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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Clichês


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

 Descobri o prazer da leitura, pra valer mesmo, com o “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo. Até então, eu me entretinha largamente com livros de histórias infantis, Seleções do Reader’s Digest e épicos religiosos, mas o meu primeiro romance de gente grande foi essa estória amalucada dos cadáveres insepultos na pequena Antares. Depois deste, muitos livros do grande – e hoje meio esquecido – Érico me proporcionaram emoções e reflexões importantes na formação da adulta que vim a ser. Entre eles, suas memórias, publicadas nos dois volumes de “Solo de Clarineta”, pouco antes de um infarto o matar e me deixar um tantinho órfã.

Entre as memórias, um relato sobre uma visita do escritor a Portugal, sob a ditadura de Salazar, que me deixou muito curiosa sobre o país. Lá estive já três vezes, a última delas há poucos dias.

Desde que pisei em Lisboa pela primeira vez, mais de quinze anos atrás, fui tomada por um encanto arrasador por essa mistura da cidade que sobe e desce colinas – num labirinto no qual jamais me sinto perdida – com o céu, quase indecente de tão escancarado, e a água. Encanto que se renova e aprofunda a cada vez que volto. Acho que nunca vou me cansar desse casario tão simples e bonito e das praças, ladeiras e miradouros que sempre guardam em alguma dobra uma beleza que a gente não havia visto antes. Nem dos exageros de açúcar e azeite a que alegremente me entrego.

A história dos navegadores portugueses e o protagonismo do país na definição da cara que o mundo tem hoje é em tudo desproporcional às suas dimensões concretas. Contrariando as probabilidades, realizaram façanhas que mudaram a História, e creio que foi o fascínio desta unha da Europa pelo mar que a impulsionou a aprender a domá-lo o suficiente para ir em busca do desconhecido e inventar novos mundos. Pensar nisto só faz crescer minha admiração por essa gente, em que pesem as agruras que seu Estado colonial nos impôs em séculos passados.

E eles têm Óbidos, a cuja porta desembarquei de um ônibus num meio-dia frio e molhado. Já da autoestrada se avista a vila medieval e seu castelo, contida por uma muralha que lhe faz o contorno completo. Não mais do que algumas centenas de casinhas baixas caiadas, com faixas de cores berrantes ou azulejos adornando as fachadas, e três igrejas. Intactas, como o empedrado das ruas, dando a sensação de que a qualquer momento um menestrel surgirá entoando uma cantiga d’amor ou d’amigo para saudar os visitantes do século 21 e posar para seus espertofones.

Lá pelo segundo ou terceiro dia da visita, recebi uma mensagem de uma amiga que estava viajando pelo interior do país. Estava muito emocionada com a intensidade da beleza dos lugares, e sugeria enfaticamente que eu seguisse sua rota. Dizia que, diante do que estava encontrando, concluía que a palavra “saudade”, que tanto gostamos de acreditar ser monopólio lusófono, só poderia mesmo ter sido criada em Portugal.

Sem mais – com as minhas desculpas pelos clichês.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Do amor e das mudanças

por Nina Madsen*

Nesses últimos dias, ando às voltas com uma grande mudança. De casa, de cidade, de país. A quarta mudança em quatro anos. É um tal de colocar livro em caixa, tirar livro de caixa, arranjar estante pra tanto livro. É um constrangimento a cada gaveta que se abre, diante das repetidas constatações do humano poder acumulador seja lá do que for. Crachás, por exemplo. Caixinhas. Roupas. E livros.

Revisitar as caixas de fotos, cadernos, cartas de toda a vida, empoeiradas, sempre à espera do momento tão prometido da organização, da produção de álbuns, da digitalização.

E é também o enterrar e desenterrar raízes, criar mudas de si mesma capazes de multiplicar o amor que a terra onde paramos nos traz e multiplica também em nós. Porque cada mudança me ensina que as raízes que nos sustentam não são apenas as nossas, mas também aquelas dos amores que nos deixam suas pequenas mudas ao longo do caminho e de cada paragem.

