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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 30 de agosto de 2005

Experiência no presídio

Outro dia fiz uma entrevista com um rapper que está preso. Chama Dexter e a entrevista está no especial sobre Hip Hop da revista Caros Amigos. Fui, confesso, meio apreensivo até o presídio onde ele está – ou estava, já não sei mais – na Penitenciária II de São Vicente, litoral de São Paulo. O que marca o local são os cenários e o sentimento. O dia estava cinza, chuvoso, chato, sem ação, mas lá o baque é forte. Ação e reação. Pessoas sérias, lógico, mas um clima tenso que parece que a qualquer momento algo vai acontecer. Os caras lá, encarcerados, pagando seus erros, uns mais sérios, outros nem tanto. De certo, todos sem rumo, presos as grades, sem camisa, fumando, andando em círculos, imagino, só pensando na liberdade. Fiz meu trabalho, mas não saia da cabeça o pensamento de que esse sistema não recupera ninguém. É ambiente pra piorar o cara que já chega fudido. Num trecho da entrevista, o Dexter, gente fina, batalhador, “guerreiro” como ele próprio se intitula mandou a seguinte frase: “Ao contrário do que se espera do sistema carcerário, que deve ter uma política de recocialização, de correção e de incentivo, ele produz cada vez mais monstros. Infelizmente, o sistema carcerário não recupera ninguém, a recuperação vem do interior.” Tá aí, em duas horas lá cheguei a mesma conclusão.

