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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Sampa

por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*

Atendo alguém ao celular enquanto espero o meu ônibus, sentada no banco da parada, quando se aproxima uma pessoa visivelmente maltratada pelo dia-a-dia nas ruas de São Paulo. Um homem, com a barba crescida, vestido com o que um dia foi uma saia estampada, agora bem encardida, uma camiseta regata vários números maior que ele e chinelos. Fala alto, coisas desconexas, com gestual e entonação de bicha bagaceira, cheira mal de longe, faltam-lhe alguns dentes. Senta-se ao meu lado, falando sem parar. Um ônibus se aproxima, ele se encaminha para embarcar, o motorista fecha a porta e arranca.

Ele grita sua indignação e senta de novo ao meu lado. Continuo ao celular. Uma senhora, com pinta de moradora do bairro, chega e me pede uma informação. Peço-lhe que espere um minuto, por favor, ela insiste. Interrompo a conversa para atendê-la, e ela me diz: na verdade, eu só queria te advertir que não fique falando ao celular aqui, é muito perigoso; mantenha-o bem guardado na bolsa. Retomo a conversa.

Jantando com a amiga que me hospeda, ela me conta uma história fascinante. Na primeira metade do século vinte, viveu nesta cidade uma milionária, única herdeira de grande fortuna em dinheiro e propriedades, com hábitos refinados e atitudes avançadas. Ainda bem jovem, dirigia automóvel e tirava fotografias, para espanto das pessoas de boa família. A certa altura, começou a apresentar sinais de doença mental. Uma de suas casas foi, então, transformada numa espécie de manicômio exclusivo, por ordem do seu tutor legal. Não tendo deixado herdeiros, seu patrimônio foi entregue à Universidade de São Paulo, que recentemente realizou um primoroso trabalho de restauração dessa casa e instalou nela os escritórios da faculdade de arquitetura.

Fui visitar a bela Casa da Dona Yayá, que é também um espaço cultural. Os detalhes são um tanto inquietantes, como as estreitas janelas pivotadas, que impediam a moradora de escapulir por uma delas, as aberturas nas paredes por onde lhe serviam a comida, e o solarium, ladeado por muros tão altos, que só mesmo voando ela poderia ultrapassá-los. Ali ela viveu confinada até morrer, prisioneira em sua própria casa. Como muitas outras, antes e depois dela, com mais ou menos recursos, mas igualmente submetidas às determinações de quem as considera sua propriedade.

Os drinks e a conversa fiada saboreados numa deliciosa espelunca da Praça Roosevelt, seguidos do macarrão com vinho tinto na cantina do Bixiga, proporcionam aquela indispesável conexão com as melhores coisas de São Paulo. Num súbito ataque de nostalgia e adolescência, peço "Dio, comme ti amo" ao cantor que se oferece à mesa, acompanhado por violão e acordeon. Tenho quinze anos de novo.

Ínfimas amostras das infinitas possibilidades paulistanas. Obrigada, São Caetano Velloso, por ter forjado um nome para todas elas.

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 Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 25 de junho de 2015

22 anos e 34 lesões

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.


por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall

Gastone Lúcia Carvalho Beltrão
Nascimento: 12 de janeiro de 1950
Cidade natal: Coruripe - Alagoas
Morte: 22 de janeiro de 1972
Cidade final: São Paulo - SP
Causa da morte: dilacerações por tortura

Hoje sabemos que os órgãos de repressão da ditadura militar encenavam teatrinhos para mascarrar mortes por tortura. A farsa mais comum era óbito em violento tiroteiro. Os jornais aceitavam a versão oficial e legitimavam a fanfarronice sangrenta. Integrante da ALN, com treinamento em Cuba, Gastone Lúcia foi mais uma que teve a causa de morte adulterada. Também foi enterrada como indigente no Cemitério de Perus, São Paulo. Passaram-se anos até que um perito criminal ampliou a foto do cadáver de Gastone e constatou que além de tiros à queima-roupa, havia facadas, fraturas, ferimentos, equimoses. Conclui A moça não morreu em tiroteio. Aliás não houve tiroteio nenhum. Mais um assassinato na conta de Sérgio Paranhos Fleury.

