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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Bar do Elvis

por Carlos Conte*

Mais uma crônica de bar. Na verdade, um ex-bar: depois da morte do Vavá, foi demolido e se não me engano virou estacionamento. Vavá era dono de bar à moda antiga. Jaleco branco, cabelos igualmente brancos e meio amarelados, metodicamente penteados para trás e fixados com gel, magro, alto, fã do Elvis. Tão fã que muita gente chamava o lugar de bar do Elvis: um bar temático numa época em que não se falava em bares temáticos. Ali era parada obrigatória do bloco de carnaval Vai-Quem-Quer.

O lugar era bem estreito, pequeno, com um longo balcão dividindo o salão em duas partes desde a porta até os fundos, onde ficava o banheiro. As paredes eram forradas de objetos do rei: cartazes, quadros, discos. Na TV, sempre estava passando algum vídeo do Elvis, e me lembro de ter visto inteiro o show que ele fez no Havaí nos anos 70: o Elvis de colar havaiano usando aquelas roupas coloridas bregas que eu nunca entendi direito, e que são a sua marca registrada, tanto que se você entrar em qualquer loja de fantasia e pedir uma do Elvis vão lhe trazer a versão azul ou dourada de um macacão, além de umas costeletas postiças. Eu sei porque meu pai uma vez foi de Elvis numa festa. Eu estava de gladiador. Uma dupla realmente incrível.

Ali no bar do Elvis tinha umas figuras carimbadas. Todo bar tem. Sempre estava lá um velho barbudo que eu e o Dudu apelidamos só entre nós de Velho Marinheiro, por causa da boininha na cabeça. Uma vez, o Velho Marinheiro dormiu no balcão, e logo em seguida as pessoas começaram a ver uma poça de mijo crescendo embaixo dele, formando uma represa de mijo no chão do bar! Sonhando estar diante de uma privada ou uma árvore, o Velho simplesmente tirou pra fora e começou a fazer ali mesmo. Mas não foi de sacanagem. O Velho, na verdade, era um tipo muito interessante. Tinha estilo. Mijou de bêbado, mas mijou com estilo, dormindo, a braguilha discretamente aberta, apoiando-se no balcão. Depois, como sempre, alguém chamou o táxi, pôs o Velho lá, e o Vavá telefonou para a mulher avisando que o marido bebum estava a caminho.

Num texto chamado “Supermarket”, eu anunciei, bem de passagem, a história que eu vou contar agora. Na verdade foi o irmão mais novo João, e não o próprio Vavá, que uma vez puxou papo comigo e me revelou o verdadeiro motivo da morte do rei do rock. João era tão fanático pelo Elvis quanto o Vavá. Acho que nesse dia o Galo estava tomando cerveja comigo.

– Vou contar uma coisa – disse o João, como se viesse dar uma notícia quente. –Infelizmente o Elvis morreu.

– Morreu sim – respondi.

– Pois tem gente que acha que ele não morreu, mas que ele fugiu, sem deixar pistas! Hoje vive escondido em algum lugar, protegido por uma tal lei de proteção a testemunhas ou alguma coisa do tipo. Mas isso é coisa de fanático! Eu não caio nessa conversa! Com tanto paparazzi, já teriam pegado ele de sunga numa praia do Caribe, você não acha?

Concordei com o João: Elvis estava morto.

– “Elvis não morreu” é uma isca pra manter as lojas vendendo – eu disse, com ares de sociólogo de boteco.

– Dizem que foi droga, mas não foi droga.

– Isso eu não sabia, João. Achei que tinha sido abuso de calmante ou...

– Ele morreu cagando.

– Sério?

– Sério. Acharam o corpo caído no chão do banheiro, mas ele estava sentado na privada fazendo força quando a veia da cabeça se rompeu.

– Quê?!

– Ele só comia lanche do Mc Donald’s! Gente assim não dura. Falta fibra no organismo e aí prende tudo. O Elvis fez tanta força que a veia não aguentou! E aí, você sabe, a versão oficial não vai ser essa, por respeito à imagem do ídolo etc. e tal... mas a realidade pouca gente sabe. Eu sei porque estudei.

– Leu numa biografia?

– Nenhuma biografia vai falar isso porque todos foram muito bem pagos para calar o bico. Você mesmo disse: as lojas têm que continuar vendendo camisas com a cara do rei. E assim a banda toca. Você sabe...

Então, calou-se. Enquanto passava flanela na TV, seus olhos fixaram a tela: ali estava Elvis cantando Love Me Tender. Seu rosto, cada vez mais próximo do rosto do Rei, iluminou-se, e em movimentos circulares João passava o pano na tela como se fizesse carinho no jovem Elvis que cantava “Ame-me com ternura / Ame-me com doçura / Nunca me deixe partir”. Da escatologia às lágrimas: João começou a chorar. Aí me dei conta de que o assunto era sério. Resolvi não perguntar mais nada. É duro falar da morte de um ídolo.

“Então o Rei morreu no lugar apropriado: o trono!”. Ia fazer essa piada mas felizmente desisti. Era hora de chorar.

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Imagem: Futepoca

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