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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Arquipélagos


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Uma das constatações sobre a vida nos nossos dias é que já não podemos viver em clãs, como até poucas décadas atrás. As famílias eram numerosas e várias gerações conviviam, senão na mesma casa, na mesma cidade ou em lugares próximos. A convivência era intensa. Traduzia-se na quantidade de comida que se preparava e de pessoas à mesa, no compartilhamento do único aparelho de rádio ou de televisão da casa, nos quartos quase sempre divididos por vários irmãos, avós e tios, e nos muitos conflitos que tudo isto acarretava, e que nunca se resolviam, pois eram parte do pacote da vida “tribal”. Quanta violência e abusos aconteciam, sem que se pensasse em buscar uma solução para algo visto com naturalidade, apesar do sofrimento causado.

Por outro lado, exigíamos muito menos, pois a individualidade era um luxo desconhecido. Quem expressasse o desejo de ficar ou, pior, viver sozinho, era visto como um bicho esquisito, cheio de manias. Afastar-se era uma atitude altamente recriminada, e muitas vezes significava um rompimento definitivo. Lembro-me de como eu achava curioso um personagem de novela ou filme dizer “por favor, vá embora, quero ficar sozinho”, porque eu nunca tinha visto acontecer na vida real.

A urbanização galopante trouxe o encolhimento das famílias e o conceito de privacidade, acho que nesta ordem. As famílias se tornaram arquipélagos, e se aprofundou a ideia da individualidade, de que cada um cuida da própria vida, para mal e para bem. Daí surgiram a psicanálise e o estudo das emoções e das relações humanas, que virou tudo pelo avesso.

Apesar da herança cultural e social embutida na palavra “família” e em suas continentais implicações, os arquipélagos me parecem uma conformação muito interessante. Como já não é possível – e, de minha parte, nem mesmo desejável – manter a convivência obsessiva, o controle sobre as decisões e escolhas dos familiares e a vigilância sobre suas vidas, a figura do arquipélago pode nos ajudar a encontrar novas formas de convivência e contato e, quem sabe, novas emoções, profundas, nutritivas e gratificantes, assim como novos motivos para a convivência.

Ao pensar assim, convém considerar, também, que as ilhas de um arquipélago podem ser muito diferentes entre si, com mais ou menos vegetação, outras espécies de animais nativos, variados grupos populacionais, climas, incidência do sol ou da chuva, sabores, cores e odores. Mas sempre estarão ali, pois ilhas não se soltam no mar. Ficarão ali mesmo, naquele arquipélago, por muitos milhões de anos, um tempo eterno para os seres vivos.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O Louco de Wall Street


por Maria Shirts*

Vou ter que confessar uma coisa: eu gosto do Oscar. Sim, sei que é uma pataquada só, marmelada pura, uma cafonice. Aliás, se você não quiser continuar lendo esse texto, tudo bem, eu entendo. Mas eu gosto do Oscar. E eu não só gosto como faço do Oscar um evento: me reúno com as amigas, faço um lanchinho lá pelas 8, 9 da noite, que é pra dar tempo da gente ver (e comentar, é claro) o tapete vermelho no E! Entertainment.

Depois, na premiação, a gente tenta ficar chutando os ganhadores, e essa é a parte mais legal porque uma das minhas amigas, a fotógrafa Clara Holtz, acerta todos. Todos. “A gente tem que levar ela pra Las Vegas e ganhar um dinheiro com isso”, disse meu pai, no ano passado, chocado com a habilidade da Cleidinha, como gostamos de chamá-la. Bem, como eu sou uma pessoa que gosta do Oscar, também gosto de assistir todos os filmes que dele participam. E semana passada fui ver O Lobo de Wall Street, do diretor Martin Scorsese (com a Cleidinha, inclusive).

O filme conta a história verdadeira de Jordan Belfort, um corretor da bolsa oriundo de uma família de classe média novaiorquina, mas com uma sede de dinheiro insaciável, quase sinistra. O jovem, que segundo a Wikipédia tentou carreira de dentista para se dar bem na vida, foi desestimulado por um professor da faculdade e optou pelo caminho da bolsa. Em pouco tempo vira um vendedor hábil, com uma lábia fascinante que só as pessoas desse ramo têm. Abre o seu próprio negócio e consegue consumar o seu sonho primordial: ficar rico.

Mas a que custo? O filme nos conta as várias tramóias do corretor, seus malabares muito bem dirigidos e com cenas impressionantes, que se eu tentar descrever vão perder toda a graça. Vale assistir, também, pela exímia atuação de Leonardo DiCaprio, o Belfort. Chega a impressionar o modo com o qual consegue interpretar a babaquice e boçalidade wall-streetiana. Em pouco tempo o espectador percebe que a sua conta bancária é inversamente proporcional à qualidade de seu caráter.