Pensei logo em Quintana, que me ensinou que amar é mudar a alma de casa. “Rapaz”, eu disse a ele, “não será por acaso que esse negócio de amar é assim tão trabalhoso, não é verdade?” Carregar para a casa do outro o acumulado, o empoeirado, o quebrado, o mal consertado. E juntar um tanto mais, e quebrar um outro tanto. E também construir, e descobrir, e deixar que se aprofundem e se misturem novas raízes. Ter que fazer mudança do amor do outro, ou de um amor para outros, é revisitar muito, é mover muito.

Há quem ame mais leve, assim como há quem viva mais leve. Sem pouso permanente em casa ou coração. E vá flanando pela vida, carregando casas e amores mais etéreos e abstratos em espaços aéreos mais facilmente transportáveis (lembrei agora de um livro infantil lindo, lindo, que mostra os amores como balões...).

Há também quem ame no concreto dos tijolos e do cimento, da permanência. Terra ocupada, lavrada e preparada pedaço por pedaço. Morada construída com a consciência do peso e do sentido de cada pedra. Amor patrimônio.

E entre uma ponta e outra, tantas combinações e misturas quanto permitir a imaginação e o desejo humano de ocupar e ser ocupado.

Eu fico meio lá, meio cá, certa de que há que se construir e guardar o amor para imprimir sentido à existência, mas há também que se levar o amor, mover o amor e movimentar a alma. E assim como ficaram em mim pedaços de cada casa que se foi, ficam sempre em mim pedaços dos amores que vivi. Amores que não acabam só porque se mudam. Ficam aqui guardados, nas caixas e nas estantes da alma.

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Nina Madsen escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Integra o colegiado de gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o CFEMEA, e colabora com a Universidade Livre Feminista. Aventura-se pelo avesso do mundo quinzenalmente, na coluna Crônicas do desmundo. *Desmundo aqui faz referência ao romance de Ana Miranda, uma lindeza literária que nos conduz pelas fronteiras entre o real e o onírico.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

No primeiro discurso, Dilma vai da repetição exaustiva à incoerência da justificativa


Presidenta rompe mês de silêncio com explicação de que ajuste fadado a provocar recessão e desemprego vai fortalecer projeto calcado em criação de postos de trabalho e crescimento. Legitima Levy e aumenta divórcio entre política e realidade


por João Peres*

Quem esperava por sinais à esquerda terá de guardar o manto da ingenuidade no armário por mais algum tempo. O primeiro discurso de Dilma Rousseff após a posse serviu para manter boquiabertos os perplexos e alegres os sorridentes. Há quem diga que o período de campanha foi de um rico aprendizado para a presidenta. Não foram encontrados sinais que transformem em tese esta hipótese. Pelo contrário.

Os esforços de retórica feitos durante os 40 minutos da fala que abriu a primeira reunião do novo ministério são louváveis. Mas não mudaram em nada a tradição de uma repetição exaustiva de parcas realizações e de contradições gritantes entre discurso e prática. Dilma buscou demonstrar que um ajuste fiscal criador de desemprego e recessão redundará num fortalecimento do projeto iniciado há doze anos preconizando a abertura de postos de trabalho e o crescimento econômico. Os elementos apresentados no discurso são insuficientes para reverter a ideia de que caminhamos para uma gestão neoliberal com resquícios de um progressismo ao qual se está atrelado muito mais pela vergonha de uma ruptura definitiva que por compromisso ideológico real.

“Os ajustes que estamos fazendo, eles são necessários para manter o rumo, para ampliar as oportunidades, preservando as prioridades sociais e econômicas do governo que iniciamos há 12 anos atrás. As medidas que estamos tomando e que tomaremos, elas vão consolidar e ampliar um projeto vitorioso nas urnas por quatro eleições consecutivas e que estão, essas medidas, ajudando a transformar o Brasil”, afirmou a presidenta.