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Fernanda Pompeu é a mulher do texto Fernando Carvall é o homem da arte

terça-feira, 23 de junho de 2015

Uma morena e um acaso


por Fernando Evangelista*

No colégio-católico-apostólico, o professor de redação, culto e sisudo como um lorde inglês, disserta sobre enredos, personagens e elipses. É uma segunda-feira de ventania, raios e trovões. Há algo de cinematográfico nessas tempestades.

Apesar do dilúvio, a aula prossegue sem grandes imprevistos ou complicações. E então a porta se abre: “Professor, desculpe interromper” – diz uma voz feminina, “eu gostaria de fazer uma pergunta para a turma. Posso?”

É a professora de artes, recém-contratada. Bonita e misteriosa, vestindo sempre roupas leves e esvoaçantes, mesmo em dias frios, ela seria descrita pelo meu tataravô Córis, corsário poliglota, como um “pezzo di gnocca”.

- Alguém perdeu alguma coisa? – pergunta a mulher.

A turma faz cara de ponto de interrogação, como quem diz sem dizer: do que você está falando? Perdeu o quê? Onde? Quando? A princípio, ninguém sente falta de nada e a morena vai embora.

A morena vai, mas a pergunta fica. Prevendo que o falatório acabaria em desordem, o professor desafia os alunos a escreverem um texto curto, respondendo à pergunta: O que você perdeu?

Isso aconteceu em 17 de agosto de 1987.

Eu era um dos alunos e cursava o ensino fundamental. Lembro-me do fato e do dia porque guardei o texto e, principalmente, por causa de uma coincidência estranha. Transcrevo a composição com alguns retoques de estilo e com as vírgulas nos seus devidos lugares:

Perdi muita coisa na vida. Perdi um rolimã, várias pipas, um álbum de figurinha da seleção brasileira de 1982, dois jogos do Atari, uma mochila de escoteiro, a chave de um baú, que vai ficar eternamente fechado, um autógrafo do Zico, maior herói brasileiro de todos os tempos. Perdi a paciência com a minha irmã e acertei-lhe um violão na cabeça. Perdi um amuleto da sorte, que só me dava azar, e duas cartas da Eliza, minha primeira namorada. Primeira e única, registre-se. Por enquanto, registre-se isso também. Perdi ainda duas amígdalas e um apêndice.

A coincidência vem agora. Naquele dia, a pedido de minha mãe, eu havia ido à biblioteca da escola à procura do recém-lançado O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Mas peguei por engano um chamado A Rosa do Povo, do Carlos Drummond de Andrade, de quem nada sabia, apenas que tinha sido expulso de um colégio de padres na infância, acusado de “insubordinação mental”, o que lhe garantia um lugar de honra no meu pantheon imaginário.

Para parecer culto e sensível e ganhar elogios do professor, citei um verso que encontrei no livro do poeta. O verso falava sobre perdas.

Naquela noite, montando um quebra-cabeça no tapete da sala de estar, assustei-me quando ouvi a musiquinha do Plantão da Globo, prenúncio de todas as tristezas e tragédias dos anos 80. Sérgio Chapelin anunciou: “Carlos Drummond de Andrade, maior poeta brasileiro de sua geração, morreu às 20h45 desta noite, de insuficiência respiratória, exatamente 12 dias depois de enterrar sua única filha. Drummond tinha 84 anos”.

Foi só uma coincidência, obviamente, mas gostaria que não tivesse sido. Seria bom acreditar numa ligação entre o poeta e aquele menino franzino e assustado, metido a filósofo, apaixonado por morenas e vestidos esvoaçantes.