Em suma, é um filme que vale a pena ser visto, mas em casa. Nem eu nem a Clei sabíamos que o filme tinha 3 horas de duração, o que pra nós foi bem angustiante. Pode parecer que não, mas é deveras aflitivo ficar todo esse tempo assistindo a um milionário idiota e cocainômano humilhando mulheres, colegas e até o FBI só porque ele tem dinheiro. Se eu pudesse, teria pausado um pouco, desanuviado a cabeça e digerido a vergonha alheia, para depois ver o final (talvez até em outro dia).

Mas, agora que eu já passei por tudo isso, só me resta torcer para o DiCaprio ganhar a sua primeira estatueta. A ver!

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Maria Shirts, internacionalista e pedestrianista, mantém a coluna Transeunte Urbana.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Bruno Maranhão, presente


por Aleksander Aguilar*

Teimoso, polêmico, dedicado, afetuoso, louco, aberração. De todos os muitos adjetivos usados para descrever Bruno Maranhão o último, que pode ser visto como o mais curioso e pesado, é paradoxalmente o que dá o melhor sentido para justificar a celebração da sua da sua vida, pela qual lutou, como fez em toda sua trajetória política, até o dia 25 de janeiro deste ano.

Bruno, filho de usineiros de açúcar por parte de mãe e de pai, um herdeiro típico da alta burguesia tradicional pernambucana, legada diretamente da relação Casa Grande/Senzala, fez-se aberração suficiente para deixar o chicote opressor e lutar pelas emancipações dos oprimidos ao lado dos mais destacados comunistas da época das revoluções guerrilheiras no Brasil, e seguir lutando ao longo de toda sua existência. De sucessor da estrutura de dominação social pela terra, passou a vida em militância por reforma agrária.

“Origem de classe não tem a ver com consciência de classe”, me disse em uma das inúmeras reuniões que tivemos no seu escritório no bairro Casa Amarela, em Recife. Bruno fez muitos amigos e amigas em sua história política, de tão longa data como da clandestinidade na ditadura e do exilio no exterior. Eu, porém, tive apenas a oportunidade de conviver com ele durante os últimos seis meses do vigor da sua militância, em 2011, quando nos reuníamos quase que diariamente, em Pernambuco e outros estados, para organizar a “Marcha da Reforma Agrária do Século XXI”, do Movimento de Libertação do Sem Terra (MLST), do qual ele foi um dos principais coordenadores.

Bruno tinha uma inquietude otimista motivadora, e gostava muitas vezes de desafiar as “condições objetivas”, acreditava que só lançando-se aos projetos poderia faze-los realidade.

− Vai ser muito difícil conseguir a condição ideal pra caminhar 250 km com quase 1000 militantes, Bruno, em tão pouco tempo, argumentava-se.

− Nem sempre há tempo para conseguir o ideal, companheiro, mas ao fazermos já vencemos, respondia.

Levamos 20 dias naquele ano, de agosto até o 7 de setembro, para caminhar da capital do Estado de Goiás, até Brasília. “Aperte a mão de quem o alimenta!” foi o lema, e a Marcha promoveu pelas cidades onde passou seminários para evidenciar a importância e a necessidade da reforma agrária para a superação da pobreza no Brasil. Essa atividade idealizada pelo Bruno foi sua última grande articulação de movimentos populares. Ele infelizmente não pode conclui-la, pois justamente ali se iniciou a manifestação da doença que levou o lutador. As fotos que fiz durante a Marcha são suas últimas imagens em plena militância, no ato de lançamento da jornada, em que o vimos com punho levantado e de microfone à mão, como o foi na sua história de lutas por emancipação.

Em plena ditadura militar brasileira, aos 20 e poucos anos ingressou no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e integrou o Comitê Central ao lado de lendas como Apolônio de Carvalho, Jacob Gorender e Mário Alves. Foi exilado político, e no retorno ao país ajudou a fundar o PT, tendo sido membro da Executiva nacional, e já com mais de 50 anos fui fundador do MLST, onde militou até a sua morte, aos 74 anos de idade.

Sua capacidade de liderança era inegável e era tão destacada quanto o seu carisma. Bruno ensinou gerações de militantes, do campo e da cidade, de movimentos sociais e de partido, aquelas particularidades do comportamento político, do trato com o adversário, da hora de ser firme, de negociar, de flexibilizar, que só a experiência forjada em muitos anos de prática podem dar. Desde a roda de camponeses em um galpão de pouca cobertura no interior do Nordeste até o gabinete do governador do Estado, pelos assentamentos e acampamentos sem-terra à reuniões ministeriais no Distrito Federal, via-se aquela postura e leitura sociopolítica inabalável da realidade. Era o que lhe motivava a apostar e entregar-se a necessidade de transformações estruturais no país que, vista como uma grande excentricidade por parte de muitos, foi justamente o que lhe garantiu o respeito e um lugar certeiro na história da esquerda brasileira; uma coerência e chama sempre acesa por justiça social que fez de Bruno um militante revolucionário na juventude, na idade adulta e mesmo na terceira idade.