Quem realmente acredita que as eleições trouxeram mudanças positivas na relação entre Dilma e a arte de fazer política precisa olhar com mais carinho para o primeiro mês de gestão. A exemplo do que ocorrera em 2011, a agenda presidencial se concentrou em compromissos palacianos. No vazio deixado pela ausência prosperam o boato, a mentira, a perplexidade. Suposições surgidas no primeiro mês se mostraram, infelizmente, corretas.

Se o sumiço de Dilma havia transmitido a impressão de que Joaquim Levy é um superministro da Fazenda, a presença física acabou por confirmá-lo nessa condição. “Tomamos algumas medidas que têm caráter corretivo, ou seja, são medidas estruturais que se mostram necessárias em quaisquer circunstâncias. Vamos adequar, por exemplo, o seguro-desemprego, o abono-salarial, a pensão por morte e o auxílio-doença às novas condições socioeconômicas do país.”

O malabarismo do exercício do poder é difícil em qualquer situação. Pior ainda para alguém que tem dificuldades comunicacionais severas. Durante o discurso, Dilma fez enorme esforço para dizer que este é um governo de continuidade, mas também de mudanças, ou de mudanças, mas também de continuidade. “Nossa tarefa será manter o projeto de desenvolvimento iniciado em 2003, mas dar continuidade com avanços, dar continuidade com mudanças que lhe darão, que darão a este projeto ainda mais consistência, mais velocidade.”

A repetição exaustiva da exortação de valores supostamente intrínsecos a este governo não tem ajudado nesta missão. Até onde se possa enxergar, não há comprovação de que Dilma seja cínica. É mais complexo que isso entender como se chega a uma situação em que a prática contraria o discurso. Um entorno pouco sincero, capaz simplesmente de criar um mundo de magia, e o distanciamento da realidade provocado pelo poder são hipóteses a ser avaliadas.

“Nós devemos enfrentar o desconhecimento, a desinformação sempre e permanentemente. Vou repetir: sempre e permanentemente. Nós não podemos permitir que a falsa versão se crie e se alastre. Reajam aos boatos, travem a batalha da comunicação, levem a posição do governo à opinião pública, a posição do ministério, a posição do governo à opinião pública. Sejam claros, sejam precisos, se façam entender. Nós não podemos deixar dúvidas.” É como se Felipão pedisse a seus jogadores que fossem educados, polidos e trabalhassem pela valorização dos direitos humanos.

É bem verdade que governos do PT, via de regra, sofrem com boatos e mentiras difundidos via mídia tradicional. Sem entrar na discussão sobre o quanto os próprios petistas alimentaram, com ego e informações, estes segmentos da imprensa, o fato é que neste começo de segundo mandato não é preciso apresentar qualquer distorção para que parte da população se enfureça com o governo. “Por exemplo, quando for dito que vamos acabar com as conquistas históricas dos trabalhadores, respondam em alto e bom som: 'Não é verdade!' Os direitos trabalhistas são intocáveis e não será o nosso governo, um governo dos trabalhadores, que irá revogá-los.”

O que a presidenta tem feito é aumentar cada vez mais o abismo entre a política institucional e a população. Se o Ministério do Trabalho e Emprego avalia que dois milhões de brasileiros serão prejudicados pela mudança nas regras de concessão do seguro-desemprego, como pode ser verdade que os direitos trabalhistas são intocáveis? Entre o “nem que a vaca tussa” da campanha e a ação concreta existe uma distância imensa, que encontra semelhança no espaço existente entre a afirmação de que este é um “governo dos trabalhadores” e um ministério formado por Joaquim Levy, Kátia Abreu e Gilberto Kassab. Uma vala que Dilma vai abrindo entre si e a realidade: entre si e a sociedade.

Entre as intenções concretas do governo, apenas repetições: fazer do Brasil uma “pátria educadora”, sem explicar como chegaremos lá; acelerar a agenda de privatizações de portos, aeroportos e rodovias; encaminhar para o Congresso um pacote anticorrupção; e brigar para que seja realizada a reforma política. A respeito desta, de novo, nada além da exortação que indica que o país precisa mudar as regras atuais de eleição e de financiamento de campanha. Sem explicar como e por quê, sem peitar o Congresso, não vamos além do esforço retórico.