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Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato. Da série Republicando.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Letras douradas


por Júnia Puglia  ilustração Fernando Vianna*

 De saída para mais uma de suas frequentes viagens a São Paulo, ouvi meu pai dizer à minha mãe: o Antenor me pediu que lhe compre uma harpa. Uma harpa! Era a coisa mais maravilhosa que eu ouvia em muito tempo. O instrumento dos anjos dos sermões do meu pai e dos discos de hinos de Natal.

Como seria uma harpa de verdade? Ela tocaria na nossa banda destrambelhada, cheia de metais, sanfonas e repiques? Isto transformaria a obrigação de ir à igreja num prazer que eu nem conseguia imaginar. Passei a sonhar o tempo todo com como soaria o dedilhar da harpa ali, diante dos meus olhos e ouvidos, e pensei que nada mais importaria. Estaríamos definitivamente salvos da dureza da vida e, com sorte, eu me livraria dos olhos que me seguiam por toda parte, verificando onde punha os pés, que fazia com as mãos, em que se fixava o meu olhar.

Depois de pensar muito, não consegui atinar em quem a tocaria. Estava certa de que os agricultores, pedreiros e encanadores da nossa banda jamais teriam a necessária elevação, a delicadeza nos dedos, o ar enlevado que certamente acompanhava qualquer pessoa que tivesse a suprema felicidade de tocar uma harpa. Mas não importava. Quando ela chegasse, tudo se solucionaria.

Quando, finalmente, meu pai voltou, e eu já estava quase explodindo de ansiedade, corri até ele e perguntei: trouxe a harpa? Trouxe, já a entreguei ao Antenor. Com uma cara de quem não entendia como eu sabia da encomenda, nem que importância poderia ter.

Então era verdade mesmo! Saí voada, aos pulos atravessei o quarteirão que nos separava da igreja, driblei um monte de gente que já transitava por ali esperando a hora do culto, perguntei aqui e ali se alguém havia visto o Antenor. Disseram que ele estava de papo na casa da zeladora, fui até lá com o coração na boca, entrei e gritei: Antenor, cadê a harpa?

Está aqui. Onde? Aqui, menina. Mas eu não via nada. Ninguém parecia se dar conta que havia chegado uma harpa! Já meio ressabiada, mas não querendo acreditar, cheguei mais perto do livro que ele estendia em minha direção. Quando olhei, estava cheio de notas musicais, e sobre a lombada de couro preto, em góticas letras douradas, li: Harpa Cristã. O hinário completo, com partituras. Uma beleza, por certo.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

terça-feira, 16 de junho de 2015

A música da floresta

por Fernando Evangelista*

 Quando Leopoldo me contou a história, não gostei. Pareceu-me tolinha.

– Autoajuda – eu disse.

Leopoldo, o filósofo do Rio Tavares, argumentou que aquilo era profundo como um oceano e que eu era um sujeito insensível de coração e fraquinho das ideias. Estávamos de papo no balcão do bar, lado a lado, mesas vazias atrás de nós.

– Boteco vazio é um troço triste – eu disse. E me corrigi: triste é essa história. Onde você leu?

– Uma antropóloga me contou. Ela viveu na África durante alguns anos.

– Antropóloga?

– De olhos verdes.

Pelo jeito como falou “olhos verdes”, detectei indícios de paixão.

A história é mais ou menos assim: Numa tribo do Zimbábue, quando uma mulher descobre que está grávida, vai para a floresta e, acompanhada de outras mulheres, reza e medita até que a “canção da criança” seja revelada. Leopoldo tentou me explicar como essa revelação se dava, mas não entendi.

Cantada pela comunidade em ocasiões especiais, a música irá acompanhar o novo ser durante toda a vida, da infância à velhice.

– Tem mais, tem mais – ele me disse, segurando no meu braço. – Com a música, aquele que estava perdido, engolido por tempestades, à deriva, tem a chance de se reencontrar e se redescobrir.

