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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Presidente


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna

 A Izilda era uma menina alegre, faladeira e debochada, agitava o recreio com suas tiradas engraçadas e comentários mordazes do tipo metralhadora giratória. O nome da santa criança, então muito popular no interior paulista, felizmente não a impedia de imitar os professores pra nos fazer rir e animar a torcida em qualquer jogo. Queria cursar administração e trabalhar na grande fábrica de meias que era o orgulho da cidade.

Estudamos juntas uns três anos, e daí cada uma tomou o seu rumo. Tempos depois, numa tarde nublada, eu a vi num ponto de ônibus, com a barriga enorme e a expressão de desamparo, os olhos opacos, dos quais desciam lágrimas teimosas, que ela secava com as mãos. Trazia uma aliança no anelar esquerdo. Ainda não tínhamos chegado aos dezessete anos. Não me aproximei, ela nem me olhou, nunca mais nos vimos.

Para matricular os filhos na escola, era preciso declarar a profissão do pai. A da mãe era automaticamente preenchida como "do lar", sem mais. Mas a nossa mãe era professora, precisávamos retificar sempre. A profissão feminina mais disseminada, depois de empregada doméstica, junto com enfermeira e cabeleireira. Tudo o que as mulheres faziam para "ajudar o marido", ou mesmo para sustentar os filhos sozinhas, era desimportante e entrava na conta da obrigação, na base do quebra-galho. Cresci cercada de mulheres que davam um duro danado, submetidas e desvalorizadas, sem perspectiva de crescimento pessoal ou carreira. Menos ainda em plena ditadura militar, quando qualquer comportamento ou aspiração fora da caixinha era um baita risco, você não faz ideia.

Aos seis anos, a Leila curte ler livros de bichos e aventuras, visitar os avós e primos na Espanha e brincar com a irmã menor. Leva uma vida boa, de ir à escola e ter tempo livre. Adoro ver seu jeito leve e solto de criança cujo futuro se fará a seu tempo, sem muita pressão e ansiedade, filha de pais que escolheram descomplicar. No aniversário em que nos encontramos, há poucos dias, sua mãe nos contou da recente conversa da Leila: quer ser presidente da república. E o que você vai fazer como presidente? Dar todo o dinheiro do governo aos pobres, reciclar o lixo e limpar o planeta. Acordes iniciais da promissora, tanto quanto imprevisível, sinfonia da Leila.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

terça-feira, 28 de julho de 2015

A orquestra e o país

por Fernando Evangelista*

Meu nome é Wesley, com y, tenho 29 anos e trabalhava, até sexta-feira passada, numa ONG dedicada a ensinar música erudita para jovens da periferia. Tudo ia bem, como nas propagandas de margarina, até que um patrocinador faliu, outro morreu, veio a crise e eu acabei metendo o nariz onde não devia.  

A ONG, criada por um maestro e dois irmãos, começou pequena, oferecendo aulas gratuitas de piano e violino. Com apoio do município e de um patrocinador privado, além de doações ocasionais, ela cresceu, ampliou os cursos e formou uma orquestra

Eu não entendo nada de música, mas aquela orquestra era coisa fina. As apresentações, concorridíssimas, lotavam praças, teatros e ginásios. Dava gosto de ver. Ano retrasado, a orquestra ganhou um prêmio do Ministério da Cultura e apareceu numa reportagem em rede nacional. Foi um sucesso.

Minha função na ONG estava escrita numa placa de madeira sobre a mesa: telefonista. Eu mesmo comprei a placa numa feira de artesanato. Diariamente, recebia uma porção de telefonemas e atendia cada um com atenção e gentiliza. Modéstia à parte, sempre fui bom de papo. Tinha especial simpatia pela Dona Dalva, que ligava quase todos os dias, por volta das cinco da tarde, para falar de um gato siamês recém-adotado.   

Mas aí começou o drama: o patrocinador da orquestra faliu. E como notícia ruim nunca vem sozinha, o prefeito bateu as botas, abotoou o paletó, e assumiu o vice, que não gostava do maestro, nem de música, e decidiu cancelar o apoio. O dinheiro acabou. 

Convocou-se uma reunião de emergência. Foi chamado o Conselho consultivo, o Conselho deliberativo e Conselho financeiro, cada qual munido de calculadora, tabela e planilha. Na sala de ensaios, umas 30 pessoas espremidas e abatidas ouviram o maestro, que vinha a ser também o diretor e fundador da ONG, anunciar: 

– Ou encontramos uma saída ou teremos que fechar. 

Aquele homem, sempre tão otimista, parecia a sinfonia da desesperança. O vice-diretor também estava arrasado. O maestro passou a palavra ao grupo. Ninguém falou nada. Então, meio sem pensar, levantei timidamente o braço, o coração deu aquela disparada, devo ter ficado vermelho.  

– Fale, Wesley – autorizou o maestro. 

Confesso que sou atropelado pela vaidade quando ouço o meu nome dito assim, com certa formalidade. Cá entre nós, é um nome de presença. Wesley, com y. Um dia vou ser deputado. 

– Por que não vendemos alguns instrumentos? – sugeri.  

As pessoas me olharam de um jeito estranho. Não gosto que me olhem assim. Alguém perguntou há quanto tempo eu trabalhava como telefonista. Respondi. 

Os representantes do Conselho consultivo, do Conselho deliberativo e Conselho financeiro, canetas suspensas sobre as folhas rabiscadas de cálculos e dívidas, não disseram nada. Quem disse foi o maestro. 

– Pode ser uma saída. 