Bruno Maranhão foi um brasileiro que teve uma história particular. Na dedicatória do livro Os Colares e as Contas (2012), a síntese poética de uma experiência política, segundo seu próprio autor, o jornalista Marcelo Mario de Melo, que também foi militante do PCBR, aparece a homenagem a Bruno entre aqueles “que se mantém socialistas e de esquerda depois dos 60 anos”. E Bruno ainda depois dessa idade não apenas manteve suas ideias como as expressou constantemente desde caixotes improvisados em assembleias e reuniões camponesas nos campos desse Brasil. Só se pode respeitar uma trajetória assim. O sonho e a luta por reforma agrária permanecem vivos na memória de Bruno Maranhão.

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Aleksander Aguilar é jornalista, doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais, candidato a escritor, e viajante à Ítaca, especial para o Nota de Rodapé

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A responsabilidade de cada um



por Celso Vicenzi   ilustração Marcelo Martins Ferreira* 

Circula nas redes sociais um trecho de uma entrevista de José Serra ao jornalista Boris Casoy, realizada há alguns anos, em que o político faz uma menção aos “Estados Unidos do Brasil” e é corrigido pelo jornalista, que informa o nome atual: “República Federativa do Brasil”. Lembrei-me do episódio porque 2014 será o ano de mais uma disputa presidencial e na internet não é difícil encontrar cidadãos-eleitores que ainda fazem confusão sobre as atribuições constitucionais da União, Estados e Municípios, e dos Três Poderes. Em época de campanha eleitoral, também não é difícil encontrar, por exemplo, vereadores e deputados que prometem soluções que não são da competência do parlamento que postulam. E alguns se elegem! Na internet, as críticas à má qualidade da educação, da saúde e da segurança pública no país – entre outros problemas – geralmente são debitadas única e exclusivamente ao governo federal. Justamente por vivermos numa República Federativa, não dá para atribuir todo tipo de problema que o país enfrenta ao presidente ou, como é o caso agora, à presidenta. Num regime presidencialista, a União detém grande poder, mas não atua isoladamente. A transversalidade que põe outros atores federativos em ação é fundamental.

Se a educação ainda está muito distante do que se deseja para o país, essa conta também deve ir, proporcionalmente, para estados e municípios. Se é para reclamar das universidades públicas e dos institutos técnicos federais, a queixa deve ser endereçada, sim, à presidenta Dilma. Mas, se for escola estadual ou municipal, é preciso lembrar que o Brasil tem 27 governadores e 5.565 prefeitos. Isso sem falar nos 1.059 deputados estaduais e nos 59.500 vereadores. São eles que também precisam fiscalizar os governos estaduais e municipais e propor projetos que resultem em melhorias para os cidadãos. Acrescente-se, ainda, a esta conta, os 513 deputados federais e os 81 senadores. Assim, fica mais fácil entender o tamanho do problema, que é dar qualidade à gestão pública e impedir que interesses privados se apropriem dos recursos comuns, enriquecendo poucos e deixando migalhas à maioria.

Há, portanto, que dividir o fardo. Até mesmo com os simples cidadãos e cidadãs, sem cargos, que podem exercer com zelo e competência uma profissão, pagar os impostos devidos e educar os filhos com valores éticos. A responsabilidade aumenta quando alguém ocupa cargo relevante, seja em entidade privada, pública ou associações patronais e de trabalhadores. O grau de responsabilidade difere, mas ninguém pode reivindicar apenas os bônus.

Virou um bordão dizer “eu pago imposto”, para exigir serviço público de qualidade. O que é justo. Na crítica aos impostos, a mídia raramente informa quem é o principal agente arrecadador. Há casos, por exemplo, em que o ICMS (um imposto estadual) é o que mais incide sobre determinado produto.

A corrupção e a ineficiência são, certamente, problemas crônicos da sociedade brasileira, mas não apenas de um determinado segmento. Não podemos esquecer que muitos dos que se declaram revoltados com o baixo retorno dos impostos na verdade sequer pagam o que devem. Cálculos do Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) indicaram que em 2013 o país deixou de arrecadar cerca de R$ 415 bilhões por conta da sonegação de impostos. É quase a metade do que o país arrecada por ano. E é quatro vezes maior do que o orçamento da educação nacional, que cresceu mais de 205% na última década.

O estudo revela, ainda, que a carga tributária poderia ser reduzida em 30%, mantendo o valor atual da arrecadação, caso não houvesse sonegação. E se fosse somada ao que hoje já se arrecada, quanto mais poderia ser feito na saúde, na educação e na segurança pública? É simplório demais atribuir a um governo ou a um dos Três Poderes a culpa por séculos de interesses particulares que fizeram do país um dos campeões mundiais da desigualdade e da exclusão social. É preciso uma divisão mais honesta das responsabilidades. No mundo globalizado de hoje, há também um enorme poder das grandes empresas e conglomerados multinacionais sobre a gestão pública.