Bebeu a cerveja, limpou com as costas da mão a espuma que ficara no bigode, e concluiu:

– Se por acaso, algum dia, a pessoa se meter em alguma encrenca feia, se cometer algum erro grave ou algum delito, os integrantes da tribo se reúnem e, em círculo, cantam juntos a canção para que a pessoa recupere a lucidez e o bom-senso.

Estranho, esse filósofo. Ele sempre foi um homem cético, às vezes cínico, inimigo dos moralismos, do purismo, do romantismo, de todos os ismos, mas agora alguma coisa nele parecia diferente.

– Tu achas que isso ia dar certo aqui no Rio Tavares? – perguntei.

Ele sorriu. E, como um aluno aplicado, explicou que a autora da história era uma tal de Tolba Phanem e que a antropóloga havia lido, se emocionado, e decidido conhecer pessoalmente a tribo.

Em seguida Leopoldo pediu a conta, pagou a dele e a minha, fato inédito, olhou-me fundo e me disse sem medo de parecer piegas:

- Descobri a minha música, cara.

E foi se encontrar com a antropóloga de olhos verdes.

Dia desses, investiguei na internet essa historinha africana. Descobri que essa tal de Tolba Phanem, embora citada centenas de vezes, na verdade não existe. A história existe. A antropóloga também. E é bonitona, tem olhos verdes e, pelo que anda cochichando o povo do Rio Tavares, está perdidamente apaixonada pelo nosso Leopoldo, o sábio dos balcões.

Que os deuses da floresta protejam essa paixão.

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Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato. Foto de Michele Menegon.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Chega de violência! Contra quem?


por Celso Vicenzi*

A violência toma conta das cidades. É o que se ouve, é o que se vê, é o que se lê, cada vez mais, nos principais veículos de comunicação. A tese não é equivocada, apenas é incompleta e mal explicada. Não faltam evidências empíricas, no dia a dia dos brasileiros, para concluí-la verdadeira. Tampouco as pesquisas e os estudos desmentem o que a mídia esforça-se por ampliar: a sensação de insegurança, de viver num cenário de permanente violência. Somos, sim, um país violento. E não é caso recente. A população indígena foi praticamente dizimada no contato com portugueses e outros povos europeus, no início da colonização. Fomos o penúltimo país a acabar com a escravidão. Chegamos ao século 21 entre as cinco nações mais desiguais do planeta. E, até hoje, a tortura tem sido largamente empregada por forças policiais no dia a dia das delegacias e penitenciárias.

Somos um país de subclasses, em que uma parcela da sociedade sente prazer em se diferenciar de seus semelhantes e de submetê-los a constantes humilhações. Boa parte galga postos importantes pela via de apadrinhamentos, mas sente-se confortável em defender a meritocracia. É o país que tem o maior número de dentistas do planeta, mas mais da metade da população não faz consultas anuais a esses profissionais, enquanto 11% dos que têm mais de 18 anos já perderam todos os dentes, índice que, entre os acima de 60 anos chega a 41,5%. A violência está presente no cotidiano da maioria da população, que não tem acesso a saneamento básico, a saúde, educação e moradia de qualidade. No entanto, a família, a escola, a mídia não costumam arrolar como violência as formas mais perversas de opressão e exclusão de milhões de seres humanos.

Mesmo que o foco seja apenas a violência praticada por arma branca ou de fogo, em roubos, assaltos e sequestros – com ou sem homicídio –, é preciso conferir melhor os dados. O senso comum aponta, principalmente, para a violência cometida por indivíduos de classe social baixa, analfabetos – ou quase –, jovens, geralmente negros. São “eles” os violentos. Ganha força no debate público, também, a situação “insustentável” em relação à violência praticada por menores de idade – como reverberam, todos os dias, emissoras de rádio e tevê, jornais e as redes sociais.