sábado, 27 de agosto de 2005

Mensagem a Garcia

A vida é feita de instantes. A frase não é original, mas faz sentido. Domingo à noite, terminado o encontro no Salão de Idéias da Bienal, ao lado de Antônio De Franceschi e Eric Nepomuceno, que resultou em uma conversa agradável, acho que boa para o público, eu estava saindo, quando a jovem me abordou: - O senhor trabalhou com meu avô! Na Última Hora! Olhei para ela. Morena bonita, olhos brilhantes, jeito encabulado. Tanta gente trabalhou naquele jornal extinto, hoje lembrado em manuais da história da imprensa. Primeira fase de minha vida dentro desta cidade. - E quem era seu avô? - Celso Jardim. Então, li o seu crachá: Beatriz Jardim. Fiquei olhando para ela e me lembrei que o Celso se dirigia aos repórteres como: meu jovem. Ele devia ser dez anos mais velho do que eu. Chefe de reportagem, sempre bem vestido, impecável, terno e gravata, os cabelos (começavam a rarear) lisos bem penteados. No primeiro dia, implicou com minha camisa lilás, esporte, um de meus orgulhos em Araraquara. Devia ser horrenda, mas era o que eu tinha para ser diferente, num tempo em que camisas coloridas eram vetadas aos homens. Devíamos nos contentar com preto, branco, azul-marinho, verde escuro, cinza. Anos 50, anos dourados? Antes mesmo de me dar uma "mensagem a Garcia", Celso recomendou: "Não me venha com essa camisa. Nunca mais venha sem paletó e gravata." Ante meu olhar amedrontado (o mundo me fazia medo), ele explicou: "Outro dia, um repórter foi entrevistar o cardeal Motta que se recusou a receber jornalista sem gravata." Olhei em torno, todos engravatados. Naquele dia, comprei outra camisa Volta ao Mundo, de náilon, lavava uma, usava a segunda, no dia seguinte, invertia. O problema daquelas camisas é que não podíamos suar, ficava um desconforto enorme. Celso Jardim me deu o primeiro emprego, me deu força, eu que cheguei a São Paulo sem saber o que fazer e caí naquele jornal por acaso, fiquei por desfastio. Fui escolhido, não escolhi. Celso era educado, mas duro. A primeira matéria que entreguei, foi lida, ele me chamou, trocou parágrafos de lugar. "Comece acenando com o que aconteceu. Coloque uma informação forte, desenvolva e deixe um gancho para o final, assim você prende." No dia seguinte, outra matéria. "Corte palavras desnecessárias. Concentre no assunto. O que não tiver a ver com a matéria, dispense. Economize. Espaço em jornal é caro. Escreva muito em poucas frases. Tem um escritor americano que aconselha: se falar de uma faca em um conto, a faca vai ter de fazer parte da ação. Se não fizer, dispense, estará desviando a atenção, prometendo uma coisa que não vai se cumprir." Depois, soube, o escritor era o Hemingway. Às vezes, entregava um recorte. "Leia, dê seqüência a este assunto." Tinha de saber como transformar aquela notícia curta em reportagem. "Se conseguir uma manchete, vou te considerar jornalista." Manchetes. Todos queriam dar, eram nossas medalhas. "E onde vou encontrar esse homem?", indagava, se havia um nome citado. Então, vinha a frase: "Mensagem a Garcia, meu jovem." Um repórter veterano, Hélio Siqueira (onde andará?), estrela de UH, imbatível em matérias sensacionalistas, me deu a mão: "Garcia era um general. Um soldado recebeu uma ordem de entregar uma mensagem a ele. Ninguém sabia onde Garcia estava, mas o soldado entregou a mensagem. O Celso quer te dizer que o repórter tem de ser curioso, investigativo, detetivesco, intrometido, sem medo.Mensagem a Garcia significa: execute a missão impossível." A enciclopédia me ensinou que houve cinco Garcias. No Equador, na Venezuela, na República Dominicana, no Chile e na Argentina. Qual era a do Celso? Um chefe irônico, gozador (o termo hoje é zoar), não perdoava ninguém. Mas incentivava, principalmente o bando de garotos que entrou no jornal naquele março de 1957. Eramos dez, admitidos ao mesmo tempo, todos deram certo. Ele obrigava a encarar desafios. Depois de um tempo, já o jornalista aclimatado, Celso lia a matéria, porque lia tudo, antes de passar ao secretário do jornal que a colocaria nas páginas. Chamava o redator. Quando a gente chegava, ele rasgava o texto e recomendava: "Faça de novo. Bem-feito. Você é melhor do que isso." Rasgava duas, três vezes, se preciso. E nos sentávamos, dispostos a fazê-lo engolir o papel rasgado. De cada vez, o prazo diminuía, o jornal tinha horários rígidos. Assim, aprendemos a escrever rapidamente, sinteticamente, usando o essencial. Um dia, fui atrás de produtores de café que deveriam opinar sobre um assunto qualquer. Ninguém quis falar. Voltei. "Não tem matéria." E ele: "Por quê?" Cansado de andar, suando a camisa Volta ao Mundo incomodando, justifiquei: "Ninguém quis falar." Celso, zombeteiro. Detestávamos aquele riso zombeteiro, sem perceber que ele estava desafiando. "Não te passou pela cabeça que a matéria é essa? Por que não falaram? O que escondem? Qual a jogada? A tramóia? A intenção? Uma reportagem mostra o porquê, decifra o mistério, esclarece." Quando partíamos para uma missão difícil, ele advertia, no que era secundado pelo Samuel Wainer, o dono da UH. "Se não conseguir a matéria, mande sua credencial de volta pelo fotógrafo, nem precisa aparecer mais aqui." Assim era o Celso, que formou ao menos uma geração na Última Hora, a UH. Tinha a paciência de ensinar, perdia a paciência, mas comandava sua equipe "jovem". Ainda existem tais editores? Que gostam de ensinar? Aquele homem, que morreu há anos, me formou, aparou arestas. Ele chegou a ver o início de minha carreira literária, ficou contente com meus primeiros livros. Então, se compreende a minha emoção, 45 anos depois, no Salão de Idéias, ao deparar com Beatriz, a neta dele, ligando os elos, eliminando o tempo, me fazendo ver a dívida que tive com um jornalista que me moldou. O nó ficou na garganta, pouco falei com Beatriz. Ao ler este meu texto, ela compreenderá como o homem de 65 anos que tinha acabado de falar sobre livros, ao chegar a porta e encontrá-la, se tornou, por segundos, o jovem de 20 anos que, auxiliado pelo jornalismo, chegou à literatura.