O Brasil é o único país do mundo com uma rede de saúde gratuita e aberta a toda a população. E é a única alternativa para 130 milhões de brasileiros que não têm plano de saúde. Mesmo aqueles que têm planos particulares acabam por se beneficiar do sistema público, seja em cirurgias, atendimento de emergência, campanhas de vacinação ou ações da vigilância sanitária. Boa parte dos problemas existentes na saúde deve-se, principalmente, ao orçamento ainda insuficiente e à má gestão do sistema. Um problema que não compete apenas ao governo federal. O artigo 195 da Constituição diz que a seguridade social “será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, além de contribuições sociais. União, Estados e Municípios precisam fazer cada um a sua parte para gerir bem os recursos, venham eles de onde vierem. E a sociedade precisa apoiar as ações que pretendem destinar mais recursos ao setor. Porque a conta precisa fechar e milagres são raros.

Fosse apenas isso, já seria muito. Mas o desafio é ainda maior quando se sabe que há segmentos que atuam de várias maneiras para impedir uma boa gestão pública. Por exemplo, quando pressionam para que recursos públicos sejam destinados a projetos da iniciativa privada que, em muitos casos, trazem pouco retorno à sociedade e favorecem os setores em melhor situação econômica. São esses setores, geralmente, aqueles que mais criticam os governos, quando estes destinam boa soma de recursos para políticas sociais de largo alcance e que amparam os mais pobres. O Bolsa-Família, elogiado pela ONU e ganhador de vários prêmios internacionais como exemplo de combate à miséria, tem sido atacado sem trégua nos meios de comunicação do país. Pequenos erros ou fraudes – insignificantes no contexto geral – são transformados em justificativa para pesadas críticas, disfarçadas de boas intenções. Há os que dizem, “é bom, mas não resolve”, ou “é um projeto eleitoreiro”. Outros, mais contundentes, afirmam que “é esmola” ou “estímulo à vadiagem”. Nenhum projeto social é solução para tudo. É a somatória de vários deles que poderá proporcionar perspectivas melhores e dar mais autonomia a milhões de brasileiros.

Para isso, é preciso que o dinheiro público seja investido primordialmente em políticas que diminuam a injusta desigualdade social. E que os mais ricos paguem mais impostos, proporcionais a seus ganhos. Por que o automóvel da classe média paga imposto e lanchas, iates, jatos e helicópteros da classe rica são isentos? Órgãos públicos são, às vezes, reféns de forças políticas e econômicas que preferem sucateá-los, de olho nos ganhos privados. Quanto pior o ensino público, mais brasileiros vão tentar pagar uma escola particular. Quanto pior estiverem os hospitais e postos de saúde da rede pública, mais facilmente se venderão os planos privados de saúde. O que nem sempre significa mais qualidade. Os bancos, as operadoras de telefonia celular e os planos privados de saúde são campeões de reclamações nos Procons. A penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, palco recente de horrores, é administrada pela iniciativa privada.

Até mesmo a segurança pública, quando ineficaz e negligenciada pelos governos, põe a roda da fortuna a girar para os empresários do ramo, que enchem os bolsos vendendo produtos para aumentar a segurança dos cidadãos e de suas famílias. Os vigilantes privados já são mais numerosos do que o efetivo de policiais militares e somam 35% a mais do que o total de homens das Forças Armadas. O fenômeno do crescimento da criminalidade urbana não é apenas brasileiro e tem se acentuado desde o final dos anos 70. Segundo estudo da ONU, o setor de segurança privada já emprega cerca de 20 milhões de pessoas. O número é quase o dobro da quantidade de policiais em atividade no planeta. Quem ganha muito dinheiro com a violência urbana talvez tenha menos estímulo em lutar pela paz social.

Há muito mais interesses econômicos e políticos em jogo do que supõe a vã ingenuidade dos que acreditam que o caos e a ineficiência devem-se apenas à incompetência de quem exerce o poder. Em muitos casos, a inoperância é habilmente construída para favorecer e enriquecer minorias. Por exemplo, quando os setores público e privado se unem para roubar o dinheiro que deveria ser investido para melhorar a nação. Licitações viciadas para o “amigo do amigo”, parentes, correligionários – entre outros – drenam para poucos um dinheiro que deveria servir a muitos. Outra forma de dilapidar o patrimônio público são as concessões à iniciativa privada daquele tipo “bem camarada” e sem nenhuma fiscalização sobre o cumprimento do contrato. Nem todos agem assim, mas os exemplos são muito frequentes, de norte a sul do país.