A proposta de redução da maioridade penal, que vários estudos não cansam de demonstrar como proposta ineficiente para combater o crime, poderia ser vista, também, de outra forma. Trata-se, no caso, de condenar duplamente quem já foi punido, desde o nascimento, por uma sociedade que não oferece educação, saúde, moradia e salário digno para a maioria da população. Que exclui e não ampara a maior parte dos brasileiros no acesso à renda, num país que, longe de ser pobre, está entre as dez maiores economias do mundo. Ou seja, nesse sentimento de vingança, a sociedade quer punir quem ela abandona e oprime.

Somos um país onde um adolescente é assassinado a cada hora, 24 por dia. Se continuarmos com essa política de tentar resolver somente pela repressão, sem nenhum sucesso até aqui, serão 42 mil adolescentes mortos até 2019, conforme cálculos de Gary Stahl, representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil. Os jovens são 29% da população, mas concentram a metade das mortes por arma de fogo. O fracasso dessa política com foco na repressão pode ser demonstrado por um dado da Secretaria Nacional da Juventude, que apontava, em 2012, um crescimento de 74% da população carcerária nos últimos sete anos, sem que houvesse melhora significativa nos índices de contenção da criminalidade. A maioria dos delitos que ocupa boa parte do sistema de justiça do país é de crimes relacionados ao patrimônio e drogas. Crimes de pequeno porte, porque os criminosos de colarinho branco e os grandes traficantes – alguns deles certamente escondidos em cargos acima de quaisquer suspeitas – dificilmente irão para a prisão e jamais para aquelas que amontoam seres humanos como animais.

Somos o segundo país – atrás apenas da Nigéria – quando o assunto é assassinato de adolescentes. Entre 2006 e 2012 foram 33 mil homicídios. Estamos assassinando o nosso futuro. E como escreveu Gil Alessi, no El País, “os homicídios cometidos à bala no Brasil têm cor, idade e sexo”.

Um estudo do Programa de Redução da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens, uma iniciativa coordenada pelo Observatório de Favelas, realizada em conjunto com o Unicef, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e o Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mostrou que os adolescentes entre 12 e 18 anos têm quase 12 vezes mais probabilidade de ser assassinados do que as meninas dessa mesma faixa etária. Os adolescentes negros têm quase três vezes mais chance de morrer assassinados do que os brancos – geralmente por arma de fogo.

Ao mesmo tempo, dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgados em 2013 revelam que a polícia brasileira mata, em média, cinco pessoas por dia. É uma das polícias mais violentas do mundo. Somente no estado de São Paulo, entre 2005 e 2009, a PM matou 6% mais que todas as polícias dos EUA juntas. O Brasil aparece com 19 cidades entre as 50 mais violentas do mundo, segundo estudo de uma ONG mexicana. No Brasil, mata-se mais do que em regiões em guerra. Segundo a Anistia Internacional, são cerca de 56 mil homicídios por ano. Menos de 10% desses casos são esclarecidos.

A violência também é encarada por empresas como um excelente negócio. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública calcula que os custos com violência no país chegam a R$ 258 bilhões. Os sistemas de segurança pública e privada investem, cada vez mais, na compra de armamentos e equipamentos de prevenção, defesa e combate. Cresce o uso de carros blindados pelas classes A e B. O Brasil tem hoje quase três vezes mais vigilantes privados do que policiais civis, militares, federais e bombeiros. Idem em relação às forças armadas.

A indústria de armas e munições elegeu, no último pleito, 70% dos candidatos que receberam doações legais de campanha. Dos 30 candidatos beneficiados pelo setor, 21 saíram vitoriosos: 14 deputados federais e sete estaduais. Esses fabricantes, cada vez mais ativos, financiaram políticos de 12 partidos em 15 estados – a maioria do PMDB e do DEM do Rio Grande do Sul e de São Paulo.

Somos um país que viola direitos humanos. Há uma superlotação das prisões. Torturas e maus-tratos são comuns. Não punimos os crimes da ditadura (ao contrário de países vizinhos) e a impunidade costuma ser a norma diante dos excessos da polícia violenta. Índios, negros e mulheres costumam ser vítimas da falta de políticas públicas que combatam o preconceito, a discriminação e o ódio, que se torna ainda mais flagrante contra a comunidade LGBT.