Ao repetir o repertório relativo à defesa da Petrobras, “a mais brasileira das empresas”, Dilma incorreu em mais uma contradição: “As empresas têm de ser preservadas, as pessoas que foram culpadas é que têm que ser punidas, não as empresas.” Maltrata, assim, uma bandeira de seu próprio governo. Em 2013 foi sancionada pela presidenta a Lei 12.846, que deu um passo fundamental no combate à corrupção ao prever que corporações envolvidas em atos de corrupção sejam punidas. A legislação representou um passo enorme no campo simbólico ao nos fazer recordar que o ato de corromper precisa de dois lados: sem a ponta que suborna, compra, direciona, não há agente público que possa se envolver em desvios – malfeitos, para ficar no jargão presidencial.

Há alguns fatores que podem explicar a ideia de preservar os dedos e cortar os anéis. São bastante pragmáticas. Uma diz respeito diretamente à Petrobras, que pode se tornar inviável a depender das decisões decorrentes da Operação Lava Jato. A outra, diretamente ligada a essa, reside na visão de que a colocação de obstáculos à participação do cartel brasileiro de empreiteiras em obras públicas teria efeitos catastróficos sobre a economia nacional, incapaz de substituir as atuais corporações sem um grande intervalo no qual se teria de frear investimentos e realizações. Fácil de explicar. Não para o governo Dilma.

A primeira aparição pública após a posse serviu para que a presidenta derretesse o resto de credibilidade existente junto aos setores progressistas. À exceção dos governistas incorrigíveis que se enxergam como integrantes de uma certa esquerda, é difícil imaginar grupos que a tenham apoiado na disputa contra Aécio Neves e que ainda nutram disposição de distorcer a realidade para encontrar justificativas para o que vem sendo realizado. As pontes estendidas gratuitamente durante a campanha estão implodidas.

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João Peres é jornalista. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

A luz


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna

Coisas acontecem enquanto cozinhamos. Dia desses, na casa de uma amiga, aberta a garrafa de vinho da inspiração culinária e providenciado o fundo musical, as vozes de Simon & Garfunkel me levaram a uma viagem no tempo e na memória. Há muito não os ouvia, o que é lamentável e exige imediata correção de rumo. Algumas das canções que essa dupla compôs e interpretou décadas atrás estão entre as mais lindas que me acompanharão sempre.

A sorte é que o caldo do risoto já estava pronto e a minha principal tarefa era orientar na preparação do prato, porque o golpe foi forte. Viajei para aqueles tempos em que a música nos consolava pela falta de liberdade e perspectiva, e nos conduzia a lugares mais amenos, cheios de poesia e respostas, ora amorosas, ora engajadas, ora inquietantes, para nossos jovens corações e mentes repletos de perguntas.

Tempos em que as letras das músicas vinham impressas nos encartes dos discos. Na ausência deles, exercitávamos nossos ouvidos e nossos rudimentos de inglês, transcrevendo as palavras conforme as entendíamos. Coisas incríveis resultavam dessas tentativas, que já renderam muito texto divertido por aí. Levei anos para acertar alguns trechos da antológica “O bêbado e a equilibrista” (de Bosco e Blanc), por exemplo.

“Kathy’s song”, composta pelo Paul Simon, é uma das que amei muito e estava submersa na memória. Emergiu ali, à beira do fogão, grudou no meu juízo, enquanto eu despejava conchas de caldo no arroz, e ficou de campana em alguma dobra, esperando o momento de me atormentar. Este chegou hoje e me fez buscar a letra, comprar a gravação (bendita internet!) e mergulhar no seu lirismo.