quinta-feira, 25 de agosto de 2005

Tá certo, mas nem tanto

Tá certo! Concordo que o bicho tá pegando no Planalto Central, que é muito estranho esse tal Marcos Valério fazer tantas negociatas escusas com o PT e, ao mesmo tempo, estar intrincado com outros partidos do tipo PSDB. Seria lobista esse Marcos Valério? Concordo que o José Dirceu esteja com a corda no pescoço, que o ex-secretário do PT, Silvio Pereira, cagou ao aceitar o Land Rover, modelo Defender, lindo carro, dos meus mais distantes objetos de desejo. E o Delúbio Soares, seria o tesoureiro do PT mesmo? Cá pra nós, o seu depoimento na CPMI foi dos mais covardes da história desse país. Não respondeu nada, ria, e ponto final. E o Roberto Jefferson do "mensalão"? Acusado de participar de um esquema de corrupção nos Correios virou herói, um "Macunaíma" às avessas - até no programa do Jô Soares esteve, celebrado como se nenhum erro tivesse cometido, aplaudido, cantou e a platéia ficou triste no final: "ahhhhh". O ladrão das vielas, becos e periferias não têm perdão. O ladrão engravatado tem; fala bem, engana, faz rir, afinal, a tragicomédia brasileira é isso mesmo, pizza pra todo mundo.
A reação em cadeia não termina aí. De uma denúncia surge outra, outra e outra. Aí apareceu a ex-secretária de Marcos Valério, Fernanda Karina, fez lá seu papel e virou celebridade. Diz querer 2 milhões para posar nua na Playboy, que desmentiu a história e pra não ficar chupando dedo Fernanda garantiu umas poses estranhas na Revista da Folha do dia 31 de julho. Silvio Lach, em artigo publicado no Jornal do Brasil é que tem a razão: "Isso é uma inversão de valores. Não é a revista que tem que gozar com a gente é a gente que tem que gozar com a revista".
A panela fervendo foi escaldando um a um - Dirceu, Delúbio, Silvio Pereira, Genoino, Waldemar Costa Neto e afins como o homem da cueca dos 100 mil dólares, curiosamente assessor do irmão do ex-presidente do PT, José Genoino.
Tá certo! A história é cabeluda. Corrupção parece ter. Nesse ponto, todos, dos mais céticos e ferrenhos petistas ao mais direitista e reacionário, concordam. Sem ingenuidades se sabe que esse tema é crônico. Bem sabe o leitor que a quantidade de informações que a mídia grande nos faz engolir é absurdamente impossível de assimilar. Teríamos que ficar 24 horas por dia assistindo televisão, lendo os jornais, plugados na grande rede e ainda assim não seria o suficiente. Se não dá, nos resta formar opinião com o pouco que conseguimos ler e assistir. Agora, nesse vendaval algumas coisas são intrigantes: o posicionamento da mídia e o comportamento de alguns políticos.
A grande mídia age de forma assustadoramente parcial. Jornais como o Estadão, Folha de S. Paulo e revistas como a Veja são, de longe, anti-Lula e denuncistas baratas. Ter posição não é ruim, o ruim é ter posição velada e usar do denuncismo maldoso, sem apuração, manchetando primeiras páginas como se fosse o supra-sumo. Como fez a revista Veja que colocou declaração de José Dirceu sem ouvi-lo. Estranhamente nada que se refira ao ministro da Fazenda, Antonio Palloci, é publicado. Parece claro - veja bem, parece - que ele é preservado por seguir o modelo que tanto interessa às elites brasileiras.
Tá certo! É estranho afirmarem que o Lula não sabe de nada. Agora, o mais sacana é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso posar de santinho. Ele privatizou o país! Entregou de bandeja uma das maiores mineradoras do mundo - a Vale do Rio Doce, só pra citar um dos casos. E os deputados do PFL na televisão? Jorge Bornhausen e o vice-governador de São Paulo, Cláudio Lembo, pagando de éticos, dizendo que "é o pior estado de corrupção que o país já viveu". Quem era o vice-presidente no governo FHC? Não era do PFL? E o ACM não é do PFL? Quem não lembra do escândalo do Painel do Senado?
Concatenar as idéias é algo complicado, caro leitor, por isso, a atenção deve ser total, pois nessas horas de crise os corvos aparecem aos montes. Discernir entre uma notícia e outra, uma manchete e outra, uma declaração e outra é exercício mental árduo. O fato é: não acreditem em tudo o que lêem. Não julguem antes de obter informações detalhadas e, se possível, comprovadas. A imprensa tem o poder de moldar a opinião pública, tem o poder de derrubar presidentes, entronizar ou decapitar o moral de pessoas.
Um adendo: na última Festa Literária Internacional de Parati (Flip), numa mesa-redonda composta pelo rapper carioca MV Bill, pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares e pelo cronista Arnaldo Jabor se deu um exemplo de como é o pensamento das elites. Figura conhecida no país, famoso, respeitado e formador de opinião, Jabor declarou à platéia que o vaiava após ter elogiado o período FHC: "Vocês são uns ignorantes. Vão estudar!". Emendou ainda sob vaias: "Se não fosse o Palocci, vocês estariam batendo panela nas ruas, com fome, que nem na Argentina".
O que pensar disso? Como pôde comparar o governo neoliberal iniciado por Carlos Menem que terminou com o panelaço na era de De La Rua com o atual cenário brasileiro? Não passar fome é o que esse país tenta há anos com inúmeros projetos sociais que nunca dão certo. É injusto ele fazer essa comparação. Sua opinião ao menos foi sincera, coisa que nunca foi diante das telas. Se todos os veículos de mídia fossem legítimos e honestos em suas posições, a história seria outra. Jabor ainda finalizou: "Mas podem vaiar, isso é bom, significa que vocês pelo menos têm opinião". É assim que pensam as elites e os donos da mídia. Não importa se privatizar o Brasil é ruim, o que importa é o jogo capitalista, de poder, de interesses pessoais, o jogo da grana mais alta, da mala mais cheia. O povão é preterido sempre, infelizmente.
Cá estou numa crise interna e folheando os jornais, vendo o noticiário, lendo o que dá e outra dúvida surgiu: por que a mídia grande não fez estardalhaço sobre a história do banqueiro Daniel Dantas, dono do Opportunity, que injetou 150 milhões de reais nas contas das empresas de Marcos Valério? Não posso crer que é somente pelo fato de ele ser dos maiores anunciantes das empresas de telefonia na mídia. Seria teoria da conspiração demais, não é mesmo?