E assim foi feito. Primeiro foram vendidos os carrilhões, xilofones, vibrafones, marimbas, pratos, triângulos e castanholas. Quando os alunos de percussão chegaram à escola, deram de cara com o recado pregado na porta de entrada. Foi de cortar o coração.   

Era, porém, por uma boa causa. Como se diz por aí, é “melhor perder alguns anéis do que perder o dedo”. Entrou dinheiro, as coisas estavam saindo como planejado. “Boa, Wesley”, disse para mim mesmo, orgulhoso. Um dia vou ser deputado. 

A alegria durou pouco. Logo se constatou que o valor arrecadado era insuficiente. Aí foi a vez de vender as flautas, clarinetes, saxofones, oboés, trompas, trombones e trompetes. Os alunos de sopro se surpreenderam com o aviso pregado na porta de entrada. Outra comoção. 

Alguns dias depois, os Conselhos administrativo, deliberativo e financeiro constataram que a conta ainda não fechava. E, por unanimidade, decidiu-se seguir com as vendas. E lá se foram os violinos, violas, violoncelos, contrabaixos e o piano de cauda. Falei para um dos alunos, o mais abatido de todos, aquele ditado dos anéis e dos dedos. Ele me mandou à merda.  

Outra vez reunidos, os Conselhos decidiram seguir com as vendas. Mas vender o quê? 

Já não havia mais nenhum instrumento para vender. 

Vou dizer uma coisa: orquestra sem instrumento é um troço feio pra burro, feio e triste como um rio seco. Parece cemitério abandonado. Ouvi uma voz interna me dizendo: “Culpa tua, Wesley, culpa tua”. Eu nunca vou ser deputado. 

Para tristeza geral, nessa última sexta-feira, 24 de julho de 2015, a ONG fechou as portas definitivamente. Quando eu estava saindo, depois de limpar minha mesa e guardar na mochila a plaquinha de madeira, ouvi o telefone tocar. Fiquei na dúvida, não sabia se atendia ou não. Atendi porque achei que fosse dona Dalva. Era engano.   

Cheguei em casa, liguei a televisão e vi o ministro da Economia, acompanhado de uma trupe de assessores - munidos de calculadoras, tabelas e planilhas -, explicando as razões do novo pacote econômico. Ele falou termos esquisitos como “austeridade” e “governabilidade”. E, coincidência estranha, falou também sobre perder alguns anéis para não perder os dedos. 

Apesar de eu não entender nada de economia, nem de anéis, a lógica da autoridade me pareceu semelhante à minha ideia infeliz de vender os instrumentos para salvar a orquestra. 

Pensei em escrever uma carta para o ministro, contando esta história. Mas acho que o ministro não tem tempo para ler essas coisas – ele está ocupado, com suas planilhas, calculadoras e tabelas, salvando o país

Tomara que consiga.

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Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Calendário

por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Em algum momento do passado remoto, nossos ancestrais começaram a juntar observações sobre mudanças na vegetação, chuvas, temperatura e comportamento dos outros animais com a repetição periódica dos eventos, e concluíram que vivíamos sob o efeito de um fenômeno chamado tempo. Depois inventaram o calendário, tornando possível programar a vida de acordo com os humores sazonais, semeaduras e colheitas. Mais recentemente, com o imposto de renda, a fatura do cartão de crédito e os aniversários. Dependendo do temperamento e da rotina individuais, um ano da nossa vida moderna pode transbordar de celebrações as mais variadas, religiosas, cívicas, sociais, familiares e pessoais.

A memória me traz um dos grandes romances da minha adolescência, “O tempo e o vento”, do gaúcho Érico Veríssimo, uma caudalosa saga dos começos do Rio Grande do Sul. Li os sete volumes de enfiada, como se perseguisse um seriado sobre as aventuras dos Terra-Cambará. Logo nas primeiras páginas, Ana Terra, moradora, com os pais e dois irmãos, de um campo perdido na conturbada fronteira das colônias disputadas por Espanha e Portugal, expressava seu profundo tédio pela rotina de trabalho incessante e isolamento, tal que não lhe permitia acompanhar a sequência dos dias da semana – que, afinal, não fazia nenhuma diferença, pois eram sempre iguais – ou saber exatamente em que ano estavam. Para a inquieta e curiosa leitora, ávida por finalmente completar os benditos dezoito anos, que nunca chegavam, uma inimaginável desconexão.

Fazemos com o tempo todo tipo de associações: “não lembro o ano, mas foi quando viajei de avião pela primeira vez”, ou “vi esse filme na época do impeachment do Collor”, ou ainda “quando isto aconteceu, eu estava grávida da segunda filha”. Isto porque, no fim das contas, o tempo fica marcado dentro da gente, os números são apenas uma referência, à qual nos ensinaram a dar demasiada importância.

E as datas comemorativas? Dá de um tudo, especialmente depois que a internet nos colocou nessas redes sociais. Com a minha enorme preguiça de celebrações obrigatórias, passo batida por todas elas. Até para aniversários me falta competência, o que às vezes me coloca numas tremendas saias justas.