Enfim, seria ótimo se os problemas mais graves do país pudessem ser resolvidos apenas por um presidente, um governador, um prefeito, um partido político, um parlamentar, um membro do Judiciário, uma federação empresarial ou uma central de trabalhadores. O problema é geral, com as exceções de praxe daqueles que, apesar de tudo, continuam impregnados de espírito público e trabalham para dar mais oportunidades a toda a população. Porque a cultura do “toma-lá-dá-cá” e das negociatas em todas as esferas de poder é visível em todo o país. E boa parte daqueles que mais têm pressiona para ganhar novas benesses. Para os mais pobres e desorganizados, sobram migalhas e sofrimento, muito preconceito e discriminação. Para sair desse impasse, cabe ao cidadão e à cidadã, ao eleitor e à eleitora, compreender que numa República Federativa as responsabilidades precisam ser divididas. E cobrar do vereador, do deputado, do senador, do prefeito, do governador e de quem estiver na presidência aquilo que é da sua responsabilidade – exclusiva ou compartilhada. Sem esquecer das entidades de classe, ONGs, partidos políticos, movimentos sociais, todos, enfim, que compõem a sociedade precisam assumir para si, de acordo com as suas possibilidades e potencialidades, a construção de uma sociedade mais justa e solidária. É importante não dar apoio a políticas excludentes ou se omitir diante da opressão.

Eleger bodes expiatórios é, invariavelmente, contornar os problemas e nunca encará-los na sua enorme complexidade. É esperar que nos deem o que precisa ser conquistado. É atribuir constantemente ao outro a tarefa que a todos cabe. É ser egoísta, cruel e perverso diante do sofrimento alheio. É não dividir os recursos, com preferência aos mais necessitados. É não assumir a tarefa de ser parte da solução.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres. Ilustração de Marcelo Martins Ferreira, design e músico, especial para o texto

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Absurdada

por Cidinha da Silva 

– Pela milionésima vez, por favor, se amostrar, não existe. Não pega bem para você, uma pessoa formada e reformada pela universidade, usar uma expressão incorreta como essa.

– Ora veja, incorreto para mim é o que não faz sentido, se amostrar faz sentido para boa parte do país.

– Não faz sentido e está errado.

– Prismando pela gramática você pode até estar certa, mas no cotidiano das pessoas está errada.

– Por que você não usa um sinônimo mais simples da palavra? Exibido, por exemplo. Todo mundo conhece.

– Não dá, porque uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Quem se exibe é exibido, quem se amostra é amostrado.

– Compreendo. Mas, quem se exibe e quem se amostra não busca o mesmo resultado, ou seja, vender o próprio peixe? Pense bem, é melhor vender seu peixe com as palavras adequadas.

– Pois é aí que sua isca se engana, se exibir é assunto de vitrine, se amostrar é assunto de farmácia.

– Como assim? Você está me parecendo assunto de confusão mental.

– Não é que eu queira me gambá, mas confusa é você que prisma pela gramática e não entende os prismas criativos do olhar. Vou dar um exemplo para ver se te ajudo. Quando a pessoa compra uma roupa e não tira mais do corpo, aproveita e conta para todo mundo que comprou aquela peça, ela está se exibindo, é exibida. Mas quando a pessoa compra um corselet do tamanho de Minas Gerais, espreme o Pará, coloca dentro de Minas, depois vai debutar num ambiente para 20 convidados, ela quer se amostrar, é amostrada. Pensando em termos mais contemporâneos, os vendedores de shopping que olham com desprezo para os meninos dos rolezinhos e no fim das contas moram no mesmo bairro deles são exibidos. Eles acham que o nariz empinado, a gomalina no cabelo, a roupa padrão vendedor de loja de shopping e aquele olhar de conferência nojento em cada pessoa diferente do branco que eles almejam ser, faz deles seres diferentes e superiores ao rolezistas. Por outro lado, as meninas e meninos dos rolezinhos vão para os corredores dos shoppings para se amostrar, para serem consumidos uns pelos outros, são, portanto, amostrados. Percebeu a sutileza da diferença?

– Entendo, mas está errado.

– Como é que está errado se você entende? Se milhões de pessoas entendem e usam? Você não aceita a inventividade linguística do povo, isso é que é. Aceite que dói menos. Amostrar é verbo torto no breviário das conjugações e amostrado é particípio de amostra grátis! Pronto. Captou?

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O lugar que não existe


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

 Onde a civilização indígena se encontra intensamente com a latinidade, ao som dos trompetes onipresentes e das vozes onduladas de dezenas de grupos de mariachis. Um mar de barquinhos de madeira em cores berrantes, todos com nome de mulher. Lupitas, Carmelitas e Brendas em profusão, causando um engarrafamento dos mais divertidos, onde passam cozinhas flutuantes vendendo moles, tacos, quesadillas e salsas picantes à escolha do freguês. Mais brega impossível. Teimando em desafiar o inverno mexicano, o sol aquece ainda mais os nossos corações nesse incrível Xochimilco (pronuncia-se "Sotchimilco"), um lugar que não existe. Domingão que festejamos sem pudor, fascinados com as festas de aniversário, famílias com crianças e velhos, e até mesmo um grupo de judeus sisudos de cabeça coberta e senhoras comportadas, todos falando ao celular no meio daquele furdunço.

‏Outro ponto obrigatório é o mercado de San Angel, não só pela riqueza e sofisticação do artesanato, mas também pelo lindo bairro onde funciona, todos os sábados do ano. Quem sabe mais quemos mexicanos sobre as cores e seus poderes? Onde mais poderíamos encontrar máscaras de super heróis para adultos, com variedade e qualidade únicas? Sem falar nas caveiras, de todos os materiais, tamanhos e cores - e muito mais.

