
– Mas cajueiro não é gente – retrucou o sobrinho pequeno, enquanto limpava com guardanapo a boca suja de mostarda.
– Esse cajueiro de Natal foi tema da escola? – quis saber o tio.
– Não – respondeu o mais velho. – Fiz por conta própria porque gosto de ler e escrever sobre a natureza. A natureza nos ensina um bocado de coisas.
Tentando não demonstrar surpresa, porque demonstrar surpresa nessas horas é coisa de adulto inexperiente, o tio ficou com aquela sensação (ou seria constatação?) que atinge e atormenta os adultos ao conversarem com as crianças: elas são infinitamente mais espertas e inteligentes do que nós, adultos. Alguma coisa fundamental ocorrera nos neurônios desses pequenos seres. Ou isso é verdade, e ele esperava de coração que fosse, ou ele era, na infância, um completo retardado. Talvez as duas hipóteses fossem corretas, reconheceu.
Como que se defendendo daqueles dois espantos humanos, o tio pegou um jornal esquecido numa mesa ao lado e esbarrou os olhos na manchete: “Envelhecimento terá cura daqui a 25 anos”. Leu duas vezes para ter certeza. Era isso mesmo.
Achou estranha a notícia, fazendo crer que envelhecimento é uma doença à espera de cura, e considerou ainda pior a ideia de que será possível, de acordo com a reportagem, viver até os mil anos. Segundo o jornal, os cientistas estão desenvolvendo um remédio para bloquear o envelhecimento. Viver mil anos?
Mil anos são 365 mil dias ou 55 mil domingos. Se o tio, com 30 anos, já se considera um ancião idiota em frente das crianças, o que aconteceria se vivesse dez séculos? E então ele passou a vislumbrar os grandes pepinos à vista: Mil anos encarando filas de banco e engarrafamentos intermináveis, mil anos lavando louça no frio e fazendo tratamento de canal, mil anos desencravando unhas e indo a reuniões de condomínio, mil anos sendo obrigado a assistir propaganda eleitoral, mil anos recomeçando a dieta na segunda-feira.
Mil anos descascando abacaxis e andando em ônibus lotado, mil anos vendo o PFL mudar de sigla e o Renan Calheiros mudar de ideologia, mil anos esperando ganhar na loteria, mil anos vendo a cara jovem da velha Gina, a loira do palito.
Mesmo com o tal remédio no mercado, o tio decidiu que jamais, em hipótese alguma, viveria mil anos. Se 100 anos pode parecer pouco, mil é exagero.
Os meninos, alheios a essas reflexões, devoraram os lanches como se o mundo fosse mesmo terminar em breve. Pediram mais batatas fritas e, de sobremesa, dois enormes crepes de doce de leite com queijo.
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Fernando Evangelista é jornalista. Escreve toda terça-feira no Nota de Rodapé. Esta crônica faz parte da série republicando.