Um dia desses, avisaram que era Dia do Amigo. Quem precisa dele? O encontro, a afinidade, a empatia, o prazer do contato e da companhia, a história compartilhada, o silêncio cúmplice, a conversa – fiada ou relevante – quando tudo isso se junta, com a assessoria de uma taça de vinho autorreabastecida, o tal Dia acontece. Beijinho no ombro pro calendário.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Matem o comunista

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.



por Fernanda Pompeu    ilustração Fernando Carvall

Hiram de Lima Pereira
Nascimento: 3 de outubro de 1913
Cidade natal: Caicó - RNbr
Desaparecido: 15 de janeiro de 1975
Cidade final: São Paulo - SP

Quem botou as mãos nele foi o pessoal da Casa da Vovó, apelido que os agentes de repressão davam ao Doi-Codi de São Paulo. O sequestro de Hiram de Lima Pereira fazia parte do plano de dizimar os dirigentes do PCB - Partido Comunista Brasileiro. Seu currículo político era impressionante: deputado federal pelo Rio Grande do Norte. Redator, em Recife, do Folha do Povo, jornal oficial do Partidão. Secretário de Administração na prefeitura de Miguel Arraes.

Com o Golpe de 1964, Hiram entrou na clandestinidade. Seguiu comunista, seguiu atuando. Como todo o PCB, nunca pegou em armas contra a ditadura militar. Acreditava no trabalho com as massas. Segundo Célia Pereira, companheira de Hiram, o marido estava fragilizado, quase cego por conta de catarata e glaucoma. Também sofria de problemas cardíacos. Os torturadores da Casa da Vovó levaram Hiram para o centro clandestino de tortura e morte em Itapevi. Depois, ninguém sabe, ninguém viu.

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Fernanda Pompeu é a mulher do texto
Fernando Carvall é o homem da arte

terça-feira, 21 de julho de 2015

Família Feliz

por Fernando Evangelista*

Saí do elevador, percorri o corredor mal iluminado e no instante em que toquei a campainha, li a plaqueta pendurada na porta do apartamento: “aqui vive uma família feliz”. 

Quase como um pressentimento, pensei em inventar uma desculpa, dar o fora e cancelar o jantar. Mas seria indelicado da minha parte e, além do mais, eu estava curioso. O casal feliz havia anunciado, por telefone e por e-mail, uma “grande novidade” e eu seria o primeiro a saber.  

A anfitriã me recebeu com um sorriso largo, contrastando com as olheiras fundas e o semblante cansado. Ouvi o marido gritar da cozinha um seja bem-vindo de megafone. Abraços daqui e dali, Caetano na vitrola, vinho em cima da mesa, cheirinho de tempero, clima gostoso. 

Os dois se conheceram na graduação, se casaram, tiveram dois filhos, os filhos já estavam crescidos e cursando a universidade. “Passa tão rápido”, murmurei, enquanto observava as fotos da família nos porta-retratos da sala. E pensei na plaquinha da entrada e na minha má vontade com essas afirmações de felicidade. Afirmações ou ostentações?  

“Felicidade”, dizia minha vó, “é uma sensação circunstancial e não deve ser usada para humilhar os outros”. Vó Rosa viveu 101 anos e acreditava nas alegrias degustadas em silêncio e com humildade. Para ela, “alegria em voz alta só no carnaval e nas partidas de futebol”, coisas, aliás, das quais nunca gostou. 

Há, porém, por toda parte, dentro e fora das redes sociais, um mundaréu de felizes fanáticos, seres barulhentos que gostam de exibir, a toda hora e a qualquer passo, suas magníficas vidas de propaganda de margarina. Vidas sem problemas nem angústias. 

Além de colocar plaquinhas na porta, notas nos jornais, fotos nas revistas e posts no facebook, esse pessoal gosta de decorar o carro com mensagens e confissões edificantes. Já vi um assim: “Sou feliz porque sou católico”. 

– Afinal, qual é a novidade? – eu perguntei, voltando a minha atenção ao jantar, enquanto minha amiga me servia o ravióli de mussarela com manjericão.    
       
– Decidimos dar um basta – ela disse. 

E me perguntou se eu lembrava a frase de Benjamin Disraeli que repetíamos na época de faculdade.

Frase? Não, eu não lembrava. Pedi, educadamente, que eles parassem de enrolar e contassem de uma vez a grande novidade. 

A novidade começa com uma tia solteirona, que vivia sozinha em Ribeirão Preto (não lembro se tia dela ou dele), e que bateu as botas, foi desta para uma melhor, descansou. E, além de descansar, deixou uma herança para o casal. “Nenhuma fortuna”, explicou o marido, “mas nada desprezível”. 

Chegara no momento certo, a herança. Ambos estavam de saco cheio da rotina e dos empregos, da cidade violenta e engarrafada, com discussões domésticas acumulando mágoas e desgastando a relação. 

– Vamos pegar esse dinheiro inesperado – ela contou – vender os dois carros, vender o apartamento e curtir a vida.  

– Sério? E vão fazer o quê? – perguntei, pensando outra vez na plaquinha da porta de entrada.

– Talvez a gente compre um barco e veleje por aí.  

Dois anos se passaram. 

Nessa última quinta-feira, fria e chuvosa aqui no Rio Tavares, recebi uma carta deles e algumas fotos das Ilhas Seychelles, no Oceano Índico. Fiquei impressionado, em primeiro lugar, por descobrir que as Ilhas Seychelles realmente existem e, em segundo, por ver aqueles dois numa boa. Pareciam, talvez sem querer parecer, felizes de verdade.  

Com letra bem desenhada, no cantinho esquerdo da carta, na vertical, estava a frase que repetíamos no tempo de faculdade e que eu não lembrei naquela noite: “a vida é muito curta para ser pequena”.  

No dia seguinte, com olheiras profundas e sem heranças, sem carro e sem um imóvel próprio, acordei cedo e fui ao centro. Comprei uma plaquinha de madeira, em estilo de guirlanda de natal – absolutamente horrível – com os dizeres: “Aqui vive uma família feliz”. E preguei na porta de entrada da minha casa. Talvez funcione para alguma coisa, nem que seja para irritar os outros. 