É tão bonita, mas tão bonita, que nem sei explicar. As palavras justas, simples e diretas, enfileiradas e costuradas à melodia com perfeição, descrevem sentimentos conhecidos e recorrentes, de maneira única. Melancolia, saudade, solidão e a chuva encharcando a rua, paredes e telhados. Quem desentende? Para mim, a melhor poesia e a melhor comida se fazem com ingredientes básicos, precisão, simplicidade e a sensibilidade de quem prepara. O resultado depende do estado de espírito, da inspiração e da intimidade com os ingredientes. Beleza pura foi o que encontrei lendo Adélia Prado ou ouvindo “Mucuripe” (de Fagner e Belchior) pela primeira vez, para mencionar apenas duas entre as muitas maravilhas que essa vida danada de complicada nos oferece. E sentidos atentos são indispensáveis para que se produza o encanto.

Tocar os sentidos e sentimentos das pessoas parece fácil e barato, ainda mais agora, com a facilidade que temos para entupir o espaço digital com enxurradas de palavrório e notas musicais amontoadas – aonde encontramos também um sem-número de aulas, dicas e receitas culinárias. Engano. É preciso ter a luz.


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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Como se faz uma crônica


por Fernanda Pompeu*

Em três fases. Pois tudo sobre a Terra - abaixo e acima dela - tem três etapas. Nossa própria existência: nascer, viver, morrer. Todas as narrativas: começo, meio, fim. Prato brasileiríssimo: arroz, feijão, farinha. Do mestre Lao-Tsé: “O Tao gerou Um. Um gerou Dois. Dois gerou Três. Três gerou todas as coisas”.

Primeira fase:

Encontrar o tema. Nem sempre é difícil, às vezes ele vem como um santo que baixa. Você está tomando um copo d´água e, antes de terminar, surge o assunto. Num dia de sorte, pode até despontar inteiro, perfeito, redondo. Mas nem sempre é fácil, de repente, vem a pergunta: Escrever sobre o quê? Silêncio de sepulcro. Aí a orientação é ir para a rua e esticar os ouvidos para frases alheias. Também ajuda assistir a um filme. Quem sabe um cena, um diálogo acenda uma luzinha na sua cabeça. Ou se inspirar no vídeo do cartunista Alpino mostrando como se faz uma charge. Também vale se refugiar no Dom Casmurro, do Machado de Assis. Todas as ideias estão lá. Se nada disso adiantar (e muitas vezes não adianta), a dica infalível é olhar para dentro de você e aguardar que o tema venha. Ele virá alegre ou tristemente. Mas virá.

Segunda fase:

Moldar a forma da ideia. O assunto será tratado de jeito engraçado? Trágico? Ele é sério ou risonho? Em geral, o tratamento crônico mistura as categorias acima. Pois a crônica é um gênero do cotidiano, das chamadas coisas pequenas. Uma crônica não se dispõe a mudar o mundo, quando muito, ela muda seu estado de espírito enquanto você lê. Dos pesos da literatura, ela é categoria peso leve. Tudo isso é certo para o leitor, pois para a pobre da cronista ela dá um trabalhão. Por exemplo, escrever sobre a morte, o amor, o desespero, o frescor de maneira leve. Crônica tem que ter leveza, antes de tudo. Nela, cada frase tem o efeito de um parágrafo.

Terceira fase:

Soltar os dedos no teclado. Chamo esse momento de a hora da verdade. O acaso e a teoria ficaram para trás. Agora é você e a língua portuguesa. Todas as decisões são suas. As consequências da escolha do tema, do formato da ideia, da escrita propriamente dita também. Comece, continue e termine. Depois vem a revisão: checagem de ortografias, nexos sintáticos, resultados semânticos. Aqui você deixa de ser cronista para se tornar carpinteiro. Cortar, lixar, polir. Pronto, agora é postar. O passo seguinte é com o leitor.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora e colunista do Nota de Rodapé. O texto acima foi publicado originalmente em sua coluna Mente Aberta no Yahoo. Imagem: Régine Ferrandis

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Quanto mais negro, mais alvo!

por Cidinha da Silva*

Em verso genial do poema “rondó da ronda noturna”, o poeta Ricardo Aleixo nos conta que “quanto mais negro, mais alvo”. Como na letra de “Haiti”, de Caetano e Gil, “rondó” contém doutoramentos inteiros, teses completas sobre a assimetria das relações raciais no Brasil. É o poder de síntese e de expansão da arte.