A mídia, por meio de programas policiais sensacionalistas ou reportagens que não primam por um mínimo de isenção e qualidade, com distorção de fatos, enfoques e estudos, contribui para que se crie na sociedade um sentimento de “prende-lincha-mata”, como se o ódio e a vingança pudessem levar a algum tipo de solução. A inexistência de um debate mais qualificado nos veículos de comunicação favorece o oportunismo dos setores mais violentos da sociedade e amplia o espaço para a apresentação de propostas demagógicas, já comprovadamente ineficazes.

Por isso, mais do que repensar uma política de segurança para o país, é preciso tentar compreender que tipo de sociedade nos tornamos. Sem menosprezar a dor de quem é vítima da violência, é preciso perguntar de que forma estamos contribuindo para perpetuar os mecanismos que a impulsionam, por omissão ou adesão a um modelo de sociedade injusto, opressivo e excludente. Se não formos capazes de enxergar que os grupos sociais apontados como agressores e violentos são os primeiros a serem violentados, dificilmente haverá possibilidade de sonhar com um país em que a igualdade, o respeito, a ressocialização, a educação e a formação de cada cidadão se transforme na melhor arma para combater a violência.

Basta de violência, sim! Mas de qual violência estamos falando? Violência contra quem?

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Celso Vicenzi, jornalista, mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Quase novo

por Júnia Puglia

É quase uma grande novidade. Três anos depois de ter-me inaugurado como alguém com enorme parcela de controle sobre o próprio tempo, decisões, prioridades e preferências, fiz um rápido flashback na rotina de acordar, banho, café da manhã corrido, modelito escolhido e vestido, voar para o escritório, muitas horas de ralação ininterrupta, voltar pra casa exausta, cochilar na frente da televisão, dormir um sono fuleiro, acordar… Por poucos dias, para mal e para bem.

No caso, o mal é a consciência aguda do espaço que o trabalho ocupa na vida da gente e da energia que ele consome, bem como das míseras aparas que sobram para o espontâneo e o inesperado. Ah, e também do estrago que o dia inteiro à frente do computador faz nas costas, braços e dedos da pessoa. E o bem é revisitar o que se fez por muitos anos, já um tanto forasteira (só que não), reencontrar pessoas e passar por uma reciclagem que ajuda a desenferrujar habilidades já meio abaladas. Tudo no ritmo da internet, a grande e insaciável patroa.

Bem, acabou de novo, e a sensação de acordar de man
hã em câmera lenta e poder recuperar a frouxidão é que é quase nova de novo. É bom devolver o noticiário a um lugar de certa desimportância. O próximo passo talvez seja ir para São Paulo de carro, como quem não tem nada mais relevante pra fazer.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Mais rápido do que o Super-Homem

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.


por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall

Luiz Hirata
Nascimento: 23 de novembro de 1944
Cidade natal: Guaiçara - SP
Morte: 20 de dezembro de 1971
Motivo da morte: tortura
Local final: DEOPS / SP

O delegado Sérgio Paranhos Fleury, o legista Harry Shibata e outros cúmplices da repressão forjaram a seguinte cena, digna de uma história em quadrinhos: Luiz Hirata, 27 anos, militante da AP - Ação Popular, para evadir-se da polícia fugiu em disparada colidindo com a traseira de um ônibus. Em outras palavras, o jovem morreu ao atropelar um coletivo. Quem desfez a farsa foi Helácio José de Campos Leme, companheiro de cela da vítima. Segundo seu depoimento, Luiz foi torturado por semanas seguidas: “Seu rosto estava tão inchado que seus olhos mal se abriam”. Foi de tal maneira machucado que resolveram retirá-lo do DEOPS / SP para o Hospital das Clínicas. Morreu dias depois. Daí, seguiram o protocolo. O enterraram como indigente no tristemente famoso Cemitério Dom Bosco, em Perus.