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Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Máscaras


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Às vezes, parece que a morte está atrasada com as encomendas, de tanto que atravessa os caminhos à nossa volta. Nos últimos tempos, está caprichando no serviço, tanto entre pessoas públicas da minha estima quanto no círculo próximo ao coração. Sem falar no cenário mais amplo, da mortandade desnecessária e banalizada na atuação das nossas polícias e de grupos criminosos, das guerras civis, conflitos internacionais e atentados terroristas. Mas acho que nesses casos a personagem principal nem é solicitada, pois a produção no atacado dispensa seus trabalhos. E se repete a velha história dos humanos que eliminam outros humanos, em nome de que mesmo? Nem se lembram mais, com tanto sangue nos olhos e no juízo.

Mas ela pode ser também sabida, esperada e serena. Meses atrás, uma querida amiga partiu do nosso convívio, cercada de afetos e cuidados, numa passagem tranquila e suave. É certo que lutou com fúria para que seu corpo vencesse os ataques de uma doença insidiosa, num embate de força e determinação de ambos os lados. Venceu o lado mais experiente, que conhece há muito mais tempo os segredos dessa guerra.

Durante a noite em que estive muito tempo tratando de acolher a notícia da sua partida, ela esteve viva como nunca. Entre outras situações, em Buenos Aires, uns dez anos atrás, quando ambas participávamos de uma longa reunião de trabalho. Surgiu um raro momento de folga, e saímos num pequeno grupo a andar por Caminito. Sob um céu de aquarela e a luz amarelada do outono no sul, perambulamos por uma feira de artesanato e bugigangas turísticas. De longe ela avistou lindas máscaras venezianas expostas em determinada banca. Provou várias e escolheu duas, em meio a muitos comentários divertidos e gargalhadas, jamais economizadas. (Máscaras que talvez tenham sido usadas no embate final, para tentar iludir o outro lado.)

As dezenas de pulseiras, adornos inseparáveis do seu braço esquerdo, suas echarpes, brincos, colares, anéis, sapatos número quarenta, casacos que a protegiam dos intensos frios do norte, outros agasalhos, cintos e sabe-se mais o que, foram organizados pela família e repartidos entre as pessoas queridas, convidadas para uma celebração da sua vida, seguida de festa na sua amada Casa Azul que, na verdade, era de todos nós.

Se eu tivesse estado lá, teria procurado e trazido comigo as máscaras de Caminito. Nas horas de desconsolo, vazio ou desamor, com uma delas me olharia no espelho e me veria mais forte e preparada para encontrar aqui dentro a saída. A outra me caberia com perfeição para aqueles momentos em que o espelho devesse me devolver em dobro a alegria e o transbordamento dos sentidos.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Um homem bom


por Fernando Evangelista*

Ditas de supetão, muitas vezes sem sentido e sem contexto, as frases eram lançadas no meio de uma conversa qualquer:

– Basta de experiências, beba Caxambu. 

E o pai ria sozinho. Ele mesmo falava e apenas ele entendia e eu ficava com cara de ponto de interrogação.

Dentro do carro, me levando à escola pela manhã, ele dizia sério, com voz de barítono:

– Toque outra vez, Sam.

– Quem é Sam? – eu queria saber, embora intuísse que ficaria sem resposta. 

– Prendam os suspeitos de sempre.

– Pai, para com isso!

– Sempre teremos Paris.

Ele se divertia às custas da minha ignorância.

Anos mais tarde, descobri que “basta de experiências, beba Caxambu”, era uma publicidade de água mineral. E quando vi o filme Casablanca pela primeira vez, reconheci, nos diálogos de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, as citações que meu pai repetia naquela época e que continua repetindo ainda hoje.

Incompleto, de mão única, engraçado para ele e frustrante para mim, esse diálogo marcava a lonjura de nossos mundos, tão distantes quão distintos.

Às vezes as frases eclodiam como ordens ou reprimendas:

– Alto lá, moleque, eu sou da época do elixir paregórico!

– Ah?

– Dura Lex Sed Lex, no cabelo só Gumex.

Meu pai nasceu nos anos 30, numa Florianópolis muito pequena, quase uma aldeia, e as pontes que o ligavam ao resto do mundo eram o rádio – com suas novelas inesquecíveis e intermináveis; o cinema – com faroestes americanos dominando as matinês dos finais de semana – e, finalmente, a literatura, com as histórias de Edgar Allan Poe, Emílio Salgari, Rafael Sabatini, Edgar Rice Burroughs no topo da lista.

Se o pai começou a ver filmes e a ler para acessar mundos desconhecidos, eu o fiz para penetrar no mundo dele, para entender suas frases e assim, “entendido”, manter um diálogo que fizesse sentido para mim e despertasse algum interesse nele.

Futebol seria um caminho mais simples e mais rápido, caso ele entendesse alguma coisa do riscado. Nunca entendeu e nutriu, ao longo da vida, uma recíproca relação de desconfiança com a bola - nas poucas ocasiões em que se arriscou a jogar, deixou um rastro de vidraças quebradas, canelas inchadas e gols contra.

De minha parte, nunca gostei de papos jurídicos, nem de vê-lo, madrugada adentro, trabalhando naqueles processos intermináveis, que ocupavam sua mesa e o seu tempo. Gostava, porém, de vê-lo com a toga preta, que lhe dava um ar de super-herói, uma mistura de Batman e Zorro.