‏Mas uma megalópole de verdade tem seus infernos. Um que nos salta aos olhos e aos ouvidos aqui é o tráfego. Numa só palavra, insuportável. Mesmo assim, chama-nos a atenção a quantidade de mexicanos circulando nos locais de turismo, como quem diz "podem vir, amigos, entrem, visitem, aproveitem, a casa é nossa e nos orgulhamos muito dela".

‏Este detalhe surge na conversa que rola à mesa do jantar, sortudos que somos de estar, mais do que hospedados, acolhidos numa casa mexicana. Nossa adorável hospedeira nos situa, então, brevemente, na história do seu país, principalmente naqueles aspectos que mais orgulho lhe dão: o da identidade nacional tão apreciada por eles mesmos e o da calidez, da abertura para receber gente de todos os lugares, principalmente os perseguidos, os indesejáveis, os banidos.

‏Alguém ainda duvida de que depois da segunda garrafa de vinho as pessoas ficam mais inteligentes, espirituosas e conversadeiras? Corações e mentes amolecidos, somos conduzidos numa fascinante visita aos tantos episódios em que os mexicanos abriram espaço para acolher Alexandra Kollontai (feminista russa de cem anos atrás), Leon Trotsky, Gabriel García Marquez, Chavela Vargas, Juan Gelman e muitos outros. Como não se orgulhar? Um terceiro brinde, por favor. Viva o México!

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Érika Mesquita, a primeira brasileira a estudar a antropologia do clima


foto de Nayanna Marques
A antropóloga Érika Mesquita, doutora pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) é a primeira brasileira a pesquisar antropologia do clima. Ela realizou durante quase cinco anos uma pesquisa pioneira que trata sobre a percepção das mudanças climáticas por grupos indígenas e comunidades extrativistas na região do Alto Juruá no estado do Acre. Ela se debruçou sob dois grupos étnicos, os Ashaninka e os Kaxinawá, e sob três comunidades extrativistas, situadas na Reserva Extrativista Alto Juruá. A linha de pesquisa denominada também de etnoclimatologia, trás informações importantes para entender a cosmovisão indígena sobre o tema e notar, com exemplos concretos, qual é a contribuição dessas populações para a manutenção da floresta e da vida. Este ano Mesquita irá lançar um livro com o resultado de sua tese de doutorado pela editora Mercado das Letras, em Campinas. Confira a entrevista que o Nota de Rodapé fez com a antropóloga.

entrevista por Ana Mendes*

NR – O que te motivou a fazer este trabalho?

Eu me motivei a pensar sobre o clima aqui na região porque hoje em dia os paradigmas sobre esse assunto estão completamente mudados. E eu queria entender até que ponto os indígenas tem conhecimento disso e o que eles tem a acrescentar nessa temática. A verdade é que as Ciências Sociais não está trabalhando as questão das mudanças climáticas. E ela tem que se voltar pra isso, principalmente a antropologia. Os geógrafos e os engenheiros ambientais falam muito sobre o clima. Mas nós, antropólogos, sabemos que nessas análises falta o olhar do cotidiano. Daí a ideia de trabalhar essa produção de conhecimento com os indígenas e com as populações tradicionais. Onde eu trabalhei a maioria das pessoas não tem acesso a informação da mídia. Então eu pude compartilhar como eles enxergam isso realmente.

NR – O que é antropologia do clima?

A antropologia do clima está nascendo agora. Ela é um olhar dentro da antropologia que está buscando analisar as mudanças climáticas. Existem poucas pessoas trabalhando com isso, uma delas é uma colega do México, Esther Katz, que pesquisa populações originárias lá, e eu, aqui. O meu desejo é que muito mais gente faça isso, pra que possamos montar um mapa dos conhecimentos tradicionais indígenas em todo o Brasil. Mas, claro, há que se tomar muito cuidado porque trata-se de uma etnografia somada a uma nova forma de olhar que a antropologia está pegando emprestado das ciências naturais, da geografia física. Em resumo, estamos buscando saber como isso [mudanças climáticas] está sendo sentido no dia-dia, não só nas situações de catástrofe, mas no cotidiano.

NR – Li no teu trabalho que os índios Ashaninka precisam fazer o reflorestamento de certas espécies que antes era feito naturalmente, quando a época dos ventos coincidia a floração. Há outras iniciativas nesse sentido?