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Fernanda Pompeu é a mulher do texto Fernando Carvall é o homem da arte

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Menu principal

por Júnia Puglia

Eu sei quem sou, às vezes não. Muitas vezes sei de onde venho, e levo a vida a buscar o meu próprio caminho, que não sei aonde vai dar. Ou melhor, sei, mas evito pensar sobre isto, por inútil. Às vezes, me dá um tédio profundo de tudo o que fiz e vivi até agora, mas passa logo. Considero o sol essencial para manter minha conexão com a vida e continuar circulando por aí, tanto quanto é crucial ter ao meu alcance e sentir as pessoas que me são importantes.

Fico muito impressionada cada vez que me deparo com gente de olhos opacos, que apenas traduzem o nada que têm lá dentro. Nada me parece tão terrível quanto a energia vital desperdiçada, submetida ao piloto automático ou engolida pelas circunstâncias, ou pela simples impossibilidade de reagir a ela, acolhê-la, nutri-la. (Agora percebo por quê me foi tão definitiva a rápida visita que há poucos meses fiz a alguém que por muitos anos me inspirou, cujo brilho me alentou a juventude, mas que está entregue a uma desvida insuportável de tão dolorosa.)

Abomino esses condomínios fechados que são uma triste imitação de Miami, e se alastram como praga entre pessoas ávidas por se proteger da pretensa inveja alheia e da convivência com os diferentes, de modo a se sentirem valorizadas, diferenciadas, separadas daqueles que desprezam, por se sentirem as únicas merecedoras do que consideram o melhor em suas vidinhas pequenininhas. Estão cada vez mais apavoradas com a perspectiva de sermos menos desiguais.

Tenho lamentado muito os imensos gramados com que atapetamos o mundo urbano, padronizado pela negação do espontâneo. Mais árvores e vegetação nativa por perto nos ampliariam a percepção do quanto dependemos dos outros seres vivos para continuar existindo, e também do estrago que somos capazes de fazer no nosso mundo.

Depois de viver algumas décadas e, como todo mundo, aprender e absorver uma montoeira de coisas e fazer outras tantas (sempre menos do que eu gostaria), acho que estou mesmo é querendo voltar para o menu principal, e ficar só com ele. Neste caso, o vinho do supermercado é bom o suficiente, e melhor ainda quando compartilhado naquela conversa mansa, que não começa nem acaba, apenas flui.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