Unidos pelo afeto, mas sem interesses comuns, seguimos tropeçando em diálogos incompletos. E então, no fim da minha adolescência, a literatura nos ofereceu um amor em comum. Foi paixão à primeira vista e à altura de Casablanca e viramos, ele e eu, leitores de Carlos Heitor Cony, escritor fascinado por balões de São João e pelo assassinato, jamais esclarecido, de uma milionária chamada Dana de Teffé.  

Devoramos todos os livros do Cony. Além dos romances, líamos e relíamos suas crônicas publicadas na imprensa e as melhores guardávamos numa pasta amarela. Essa pasta, mais do que um depósito de textos velhos, era o indício de uma aproximação, uma esperança de ponte entre nós.    

Outros autores e outros filmes foram sendo descobertos e compartilhados. Também virei fã de Casablanca, embora não seja capaz de reproduzir, como ele, os diálogos da primeira à última cena. Ele assistiu ao filme centenas de vezes e não para de rever, para desespero de minha mãe que, bem antigamente, se comoveu com aquela história, mas se cansou de tantas reprises e de tantas citações.

O pai não se cansou. Cada vez que revê Casablanca ou lê uma crônica do Cony – daquelas que mereceram abrigo na pasta amarela, – ele se emociona e volta aos “anos mais antigos do passado”, volta ao seu tempo de descobertas, quando era um guri magrelo, de bigodinho indecente, que fumava Hollywood sem filtro e fazia política estudantil, usando qualquer meio-fio ou para-choque de carro para inflamados discursos contra prefeitos e presidentes. Entre um e outro ato político, sonhava com o Rio de Janeiro e com as pernas da Marlene Dietrich.

Neste último final de semana, no apartamento dele e da mãe, durante a macarronada nostra di ogni domenica, lembrei-me daquela famosa mistura linguística, ouvida à exaustão na infância: “Dura Lex Sed Lex, no cabelo só Gumex”.

– É o slogan de um gel de cabelo – ele explicou. – A frase foi inventada numa transmissão radiofônica, durante um jogo de futebol. O locutor precisava anunciar o gel e, sem saber o que dizer, saiu-se com aquilo.

Ele me pergunta se eu sei quem era o locutor.

– Não faço ideia.

– Ary Barroso, autor de Aquarela do Brasil.
 
– É? E a frase do elixir paregórico?

Aí o pai empertigou-se, deitou cuidadosamente o garfo sobre o prato, ajeitou o guardanapo sobre o colo, pegou o copo de vinho, deu um gole e, sem disfarçar o orgulho, disse:

– Essa é minha! 

Ultimamente, descobrimos uma nova paixão em comum: as séries. A genial Família Soprano foi a primeira e, ano passado, assistimos à Breaking Bad, enredo capaz de causar dependência nos telespectadores. Ainda no domingo, quando nos despedíamos em frente à porta do elevador, ele disse, citando uma passagem famosa da série:

- Aprendi na reabilitação a aceitar quem eu realmente sou. Eu aceito quem eu sou.”.

        – E quem você é?, perguntei, dentro da brincadeira e já de dentro do elevador.  
– Eu sou o cara mau” ele respondeu.

Rimos enquanto a porta se fechava.

Saí satisfeito, as frases faziam sentido. Havia diálogo e interesses em comum. Havia cumplicidade e ela não estava, apenas, naquela pasta amarela.

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Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Jornal do dia


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

Nem mais nem menos do que todos os dias, nesses tempos comprimidos e turbinados pela velocidade em que a roda-mundo-roda-gigante tem rodado, muitas coisas estão sempre acontecendo. Surpreendentes, mas nem tanto, complexas algumas, contundentes e desconcertantes, dá de tudo. São a essência da crônica.

Muitas delas me chamam a atenção, mas devo confessar que tenho tentado não me entupir de acontecimentos, porque desanima e intoxica. É só pensar na situação econômica, na indigência política e na extrema crueldade dirigida à Dilma, atacada com um tal nível de desrespeito e agressão, que só posso interpretar como misoginia, poderosa ferramenta desqualificadora das mulheres que paira acima de qualquer possibilidade de avaliação real.

Também nas ratazanas se aproveitando e se fartando no banquete do poder a que entraram por delegação do eleitorado. Tem gente achando bom, mas a fatura, em variados itens e cifras corrigidas, será cobrada lá na frente, e aí o esperneio será inteiramente inútil.

E no racismo nosso de cada dia - jamais assumido, sempre o dos outros - mostrando sua cara imunda, em rede nacional de televisão e no cotidiano infernal que impingimos, impunemente, a tantíssima gente, da forma mais cínica e covarde.

Daí: os gregos, inventores da democracia, que vinham pagando com sangue, suor e lágrimas dívidas inventadas, tomam a dura decisão de peitar a tal troika e tentar retomar o controle do país; minha mãe, do alto dos seus oitenta anos, que ultimamente parecia mais conformada com as mechas lambidas que a natureza plantou em nossas cabeças, se rebela e decide voltar a fazer permanente nos cabelos; e as gêmeas Olívia e Irene chegam ao mundo, pequeníssimas e apressadas, fazendo-nos recapitular, num curso-relâmpago, o que é realmente importante e valioso nesta roda-mundo-roda-gigante.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a:deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Teatrinho

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.


por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall

Lincoln Bicalho Roque
Nascimento: 25 de maio de 1945
Cidade natal: São José do Calçado - ES
Morte: 13 de março de 1973
Cidade final: Rio de Janeiro - RJ
Causa da morte: dilacerações por tortura

Houve um tempo no longo tempo da ditadura militar que a ordem da repressão era encenar mortes. Os grandes jornais ajudavam a mentira ao noticiar versões oficiais de atropelamentos, tiroteios, suicídios. Foi assim com Lincoln Bicalho Roque, um dos dirigente do PCdoB. Ele foi preso, torturado e morto no Doi-Codi do Rio de Janeiro. Depois levaram seu corpo para as imediações do Pavilhão de São Cristovão, zona central da cidade, e o metralharam. Lincoln foi mais um - entre muitos outros - que morreu trocando tiros com a polícia. Mais um caso de defunto atirador.