Engana-se quem pensa que somos vítimas de racismo, somos alvo do racismo, como disse Carlos Moore há décadas, antes de conhecer Ricardo, que por sua vez o disse em 1999, também sem conhecer o Carlos. Existia então, em ambos, o poeta e o antropólogo, compreensão similar desse fenômeno que mata a gente negra, como matou Amarildo da Silva, Cláudia Ferreira, Patrick Ferreira de Queiroz, Douglas Rafael, o DG, e desapareceu a Davi Fiúza, entre milhares de outros homens, jovens, mulheres e crianças negros que não tiveram seus nomes divulgados e são executados pela polícia dia após dia.

Quanto mais negro, mais alvo, só seria dito assim por um poeta. Quanto mais negro, mais visível. Visível por ser alvo, por ser buscado em qualquer lugar, em qualquer classe social, em qualquer situação, seja como Rafael Braga Vieira, morador de rua, preso durante as manifestações de junho de 2013, como se terrorista fosse, por carregar na mochila um vidro de desinfetante e outro de água sanitária, condenado a cinco anos e dez meses de prisão, único preso remanescente das manifestações daquele inverno. Seja como Thamires Fortunato, estudante da UFF, que durante manifestação contra o alto custo do transporte público no Rio de Janeiro no verão de 2015, foi covardemente imobilizada no chão e algemada, depois de ter tido a blusa arrancada e ter sobre si um brutamontes da polícia, paramentado para a guerra, tratando-a como bandido de periculosidade comprovada. Seja como a farmacêutica e doutoranda em Bioquímica Mirian França, mantida presa por 16 dias no Ceará sob acusação de assassinar uma turista estrangeira com quem fizera contato num sítio de mochileiros. Presa porque apresentou contradições em depoimentos à polícia, tais como o número de cafezinhos que a vítima, Gaia Molinari, teria tomado enquanto estiveram juntas. Mirian foi carimbada como principal suspeita da morte de uma pessoa abatida por pancadas fortíssimas e que lutou para se defender. E ela, a suspeita, de compleição física frágil, não apresentava qualquer marca de luta corporal.

Quanto mais negra, quanto mais consciente e senhora de si, mais alvo, como Lília de Souza, jornalista baiana, cujo cabelo black power foi rejeitado por um sistema de renovação de passaporte, obrigando-a a prendê-lo com uma borracha de escritório para que sua imagem fosse aceita.

Quanto mais negro, quanto mais melanina, mais alvo. Quanto mais negro, quanto mais negros juntos, mais alvo, mais auto de resistência. E nessas horas, estamos sós, desprotegidos e sós. Só depois, se sobrevivermos ao susto e à violência, a poesia nos acalentará.

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum. Imagem: rondó da ronda noturna, poema visual de ricardo aleixo

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Do riso ao pranto

por Celso Vicenzi*

Os veículos de comunicação têm aproveitado os acontecimentos que resultaram no atentado terrorista ao Charlie Hebdo para reiterar os valores da liberdade de expressão. Em muitos casos, essa defesa aconteceu sem que o conceito fosse plenamente explicitado para além do senso comum. Pela narrativa de compenetrados locutores, comentaristas e “especialistas”, nada pode se opor a essa liberdade. Alguns comentaristas foram além e utilizaram os últimos acontecimentos para dizer que quem defende a regulamentação da mídia é inimigo da liberdade de expressão e adepto da censura. Duas coisas completamente diferentes são incorporadas, sutilmente, aos acontecimentos, muito mais para uma defesa de interesses corporativos, comerciais e políticos do que para propugnar pela defesa de interesses públicos e universais.

