por
Fernando Evangelista*
Numa quinta-feira de setembro de 1988, repetindo uma rotina de anos, o zelador do colégio abriu a porta da recepção, olhou o relógio de parede, conferiu com o seu relógio de pulso e suspirou satisfeito – estavam sincronizados: eram seis e meia da manhã. Em seguida, arrastou as cortinas para que entrasse um pouco de luz, ajeitou o tapete vermelho da entrada, estranhamente enrugado, organizou lado a lado as caixinhas de chá inglês, colocou um por um dos biscoitos
Exupéry dentro de um recipiente de vidro, fez café, deixou a garrafa sobre a mesinha lateral e, quando ia ligar a iluminação do aquário, sentiu um calafrio: os peixes haviam sumido.
Símbolo não oficial da instituição, metáfora do ensino que se pretendia exemplar, o aquário com dezenas de peixes coloridos, alguns enormes, todos meio obesos, era o xodó da Madre Superiora. Além de superiora, a Madre era uma diretora linha dura, temida pelos professores, funcionários e alunos. Cochichava-se pelos corredores que até os bispos morriam de medo dela.
A maioria dos habitantes do aquário tinha vindo do exterior, com exemplares importados do Vietnã, do Nepal e de outros lugares desconhecidos. Alguns chamavam atenção pelas cores brilhantes, especialmente o Chileno Dourado e o Yellow Tang. O zelador coçou a cabeça, pressentindo tempestades, e concluiu que alguém surrupiara os 30 peixes de estimação da Madre. Mas quem faria isso?
Para piorar, três peixinhos foram encontrados mortos na calçada, quase em frente à porta da recepção. As vítimas eram o Chileno Dourado e as raridades asiáticas.
Foi um pandemônio. Pais foram chamados, aulas canceladas, cartas anônimas, com fofocas e intrigas, se multiplicaram. O fato se espalhou pelas ruas e ganhou destaque exagerado nas colunas sociais. Montou-se um intricado esquema de investigação, com interrogatórios constrangedores, ameaças de castigo, ameaças de expulsão, detonando uma boataria em série capaz de surpreender empreiteiros e cardeais. Os bagunceiros como eu, suspeitos de sempre, trataram de arranjar um álibi e algum apoio familiar.
Quatro estudantes exemplares, nas notas e em comportamento, foram convocados para ajudar na investigação. Michel, meu amigo e vizinho, estava entre eles. Na manhã seguinte ao sumiço dos peixes, no palco do ginásio, acompanhada destes quatro alunos, a Madre proferiu um discurso que deixou todos, inocentes e culpados, cheios de apreensão e medo. Duas coisas que ela falou eu jamais esqueci:
– Quem oferecer informações sobre esse ato de vandalismo, ato que desafiou e debochou de 100 anos de tradição, será recompensado.
Talvez sem saber, ela tenha inaugurado a delação premiada no Brasil. A frase final do discurso me marcou ainda mais:
– Por bem ou por mal, – disse a Madre, retorcendo os lábios, tentando controlar a fúria, – vou descobrir quem fez isso, porque eu conheço o mundo e as pessoas.
“O mundo e as pessoas”, eu repetia mentalmente.
Nunca ninguém foi punido. O fato entrou para a história da instituição centenária e, até semana passada, o delito não havia sido esclarecido.
Mas alguns segredos não nasceram para a eternidade e aí neste último sábado, houve um encontro de ex-alunos num clube da cidade. Houve muita bebida, bebidas em excesso. E lá pelas tantas, houve também uma confissão.
Fui até a cabeceira da mesa, tirei de lá meu querido amigo Michel, sentei, peguei uma faca e bati no copo, pedindo silêncio. E então, para surpresa geral, revelei:
– Fomos nós, Michel e eu, que roubamos os peixes do aquário.
Fez-se um silêncio de perplexidade, daqueles que acompanham as revelações inesperadas. Mas depois foi um barulhão de vozes, com as pessoas perguntando ao mesmo tempo as mesmas coisas. Michel limitou-se a dizer: “Já era hora de contar. ”
Contei tudo. Ainda no começo daquele semestre, março de 1988, sem um objetivo definido, nós dois afanamos a chave da porta principal do colégio, que dava acesso à recepção, onde o aquário era exibido. Fizemos uma cópia naquele mesmo dia e devolvemos a original para que ninguém sentisse falta.
Mas o que fazer com a chave? Foi Michel, aluno acima de qualquer suspeita, quem teve a ideia de roubar os peixes e, se não falha a memória, o plano nasceu durante uma aula de Educação Moral e Cívica.
Lembrei-me de um aquário desativado na casa de minha Vó, que na época morava sozinha. Conversei com ela semanas antes da gatunagem.
– Vó, ganhei numa rifa 30 peixes e preciso de um lugar pra eles.
– Que rifa mais esquisita – ela disse, mas se prontificou a reativar o aquário e a acolher os novos hóspedes.
Por acaso, ouvindo uma conversa entre professores no corredor, descobri que seu Romero, o vigia noturno, estava com sarampo e não iria trabalhar. Aproveitamos a chance.
Michel e eu carregamos um isopor cheio de água, pesadíssimo, para depositar os peixes. Da chegada à fuga, esse isopor foi a nossa cruz. Por causa do peso, na saída do colégio, despejamos um pouco de água no meio-fio e não nos demos conta, devido à escuridão e à adrenalina, de que os peixes asiáticos e o Chileno Dourado haviam mergulhado de cabeça na sarjeta.
Os anos se passaram, o colégio perdeu alunos e o ranço autoritário, eu perdi cabelo e outras coisas, Michel também perdeu cabelo, mas ganhou um bocado de dinheiro, trabalhando com informática e sistemas de vigilância. Nenhum de nós dois, apesar do episódio, enveredou pelos caminhos do crime.
Os peixes se adaptaram bem ao novo habitat e tiveram uma vida longa e saudável. Seria de bom tom dizer que, por todos estes anos, carreguei a culpa pela rapina. Mas não seria verdade porque, no fundo, eu me sentia orgulhoso e importante, tal qual um Ronald Biggs, por ter “desafiado 100 anos de tradição”. A única coisa a me pesar a consciência foi a morte daqueles três peixinhos que, do berço à cova, viveram sempre em mundinhos apertados.
Minha vó – e esta era a única certeza que eu tinha – nunca suspeitou de nada. Porém, alguns meses antes dela falecer, numa festa de família, com 101 anos, lúcida e dinâmica, olhando-me nos olhos, rindo da minha ingenuidade, e celebrando ela também um segredo de tantas décadas, contou:
– Fernando, escuta só, eu sempre soube a verdade sobre os peixes do aquário.
E riu discretamente, como aquele jeito de quem realmente conhecia bem o mundo e as pessoas.
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Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal
Desacato.