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Fernanda Pompeu é a mulher do texto
Fernando Carvall é o homem da arte

terça-feira, 7 de julho de 2015

Delito e mistério no colégio católico


por Fernando Evangelista*

Numa quinta-feira de setembro de 1988, repetindo uma rotina de anos, o zelador do colégio abriu a porta da recepção, olhou o relógio de parede, conferiu com o seu relógio de pulso e suspirou satisfeito – estavam sincronizados: eram seis e meia da manhã. Em seguida, arrastou as cortinas para que entrasse um pouco de luz, ajeitou o tapete vermelho da entrada, estranhamente enrugado, organizou lado a lado as caixinhas de chá inglês, colocou um por um dos biscoitos Exupéry dentro de um recipiente de vidro, fez café, deixou a garrafa sobre a mesinha lateral e, quando ia ligar a iluminação do aquário, sentiu um calafrio: os peixes haviam sumido.

Símbolo não oficial da instituição, metáfora do ensino que se pretendia exemplar, o aquário com dezenas de peixes coloridos, alguns enormes, todos meio obesos, era o xodó da Madre Superiora. Além de superiora, a Madre era uma diretora linha dura, temida pelos professores, funcionários e alunos. Cochichava-se pelos corredores que até os bispos morriam de medo dela.  

A maioria dos habitantes do aquário tinha vindo do exterior, com exemplares importados do Vietnã, do Nepal e de outros lugares desconhecidos. Alguns chamavam atenção pelas cores brilhantes, especialmente o Chileno Dourado e o Yellow Tang.  O zelador coçou a cabeça, pressentindo tempestades, e concluiu que alguém surrupiara os 30 peixes de estimação da Madre. Mas quem faria isso?

Para piorar, três peixinhos foram encontrados mortos na calçada, quase em frente à porta da recepção. As vítimas eram o Chileno Dourado e as raridades asiáticas.

Foi um pandemônio. Pais foram chamados, aulas canceladas, cartas anônimas, com fofocas e intrigas, se multiplicaram. O fato se espalhou pelas ruas e ganhou destaque exagerado nas colunas sociais. Montou-se um intricado esquema de investigação, com interrogatórios constrangedores, ameaças de castigo, ameaças de expulsão, detonando uma boataria em série capaz de surpreender empreiteiros e cardeais. Os bagunceiros como eu, suspeitos de sempre, trataram de arranjar um álibi e algum apoio familiar.  

Quatro estudantes exemplares, nas notas e em comportamento, foram convocados para ajudar na investigação. Michel, meu amigo e vizinho, estava entre eles. Na manhã seguinte ao sumiço dos peixes, no palco do ginásio, acompanhada destes quatro alunos, a Madre proferiu um discurso que deixou todos, inocentes e culpados, cheios de apreensão e medo. Duas coisas que ela falou eu jamais esqueci:  

– Quem oferecer informações sobre esse ato de vandalismo, ato que desafiou e debochou de 100 anos de tradição, será recompensado.

Talvez sem saber, ela tenha inaugurado a delação premiada no Brasil. A frase final do discurso me marcou ainda mais:

– Por bem ou por mal, – disse a Madre, retorcendo os lábios, tentando controlar a fúria, – vou descobrir quem fez isso, porque eu conheço o mundo e as pessoas.

        “O mundo e as pessoas”, eu repetia mentalmente.

Nunca ninguém foi punido. O fato entrou para a história da instituição centenária e, até semana passada, o delito não havia sido esclarecido.

Mas alguns segredos não nasceram para a eternidade e aí neste último sábado, houve um encontro de ex-alunos num clube da cidade. Houve muita bebida, bebidas em excesso. E lá pelas tantas, houve também uma confissão.

Fui até a cabeceira da mesa, tirei de lá meu querido amigo Michel, sentei, peguei uma faca e bati no copo, pedindo silêncio. E então, para surpresa geral, revelei:

– Fomos nós, Michel e eu, que roubamos os peixes do aquário.

Fez-se um silêncio de perplexidade, daqueles que acompanham as revelações inesperadas. Mas depois foi um barulhão de vozes, com as pessoas perguntando ao mesmo tempo as mesmas coisas. Michel limitou-se a dizer: “Já era hora de contar. ”

Contei tudo. Ainda no começo daquele semestre, março de 1988, sem um objetivo definido, nós dois afanamos a chave da porta principal do colégio, que dava acesso à recepção, onde o aquário era exibido. Fizemos uma cópia naquele mesmo dia e devolvemos a original para que ninguém sentisse falta.

Mas o que fazer com a chave? Foi Michel, aluno acima de qualquer suspeita, quem teve a ideia de roubar os peixes e, se não falha a memória, o plano nasceu durante uma aula de Educação Moral e Cívica.

Lembrei-me de um aquário desativado na casa de minha Vó, que na época morava sozinha. Conversei com ela semanas antes da gatunagem.

– Vó, ganhei numa rifa 30 peixes e preciso de um lugar pra eles.

– Que rifa mais esquisita – ela disse, mas se prontificou a reativar o aquário e a acolher os novos hóspedes.

