por
Celso Vicenzi*
Os veículos de comunicação têm aproveitado os acontecimentos que resultaram no atentado terrorista ao Charlie Hebdo para reiterar os valores da liberdade de expressão. Em muitos casos, essa defesa aconteceu sem que o conceito fosse plenamente explicitado para além do senso comum. Pela narrativa de compenetrados locutores, comentaristas e “especialistas”, nada pode se opor a essa liberdade. Alguns comentaristas foram além e utilizaram os últimos acontecimentos para dizer que quem defende a regulamentação da mídia é inimigo da liberdade de expressão e adepto da censura. Duas coisas completamente diferentes são incorporadas, sutilmente, aos acontecimentos, muito mais para uma defesa de interesses corporativos, comerciais e políticos do que para propugnar pela defesa de interesses públicos e universais.
Ao contrário do que expressa o senso comum, liberdade não é o direito de fazer tudo o que se quer. Até em dicionários esses limites aparecem claramente. Segundo, por exemplo, o Caldas Aulete, liberdade é a “possibilidade de agir segundo a própria vontade (dentro dos limites da lei e de normas socialmente aceitas)”. Liberdade e responsabilidade estão intrinsicamente ligadas.
Vários filósofos se debruçaram, ao longo da história, sobre esse emaranhado território. Immanuel Kant, considerado um dos pais da filosofia moderna, diz que só é livre aquele que age exclusivamente com base na razão. E mostra o quanto a liberdade está ligada à responsabilidade: somos livres para agir, desde que não causemos dano à liberdade do outro. Ou, como ele mesmo escreveu: “Ninguém pode me constranger a ser feliz à sua maneira (como ele concebe o bem-estar dos outros homens), mas a cada um é permitido buscar a sua felicidade pela via que lhe parecer boa, contanto que não cause dano à liberdade dos outros (isto é, ao direito de outrem) aspirarem a um semelhante, que pode coexistir com a liberdade de cada um, segundo uma lei universal possível”.
Quem advoga que não pode haver limites para a liberdade de expressão teria que compactuar, por conseguinte, com a barbárie ou a inexistência de direitos humanos. Com a completa irresponsabilidade por seus atos. Se a liberdade não aceita limites, é possível submeter cidadãos e cidadãs a situações monstruosas que, em última instância, seriam a própria negação de sua humanidade. Alguns exemplos: em nome da liberdade de expressão pode-se estimular a pedofilia? O estupro? O racismo? A tortura? Pregar a morte, abertamente, de outros seres humanos? (Bandido bom é bandido morto! Morte aos gays! Acabem com Israel! Exterminem os palestinos!).
A resposta é “não”. Porque há um componente “destruidor” no exercício de uma liberdade sem limites que leve em consideração apenas o direito de dizer e fazer o que se bem entender, sem se preocupar se isso viola outros direitos ou desencadeia reações que podem violentar ainda mais outros seres humanos, que podem provocar mortes em grupos sociais, minorias étnicas ou, ainda, propugnar abertamente por guerras contra outros povos, que venham a ser declarados “inimigos”.
Há consequências em todo ato humano. As mensagens que os veículos de comunicação emitem, cotidianamente, reforçam ou amenizam preconceitos, ódios, discriminações, injustiças, humilhações...
A palavra, o desenho, a fotografia, o título, a legenda, o comentário, a reportagem, o vídeo, a imagem – todo o arsenal de técnicas e conteúdos que os veículos de comunicação utilizam e divulgam diariamente – não são neutros. De algum modo desenham modelos de sociedade que podem ser mais inclusivos ou excludentes. Podem construir ideologias solidárias ou individualistas; interceder por justiça social ou justificar a desigualdade; aceitar o diferente ou ampliar a hostilidade; romper com tradições perversas ou incentivá-las; podem transmitir mensagens de paz ou acirrar conflitos que resultem em guerras.
Para não poucas pessoas, o humor dos chargistas do Charlie Hebdo, sobretudo o de conteúdo religioso, era profundamente agressivo e de mau gosto. Algo que, não raro, excedia o humor e se aproximava mais da ofensa, gratuita, e de menosprezo à crença de bilhões de pessoas, de escárnio àquilo que lhes é mais sagrado. Nada, em princípio, é intocável, mas é preciso saber que nossos gestos e mensagens tocam o coração das pessoas. E se prestam, de alguma forma, a fazer avançar ou retroceder os valores humanos. A liberdade de expressão é um valor, mas não está acima de outros.