Justamente, eles já fazem estas coisas a sua maneira. Há também a agrofloresta que os índios já praticam, mas isto não é fomentado por nenhuma política. Então, a questão é mostrar pro poder público que se pode fazer mais. O conhecimento que eles produzem pode gerar políticas públicas. Não basta só olharem o painel do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas]. E eu não estou criticando, mas estes dados devem ser somado à outros olhares. Os governos tem que saber que essas populações podem contribuir, contribuir na prática. Lá nas Filipinas, perto de onde aconteceu essa grande catástrofe recentemente, um xamã percebeu que vinha o tsunami. Aquele último, de 2004. Ele avisou pra todos da aldeia. E as pessoas foram se refugiar nas montanhas mais altas. Mas na cidade, o poder local não acreditou nele quando tentou alertá-los sobre a onda gigante. É justamente pra fazer com que esse tipo de coisa não passe batido que deve-se trazer à tona o conhecimento tradicional. Os poderes locais e globais tem que acreditar que este conhecimento não é mito. São uma categoria que tem prática sim. Ainda há um precipício entre o conhecimento tradicional e o conhecimento institucionalizado. E essa história está aos poucos sendo fecundada. Porque em relação às políticas públicas para povos indígenas o tratamento ainda é de cima pra baixo, infelizmente. Este ano a UNESCO vai lançar um coletânea de artigos sobre o viés das Ciências Sociais a respeito das mudanças climáticas, incluindo o meu trabalho.

Indios Katukina, proxima etnia a ser pesquisada
[Foto Ana Mendes] 
NR – Você acha que a Academia está conseguindo absorver esse conhecimento?

Nos grandes polos de conhecimento do Brasil sim. Ainda não atingiu a grande mídia, mas a gente já vê que o movimento é pra que isso aconteça. Muitos antropólogos brasileiros estão trabalhando nessa mesma linha. Eu bebi muito nessas fontes: Manuela Carneiro da Cunha, Gilles Deleuze, Marcel Mauss, Eduardo Viveiros de Castro. A começar por Marcel Mauss, que na década de vinte fez uma classificação do pensamento nativo. Ele foi visto como um grande etnógrafo, mas nunca foi colocado em prática. Então, muita coisa escrita por grandes antropólogos estavam engavetadas e parece que agora está vindo à tona. Hoje em dia vivemos um novo paradigma da ciência tradicional. Muitos cientistas estão com os olhos mais abertos para a ciência nativa. Já temos graduações indígenas, médicos indígenas e daqui a pouco os primeiros doutores indígenas.

NR – Me fala um pouco sobre as tabelas que tu elaborou com os tipos de chuva, de sol e de lua. Porque tu sentiu a necessidade de fazer essa organização?

É inacreditável pensar que as populações tradicionais enxergam seis tipos de sóis. Vou te dar um exemplo prático, quando fui morar em uma aldeia na cidade de Marechal Taumaturgo, achava que qualquer água que caia do céu era chuva. Mas tem chuva feminina, masculina tem chuva que é 'feita acontecer'. Os Ashanika mascam batata e sopram, aí a chuva vem. Foi surpreendente quando eu comecei a perceber que essa noção pra eles não é tão genérica como pra nós. Quando eu falei 'tá chovendo' a primeira vez me corrigiram 'Isso não é chuva, é puagem. Chuva é quando molha a terra.' Quem não vive na floresta tem um olhar mecânico, os índios são cheio de pormenores. Eles tem um conhecimento muito grande que até então, há mais ou menos cinco anos não era valorizado, mas agora a coisa tá mudando. Como dizem nas manifestações, Brasil a fora, 'o gigante acordou!' e acordou pra muita coisa mesmo. Não só tardiamente em manifestações, mas também na ciência com relação ao conhecimento indígena. Só tá faltando virar política pública.

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Ana Mendes, gaúcha de nascimento, é fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Mantém a coluna mensal Faço Foto.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Os gatos de minha vida


por Thiago Domenici

 Para Mentor

Alvinegros, muita coisa diferencia a Piaf e o Zola. Nela, o nariz cor de rosa ganhou um leve “ponto final” preto. Nele, o nariz e o queixo, ambos brancos, ganharam uma cobertura preta sutil e meio triangular. Nela, o pelo é preto escuro e brilha. Nele, se esconde por baixo do preto uma tonalidade rajada num cinza grafite que só se vê com boa luz. Não são de sangue, mas são irmãos. E se amam. Nesse um ano de convivência, nem à distância é possível confundir a espreguiçada elegante da Piaf e o olhar de expectativa do Zola. O ritual da lambida de um e a faceirice da outra ao se jogar ao chão de barriga para cima ao identificar alguém que gosta é espetáculo à parte.

A adoção dos dois tem sido uma vivência das mais apaixonantes. Eu, que sempre gostei de bichos, tive algumas experiências dolorosas antes da emancipação a vida adulta. Emancipação significa ser o responsável, de fato, pelo bem estar do animal. Ao voltar no tempo lembro, por exemplo, de dois poodles (Snoopy e Baby) da minha infância que amei. Certo dia, sem mais, foram embora por conta de uma mudança de casa. Foi repentino e chorei muito.

Antes, tive outro cachorro vira-lata que nem Cesar Millan, o encantador de cães, daria jeito tão rapidamente. Eu, criança em flor, não sabia lidar e tive medo. E a cachorra se foi a desfrutar outro lar. Surgiria um gato siamês no horizonte. Era o Don Juan da rua Cantiga do Desencontro, onde morei parte da minha infância. Além dos amores e desamores felinos, o siamês arrumou inimigos zumanos na vizinhança, de quem roubava comida da panela. Era um boêmio e chegava sempre estropiado de suas quentes noitadas. Era livre. E um dia não voltou mais.