Liberdade de Expressão


Quando inicei este blogue em 2005 havia escrito o que está abaixo e nem imaginava voltar a este espaço da primeira postagem para elocubrar novas propostas.

"Aqui estou a escrever no blog que titulei de Nota de Rodapé. O título do blog faz apologia ao termo significativo de "o pé de uma página impressa." A idéia é falar esporadicamente sobre o que vier a cabeça – como a maioria faz – e expor de forma clara, se conseguir, a minha opinião, mesmo que não seja relevante. É só um olhar. Uma fresta. Uso da liberdade de expressão para dar uma pitada na chamada democracia participativa. Participarei com idéias e opiniões. Seja bem-vindo!"

Como podem ver o tempo correu depressa e até a palavra "idéia" do texto acima perdeu o acento por conta da reforma ortográfica da lingua portuguesa. Hoje, o Nota de Rodapé virou um lugar de colaboração que já conta com mais de dez amigos - jornalistas, escritores, produtores, médicos etc. Não é mais só a minha opinião. Este espaço será ampliado, sem dúvida, ao longo de 2010 como já havia dito nesta postagem. Agora reescrita, essa primeira postagem 2005-2010 é só o pontapé inicial do que ouso chamar de um espaço virtual de jornalismo e arte. Ainda falta muita arte e muito jornalismo. Como sempre digo aos colaboradores o que vale aqui é experimentar. Sem ficar preocupado com a perfeição ou acertar de prima. Não, aqui não vamos ser lunáticos de plantão - já existem muitos por aí. Sem ser piegas ou coisa parecida o termo jornalismo e arte expressa um objetivo a se buscar: temas sérios, bem-humorados, inovações, depravações, informação, causos, dicas culturais, ideais e justiças afins. A lista é grande porque, para mim, cabe tudo. E o tudo é sempre uma construção.

Thiago Domenici, jornalista, criador do Nota de Rodapé

(a criação do logotipo do Nota de Rodapé é da amiga e designer Mariana Nóbrega)
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