O problema é saber onde passar a régua do que é tolerável. Porque, por mais brando que seja o humor ou a opinião, sempre que valores forem confrontados e pessoas ou instituições criticadas, haverá reações de quem considera que o padrão aceitável foi ultrapassado.
Seria desejável que todas as divergências ou eventuais excessos pudessem ser arbitrados, de alguma forma, no campo jurídico, enquanto o debate, o diálogo, a diplomacia – sem abrir mão da crítica – pudessem encontrar novas formas de convivência entre pessoas e povos. Mas as leis são apenas um espelho da sociedade, em que os embates, políticos, econômicos e sociais acontecem. E boa parte das leis é também uma representação da cultura, das crenças, da moral e da ideologia de um povo. Portanto, costumam reforçar muito mais o status quo do que amparar o direito da maioria dos injustiçados. E, no campo internacional, costumam ter pouco efeito sobre a independência de cada Estado – alguns deles, inclusive, agem à revelia de decisões da ONU.
E, afinal, nem tudo se resolve nos tribunais. Quando há um embate de modelos de sociedade, a informação, o esforço de compreensão, a aceitação das diferenças e costumes, os acordos justos, as campanhas educativas e outras ações podem ser a melhor receita para uma vida comunitária mais estável e menos violenta. É provável que o atentado terrorista em solo francês não teve apenas as charges como elementos motivadores, mas um conjunto de situações históricas, de guerras, de humilhações e de racismo que contribuíram para o trágico desfecho.
Imigrantes, sobretudo os muçulmanos, são tratados como cidadãos de segunda classe, discriminados, olhados com preconceito e, mesmo para seus descendentes que já nasceram em solo francês, as oportunidades são muito restritas. O envolvimento da França em guerras coloniais ou em forças de coalizão que combatem o terrorismo em vários países, com ações que acabam atingindo a sociedade civil, também são o estopim de atos extremos, principalmente protagonizado por jovens com desejos de vingança.
Há, ainda, um outro componente gerador de permanente tensão: a injusta distribuição de renda, fonte primária da maioria dos conflitos. Enquanto houver assimetria nos negócios entre nações, exploração do trabalho humano, enquanto se mantiver, por diferentes meios – uns mais violentos, outros menos – seres humanos distantes de uma vida digna, enquanto se propugnar mais por valores individuais do que coletivos, enquanto tentarmos impor a outros o nosso modelo de princípios, estaremos sentados, inevitavelmente, sobre um barril de pólvora. As injustiças sociais sempre forneceram combustível para embates violentos.
Também não são poucos os exemplos, na história da humanidade, em que pessoas se dispõem a matar por uma ideia, sobretudo política ou religiosa. Paradoxalmente, são pessoas que professam ideologias baseadas no “divino”, no “sagrado” valor à vida, as que estão mais determinadas a impor ou defender, até a morte, suas crenças e padrões culturais. Nem que para isso seja preciso matar, seja lá em nome de qual deus.
Ainda no calor do atentado terrorista contra o Charlie Hebdo, a França decidiu proibir os muçulmanos de rezar em público. Já havia proibido, anteriormente, o uso do hijab (véu islâmico integral) em locais públicos. Para os franceses de fé islâmica e para os imigrantes, há cada vez menos liberdade, igualdade e fraternidade.
Qualquer semelhança com um passado nem tão distante que resultou em perseguição a judeus (e também a ciganos, negros, gays etc.) não é mera coincidência. Restrições, ao que tudo indica, deverão aumentar, cada vez mais, em relação aos praticantes do islamismo e imigrantes em geral. Qual o próximo passo? Colocá-los num gueto? A ascensão de grupos de direita, principalmente na Europa, e a propagação de discursos racistas contra os imigrantes (como no passado contra os judeus) parece que tem tudo para se repetir, com trágicas consequências.
A história deveria servir para evitar a reprodução de erros que custaram muito caro. Mas a espécie humana tem enorme inclinação – por conta da ganância, do lucro, da exploração e do preconceito – para criar tensões que resultam em guerras. Novos conflitos, de grandes proporções, entre grupos extremistas do Ocidente e Oriente não parecem muito distantes. Quase mil anos depois das Cruzadas, a "guerra santa", que durou cerca de 200 anos, com milhares de mortos, setores radicais do mundo ocidental cristão e fanáticos muçulmanos estão novamente chocando o ovo da serpente, com consequências imprevisíveis.
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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna
Letras e Caracteres.