Ao contrário do que expressa o senso comum, liberdade não é o direito de fazer tudo o que se quer. Até em dicionários esses limites aparecem claramente. Segundo, por exemplo, o Caldas Aulete, liberdade é a “possibilidade de agir segundo a própria vontade (dentro dos limites da lei e de normas socialmente aceitas)”. Liberdade e responsabilidade estão intrinsicamente ligadas.

Vários filósofos se debruçaram, ao longo da história, sobre esse emaranhado território. Immanuel Kant, considerado um dos pais da filosofia moderna, diz que só é livre aquele que age exclusivamente com base na razão. E mostra o quanto a liberdade está ligada à responsabilidade: somos livres para agir, desde que não causemos dano à liberdade do outro. Ou, como ele mesmo escreveu: “Ninguém pode me constranger a ser feliz à sua maneira (como ele concebe o bem-estar dos outros homens), mas a cada um é permitido buscar a sua felicidade pela via que lhe parecer boa, contanto que não cause dano à liberdade dos outros (isto é, ao direito de outrem) aspirarem a um semelhante, que pode coexistir com a liberdade de cada um, segundo uma lei universal possível”.

Quem advoga que não pode haver limites para a liberdade de expressão teria que compactuar, por conseguinte, com a barbárie ou a inexistência de direitos humanos. Com a completa irresponsabilidade por seus atos. Se a liberdade não aceita limites, é possível submeter cidadãos e cidadãs a situações monstruosas que, em última instância, seriam a própria negação de sua humanidade. Alguns exemplos: em nome da liberdade de expressão pode-se estimular a pedofilia? O estupro? O racismo? A tortura? Pregar a morte, abertamente, de outros seres humanos? (Bandido bom é bandido morto! Morte aos gays! Acabem com Israel! Exterminem os palestinos!).

A resposta é “não”. Porque há um componente “destruidor” no exercício de uma liberdade sem limites que leve em consideração apenas o direito de dizer e fazer o que se bem entender, sem se preocupar se isso viola outros direitos ou desencadeia reações que podem violentar ainda mais outros seres humanos, que podem provocar mortes em grupos sociais, minorias étnicas ou, ainda, propugnar abertamente por guerras contra outros povos, que venham a ser declarados “inimigos”.

Há consequências em todo ato humano. As mensagens que os veículos de comunicação emitem, cotidianamente, reforçam ou amenizam preconceitos, ódios, discriminações, injustiças, humilhações...

A palavra, o desenho, a fotografia, o título, a legenda, o comentário, a reportagem, o vídeo, a imagem – todo o arsenal de técnicas e conteúdos que os veículos de comunicação utilizam e divulgam diariamente – não são neutros. De algum modo desenham modelos de sociedade que podem ser mais inclusivos ou excludentes. Podem construir ideologias solidárias ou individualistas; interceder por justiça social ou justificar a desigualdade; aceitar o diferente ou ampliar a hostilidade; romper com tradições perversas ou incentivá-las; podem transmitir mensagens de paz ou acirrar conflitos que resultem em guerras.

Para não poucas pessoas, o humor dos chargistas do Charlie Hebdo, sobretudo o de conteúdo religioso, era profundamente agressivo e de mau gosto. Algo que, não raro, excedia o humor e se aproximava mais da ofensa, gratuita, e de menosprezo à crença de bilhões de pessoas, de escárnio àquilo que lhes é mais sagrado. Nada, em princípio, é intocável, mas é preciso saber que nossos gestos e mensagens tocam o coração das pessoas. E se prestam, de alguma forma, a fazer avançar ou retroceder os valores humanos. A liberdade de expressão é um valor, mas não está acima de outros.

O problema é saber onde passar a régua do que é tolerável. Porque, por mais brando que seja o humor ou a opinião, sempre que valores forem confrontados e pessoas ou instituições criticadas, haverá reações de quem considera que o padrão aceitável foi ultrapassado.