terça-feira, 2 de junho de 2015

A maconha da lata


por Fernando Evangelista*

 Se existisse a possibilidade de viajar no tempo...
 Já existe – ele interrompeu.
 Existindo a possibilidade de viajar no tempo, para onde o senhor iria?
Já passava das dez da noite e ninguém arredava o pé do auditório da faculdade. Todos os lugares, os oficiais e os de improviso, estavam ocupados. 
Doutor honoris causa em diversas universidades, com quase 80 anos, lúcido e bem-humorado, o nobre cientista respondeu:
 Se pudesse viajar no tempo, eu iria para o Rio de Janeiro em 1987. 
Como ninguém entendeu, ele explicou. E fez a alegria da plateia.
Em setembro de 1987, tripulantes do Solana Star, barco pesqueiro de bandeira panamenha que navegava próximo à costa brasileira, despejaram 22 toneladas de maconha no mar. A erva estava em latas de alumínio, parecidas com latas de leite em pó, cada uma de um quilo e meio.
Os tripulantes livraram-se do entorpecente porque descobriram que a Polícia Federal brasileira, alertada pelo DEA – órgão de combate às drogas da Polícia Federal americana –, já sabia do carregamento. Para evitar o flagrante, jogaram tudo no mar.
A peripécia do Solana Star, e de seus sete tripulantes, quase todos americanos, começa na Austrália, passa por Cingapura, onde permanece alguns dias e onde teria sido abastecido com as latas, e segue em direção ao Brasil. O plano era repassar a maconha para duas outras embarcações menores no Rio e levá-la para Miami, o destino final. Não deu certo.
Os traficantes, porém, não se desesperaram. Com o barco “limpo”, fundearam calmamente no porto do Rio e, sem serem incomodados, saíram do país para nunca mais voltar. Ficou só o cozinheiro, o único tripulante preso nessa história. Condenado em primeira instância a 20 anos de prisão, foi absolvido por falta de provas pelo Tribunal Federal de Recursos.
E assim, como por encanto, 15 mil latas chegaram às praias brasileiras, concentrando-se em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tanto para os policiais, quanto para a turma do fumacê, foi um Deus nos acuda – não só pela quantidade, mas também pela qualidade da erva.
Qualidade jamais vista na história deste país, extremamente pura e potente. No livro Verão da Lata, do jornalista Wilson Aquino, o delegado Antônio Royal resume o inusitado da situação: “Imagine o sujeito que é usuário de droga, está na praia, vê uma lata boiando, abre e está cheia de maconha. Quer dizer, isso é como a lâmpada do Aladim! Onde já se viu maconha boiando de graça?”.
Nunca ninguém tinha visto, nem boiando, nem de graça. Nem mesmo o experiente pescador Messias, entrevistado por Aquino: “Por causa da força da situação, eu experimentei. Fiz um charutão numa folha de banana, dei uma, duas e não consegui dar a terceira tragada. Comecei a rir sem parar. Chamei a minha mulher, ela experimentou e caiu na risada. A gente ficou muito louco”.
Loucos ficaram também os traficantes locais, que viram os clientes minguarem. Ninguém precisava comprar porque todo mundo tinha, da melhor e de graça. A turma ficou feliz da vida, os policiais furiosos e o fato entrou para a história da cultura underground brasileira.



Muitas pessoas, lembrou o velho cientista, resgataram quantidades significativas de latas e as entregaram às autoridades. Multiplicaram-se surfistas e pescadores e o desafio policial era diferenciar quem eram os “do bem” ou “do mal”. Um delegado adotou uma solução curiosa: quem fosse pego com um abridor de latas, flanando serelepe pela praia com cara de felicidade, seria sumariamente levado para a delegacia.
Segundo testemunhas oculares, o verão carioca de 1987-1988 foi o mais festivo, pacífico e divertido da década. Nunca se foi tanto à praia, nunca se matou tanta aula chata e tanto trabalho inútil. Paz e amor em versão completa, sob a proteção do Cristo Redentor.
Das dezenas de reportagens veiculadas na tevê sobre o caso, uma é especialmente reveladora. Um delegado caçador de latas, Marlboro nas mãos, afirma: “As drogas são o mal do mundo”. A cena seguinte é de um promotor, entrevistado em casa, dizendo que quem for pego com as latas será severamente punido. Atrás do digníssimo promotor, uma estante de bebidas alcoólicas de todos os tipos.
Há algum tempo, psiquiatras, psicólogos e outros especialistas debateram a questão dos entorpecentes no Senado. A droga, segundo eles, que mais causa dano à sociedade é o álcool. Estudo publicado na revista inglesa The Lancet, medindo os danos à sociedade e ao usuário, também coloca o álcool no topo da lista. Em segundo e terceiro lugares, estão a heroína e o crack. De acordo com esse estudo, o tabaco é mais prejudicial do que a maconha.
Depois de contar a história, provocando risadas na plateia, o cientista lamentou: “Naquele momento, o Brasil perdeu uma grande chance de discutir aberta e profundamente a questão das drogas”. E concluiu: “Só o conhecimento pode nos salvar”.
O conhecimento e, claro, um pouco de bom humor, que não faz mal a ninguém, não tem contraindicações, nem causa dependência.
                                                        
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Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato. Ilustrações de Vicente Mendonça, feitas especialmente para o texto. Crônica da série: republicando. 




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