Por acaso, ouvindo uma conversa entre professores no corredor, descobri que seu Romero, o vigia noturno, estava com sarampo e não iria trabalhar. Aproveitamos a chance.

 Michel e eu carregamos um isopor cheio de água, pesadíssimo, para depositar os peixes. Da chegada à fuga, esse isopor foi a nossa cruz. Por causa do peso, na saída do colégio, despejamos um pouco de água no meio-fio e não nos demos conta, devido à escuridão e à adrenalina, de que os peixes asiáticos e o Chileno Dourado haviam mergulhado de cabeça na sarjeta.

Os anos se passaram, o colégio perdeu alunos e o ranço autoritário, eu perdi cabelo e outras coisas, Michel também perdeu cabelo, mas ganhou um bocado de dinheiro, trabalhando com informática e sistemas de vigilância. Nenhum de nós dois, apesar do episódio, enveredou pelos caminhos do crime.

Os peixes se adaptaram bem ao novo habitat e tiveram uma vida longa e saudável. Seria de bom tom dizer que, por todos estes anos, carreguei a culpa pela rapina. Mas não seria verdade porque, no fundo, eu me sentia orgulhoso e importante, tal qual um Ronald Biggs, por ter “desafiado 100 anos de tradição”. A única coisa a me pesar a consciência foi a morte daqueles três peixinhos que, do berço à cova, viveram sempre em mundinhos apertados.  

 Minha vó – e esta era a única certeza que eu tinha – nunca suspeitou de nada. Porém, alguns meses antes dela falecer, numa festa de família, com 101 anos, lúcida e dinâmica, olhando-me nos olhos, rindo da minha ingenuidade, e celebrando ela também um segredo de tantas décadas, contou:

– Fernando, escuta só, eu sempre soube a verdade sobre os peixes do aquário.

E riu discretamente, como aquele jeito de quem realmente conhecia bem o mundo e as pessoas.

* * * * * *

Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

A mídia comanda o retrocesso

por Celso Vicenzi*

Uma fotomontagem em que a presidenta Dilma Roussef aparece de pernas abertas, na boca de um tanque de gasolina de automóvel, jogou mais combustível na fogueira de ódio e insensatez que se espalha por todo o país. A imagem é chocante e não ofende apenas a mais alta autoridade do país, mas todos os cidadãos e, principalmente, as mulheres, no Brasil e no mundo. A metáfora visual é a de uma penetração sexual, de um estupro.

Essa afronta não é um caso isolado. Pelo contrário, a passividade das principais autoridades do país tem autorizado uma série de crimes, contra a democracia e contra a dignidade humana. Por trás de gestos mais raivosos, tresloucados e imbecilizados, foi tecida uma competente estratégia de propagar o ódio e promover a agitação social necessária à aplicação de um golpe de estado para o qual só parece faltar o acerto de data. Mais que um golpe contra o resultado das urnas, seria um golpe contra boa parte dos avanços civilizatórios duramente conquistados desde o fim da ditadura de 64. Some-se a isso uma intolerância religiosa que era até então desconhecida no país e que hoje grita seus slogans medievais muito além dos púlpitos, nos parlamentos e nas emissoras de rádio e tevê.

Depois da quarta derrota eleitoral à presidência, os setores mais conservadores da sociedade brasileira perceberam que, pela via democrática, suas chances de ascender ao Palácio do Planalto tornaram-se remotas. Se não foi possível convencer pelo voto, importantes setores da mídia, do parlamento e do judiciário desenharam nova estratégia. Os principais veículos de comunicação passaram a desenvolver, diariamente, uma estratégia que consiste em omitir o que há de positivo no país e exagerar na análise pessimista. Mais que isso: o que poderia ser uma excelente oportunidade para desnudar como funciona o esquema de financiamento de campanhas políticas e o uso da máquina pública e de empresas estatais para troca de favores – em todas as esferas, federais, estaduais e municipais – resultou em uma justiça caolha, uma mídia manipuladora e um Congresso Nacional retrógrado, centrados no objetivo de criminalizar um único partido, um único governo e, especialmente, Lula e Dilma.

O festival de imagens agressivas vem sendo produzido há muito tempo. Um dos casos mais recentes ocorreu na coluna do jornalista Ricardo Noblat, no jornal O Globo (29/6/2015), que pôs a cabeça degolada da presidenta Dilma em uma bandeja. O título acompanha o “primor” da ilustração: “Em jogo, a cabeça de Dilma”.

O jornal Correio Braziliense publicou no dia 8/9/2014, na capa, uma foto de Beto Barata em que uma metralhadora é apontada contra a face da presidenta, durante desfile militar de 7 de Setembro. O mesmo truque de angulação – usado à exaustão e, portanto, já sem nenhuma originalidade – deu a Wilton Júnior (O Estado de S. Paulo) o Prêmio Esso de Fotografia de 2012. Ilusoriamente uma espada trespassa o corpo da presidenta durante uma cerimônia na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ).

Se alguns dos principais veículos de comunicação, por repetidas vezes, simulam que a presidenta deve ser executada – e aí não há nenhuma possibilidade de inocência nessa metáfora de “morte à presidenta” –, porque deveríamos estranhar que essa convocação à “malhação de Judas” não encontraria campo fértil em meio a milhares de internautas ávidos por exibir toda a sanha reacionária e a falta de escrúpulo no debate político? Por que nos surpreenderíamos com tantos cartazes pedindo a volta da ditadura em passeatas que a mídia louva como a fina flor da democracia? Por que nos espantaríamos com as bancadas evangélicas, da bala e do latifúndio a vociferar contra os direitos humanos?