Seria desejável que todas as divergências ou eventuais excessos pudessem ser arbitrados, de alguma forma, no campo jurídico, enquanto o debate, o diálogo, a diplomacia – sem abrir mão da crítica – pudessem encontrar novas formas de convivência entre pessoas e povos. Mas as leis são apenas um espelho da sociedade, em que os embates, políticos, econômicos e sociais acontecem. E boa parte das leis é também uma representação da cultura, das crenças, da moral e da ideologia de um povo. Portanto, costumam reforçar muito mais o status quo do que amparar o direito da maioria dos injustiçados. E, no campo internacional, costumam ter pouco efeito sobre a independência de cada Estado – alguns deles, inclusive, agem à revelia de decisões da ONU. E, afinal, nem tudo se resolve nos tribunais. Quando há um embate de modelos de sociedade, a informação, o esforço de compreensão, a aceitação das diferenças e costumes, os acordos justos, as campanhas educativas e outras ações podem ser a melhor receita para uma vida comunitária mais estável e menos violenta. É provável que o atentado terrorista em solo francês não teve apenas as charges como elementos motivadores, mas um conjunto de situações históricas, de guerras, de humilhações e de racismo que contribuíram para o trágico desfecho.

Imigrantes, sobretudo os muçulmanos, são tratados como cidadãos de segunda classe, discriminados, olhados com preconceito e, mesmo para seus descendentes que já nasceram em solo francês, as oportunidades são muito restritas. O envolvimento da França em guerras coloniais ou em forças de coalizão que combatem o terrorismo em vários países, com ações que acabam atingindo a sociedade civil, também são o estopim de atos extremos, principalmente protagonizado por jovens com desejos de vingança.

Há, ainda, um outro componente gerador de permanente tensão: a injusta distribuição de renda, fonte primária da maioria dos conflitos. Enquanto houver assimetria nos negócios entre nações, exploração do trabalho humano, enquanto se mantiver, por diferentes meios – uns mais violentos, outros menos – seres humanos distantes de uma vida digna, enquanto se propugnar mais por valores individuais do que coletivos, enquanto tentarmos impor a outros o nosso modelo de princípios, estaremos sentados, inevitavelmente, sobre um barril de pólvora. As injustiças sociais sempre forneceram combustível para embates violentos.

Também não são poucos os exemplos, na história da humanidade, em que pessoas se dispõem a matar por uma ideia, sobretudo política ou religiosa. Paradoxalmente, são pessoas que professam ideologias baseadas no “divino”, no “sagrado” valor à vida, as que estão mais determinadas a impor ou defender, até a morte, suas crenças e padrões culturais. Nem que para isso seja preciso matar, seja lá em nome de qual deus.

Ainda no calor do atentado terrorista contra o Charlie Hebdo, a França decidiu proibir os muçulmanos de rezar em público. Já havia proibido, anteriormente, o uso do hijab (véu islâmico integral) em locais públicos. Para os franceses de fé islâmica e para os imigrantes, há cada vez menos liberdade, igualdade e fraternidade.

Qualquer semelhança com um passado nem tão distante que resultou em perseguição a judeus (e também a ciganos, negros, gays etc.) não é mera coincidência. Restrições, ao que tudo indica, deverão aumentar, cada vez mais, em relação aos praticantes do islamismo e imigrantes em geral. Qual o próximo passo? Colocá-los num gueto? A ascensão de grupos de direita, principalmente na Europa, e a propagação de discursos racistas contra os imigrantes (como no passado contra os judeus) parece que tem tudo para se repetir, com trágicas consequências.

A história deveria servir para evitar a reprodução de erros que custaram muito caro. Mas a espécie humana tem enorme inclinação – por conta da ganância, do lucro, da exploração e do preconceito – para criar tensões que resultam em guerras. Novos conflitos, de grandes proporções, entre grupos extremistas do Ocidente e Oriente não parecem muito distantes. Quase mil anos depois das Cruzadas, a "guerra santa", que durou cerca de 200 anos, com milhares de mortos, setores radicais do mundo ocidental cristão e fanáticos muçulmanos estão novamente chocando o ovo da serpente, com consequências imprevisíveis.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.
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