Houve quem tenha se recusado a reproduzir, nas redes sociais, a imagem sórdida de uma mulher, de pernas abertas na boca do tanque de combustível de um automóvel. Compreendo e louvo a tentativa de evitar a banalização da cena. Inclino-me, no entanto, na direção contrária, por uma razão: não podemos deixar de ver, compreender e estar alerta contra o que ameaça destruir a dignidade humana. Ver para não se iludir sobre o crescimento da barbárie. Ver para denunciar o ódio que cega tantas pessoas que se consideram humanas, amorosas.

Estranhamente, começaram a surgir, também na internet, os indignados contra quem se indignou. Houve muitas críticas aos que optaram por mostrar as imagens anexas aos textos de protesto a esse ato de misoginia. Boa parte dos críticos não atacou os autores da fotomontagem que escandalizou o país. Preferiu desviar o foco do debate, para tentar atingir apenas aqueles que se disseram profundamente impactados pelo ato vil.

A imagem é grosseira e não cabe banalizá-la com reproduções gratuitas e comentários machistas. Mas é preciso mostrá-la a quem ainda não viu, para que percebam a extensão do que acontece hoje no Brasil, e acordem a tempo de evitar o pior. Há uma profusão de atentados à democracia e à dignidade humana. E, por serem desferidas contra o atual governo, contra Lula, Dilma e o PT, não faltam incentivadores desse ódio que brota de nossas raízes racistas, conservadoras e elitistas.

Há coisas que precisam ser vistas. Não há como esconder as atrocidades que o ser humano já foi capaz de perpetrar, ao longo de milênios. Algumas imagens têm o poder de alertar contra a fera humana, sempre numa tênue fronteira entre civilização e barbárie.

A imagem que repugnou o país é somente o ápice de uma ação que tem os donos da mídia como principais articuladores. É um movimento que também grita contra os direitos humanos, que não se conforma com a inclusão social, não se importa em entregar as riquezas e o futuro do país aos interesses do capital internacional, não se importa com uma justiça de duas caras, dois pesos e duas medidas, que não aceita as mudanças que ocorreram nos últimos anos beneficiando sobretudo os mais pobres. Essa imagem é só uma amostra do nível de degradação a que estaremos expostos se as forças reacionárias dominarem novamente o Brasil.


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Celso Vicenzi, jornalista, mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Conversa dentro


por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*

Do lado de cá da mesa, três coroas e uma de trinta e poucos, mais ou menos respeitáveis, casadas e supostamente comportadas. Completando o círculo da mesa, três amigas pouco entradas na quarta década, algumas vezes casadas, no momento não. No espaço entre nós, delícias árabes e uma garrafa de vinho tinto que nunca esvazia.

Uma delas informa estar noiva e exibe o anel na mão direita, dando o mote para um divertido passeio pelo mundo delas, as solteiras. Reajo supreendida: noiva? Isto ainda existe? A noiva em questão responde que já foi casada três vezes, e vai encarar a quarta. É dona de um pequeno negócio de roupas, já ralou muito, e entra a filosofar sobre relacionamentos modernos. Que os homens se assustam muito quando percebem que estão lidando com uma mulher autônoma, dona da própria vida, mas que ela gosta mesmo é de se sentir protegida, espera isto dos namorados e do atual noivo, futuro marido.

Uma outra, alta e grande, de olhos azuis claríssimos, dois ou três casamentos no currículo, conta das dificuldades com a altura e dos ficantes baixinhos que já teve. Um deles foi buscá-la num Fiat 500, coitado, e ela penando pra encaixar no banco do carro. Os grandes como ela pelo menos têm um Duster, mas nenhum deles gosta de mulher muito independente, se sentem inseguros, ameaçados, desnecessários.

A terceira comenta que o último namorado reclamava por ela não estar disponível para passar todo o fim de semana com ele. Mas como, se tenho uma filha pequena, que mora comigo? Difícil de entender, né? Ele mesmo pai de vários filhos, cada um vivendo com sua respectiva mãe, claro. Faz sentido?

As três muito dispostas a se divertir ao máximo. Talvez a grande, enorme diferença em relação às gerações anteriores. Encaram a vida, casamentos e descasamentos, filhos, trabalho duro, mas quando chega a hora da balada, estão tinindo e chegam arrasando, prontas para aproveitar tudo o que se lhes ofereça. Como as bambas Dóris, Auremília, Teresinha e Marina da canção de Ana Carolina. E sabem aonde pisam, não esperam o príncipe irromper na pista montado num cavalo branco. Quero dizer, isto penso eu.

E nós, as boas senhoras, fascinadas com a conversa, que termina numa galinhagem de abrir as várias malas de roupas trazidas pela lojista, fuçar, experimentar e dar palpites. Quando nos despedimos, alguém avisa que há uma cronista no grupo, ao que a altona me pede: pode contar, mas não ponha meu nome, por favor. Claro que não, Adriana!

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Barca dos livros, confira o ensaio fotográfico

Com o maior acervo de literatura infantil e juvenil de Santa Catarina, a Barca dos Livros é uma biblioteca comunitária que funciona na Lagoa da Conceição, em Florianópolis. Em 2014, concorrendo com 998 projetos de todo o país, a Barca conquistou o Prêmio Vivaleitura, promovido pelo Ministério da Cultura, Ministério da Educação e pela Organização dos Estados Ibero-Americanos, e foi eleita a melhor biblioteca comunitária do Brasil.

A página da Barca no facebook é esta aqui.

Ensaio Fotográfico Fernando Evangelista


Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato.

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