Antes de Piaf e Zola chegarem a bordo da nave, convivi com outro siamês: o Mentor. Além dele, ainda convivo com as persas Nina – carinhosamente chamada de Pipoca – e Fumaça. Tem ainda o Sombra, um vira-lata como a Piaf e o Zola, mas que de tão grande e peludo é confundido com a raça Maine Coon (aquela dos maiores gatos do mundo). Pois são quatro gatos e um cachorro além da Piaf e do Zola. Uma cachorra que tem certeza que é gato, no caso: a Lisa, uma pastora de shetland encantadora que merece um texto só para ela.

Todos são da família materna da Natalia (e dela também, é claro). Por assim dizer: da minha sogra e seu marido, além do meu cunhado. Nina lembra um algodão doce ou um pedaço de nuvem bem branquinho. Tem uma espécie de síndrome de down felina. A Fumaça, uma pequena maravilha, é de um cinza tenaz, desconfiada, mas amorosa, dona de um corpo lânguido que flutua em vez de andar. De olhos amarelo-ouro e expressão blasé, o Sombra, que é todo preto, não esconde sua verve gato de pelúcia dengoso.

E o Mentor? Ah, o Mentor. Logo nos primeiros meses de casa nova fora confundido com uma fêmea. Era macho, oras! E de olhos firmes e atentos. Um siamês voluptuoso e dono de uma inteligência difícil de explicar. Certa vez, conta Natalia, pegou uma caneta com uma patinha só e sentou com as duas patas traseiras. “Lembro que brinquei e cheguei a oferecer um papel pra ele”. Além disso, suas artes foram inúmeras: ficou preso no forro da cama-box, no edredon, com uma patinha presa na janela, no esgoto/fossa do banheiro, no telhado da casa do zelador. E sempre que alguém ia trocar uma lâmpada ele subia na escada e ficava estendendo a patinha como se fosse ajudar. Diz minha sogra que ele pegou uma mosca com uma pata só. É, sem dúvida, o felino mais perspicaz e curioso que conheci. Era dono de si mesmo, independente e orgulhoso. Resume bem o que o historiador Frances Taine escreveu: “conheci muitos pensadores e muitos gatos, mas a sabedoria dos gatos é infinitamente superior.”

Piaf e Zola vieram da UIPA – União Internacional Protetora dos Animais. Zola chegou adulto e um tanto traumatizado. É um gato especial, sem dúvida. Seu miado é sua marca registrada: um cantarolar, quase um mantra, que varia de entonação conforme o seu desejo. Piaf, harmoniosa de ritmo próprio, dormia em meio a centenas de outros quando foi escolhida. “É calminha”, disse Natalia. De fato, é tranquila, mas com períodos de turbulência. Já Zola nos escolheu, estava decidido: olhou bem fundo nos nossos olhos e cantarolou: “me leva daqui, vai...”.

A adaptação nos primeiros meses foi complexa. Zola, por exemplo, se escondeu debaixo do armário da cozinha e depois no escritório. Foi preciso conquistar sua confiança,  coisa que veio umas 24h depois de sua chegada. Hoje, dorme diariamente ao pé da cama, acorda com minha esposa, toma “café” junto e volta a dormir. É um ritual, uma rotina inabalável.

Piaf, que adaptou-se bem a mudança de ambiente, foi acometida por uma espécie de gripe de gatos e sofreu com medicação pesada e rações especiais. Hoje, é a lady da casa e adora subir nas cadeiras, sofás (além de destruí-los) e se esfregar em nossas cabeças. Nesse um ano, nossa casa se encheu de alegria e nosso prazer é tão bom quanto o ronronar deles.


Thiago Domenici
, jornalista, coordenador e editor do NR. Ilustração: quadro do artista Aldemir Martins.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Carta a João (que amava Teresa)



por Ricardo Viel*

Itabira, novembro de 1929

João:

meu amigo, gostaria tanto que esta carta levasse boas notícias, mas não, não será assim. Carrega um pedido de desculpas e uma triste nota de falecimento. Começo pelo segundo, que é mais urgente. Ontem, dia 20 de novembro deste ano de 1929, o nosso Joaquim deu cabo da vida. Antes de se enforcar em uma mangueira, deixou a típica carta de suicida na qual nos exime a todos de qualquer culpa, e que nos faz sentir ainda mais culpados.

Todo suicídio é evitável, e o caso do nosso amigo é só mais uma prova disso. Desde a tua partida para os Estados Unidos (já deve fazer uns oito anos anos ou mais), nosso grupo foi se desfazendo. Você foi tentar a vida do outro lado do continente (por certo, diga-me como vão as coisas, as notícias que chegam cá é que vive-se uma grande crise, espero que estejas bem), Raimundo mudou-se para a Bahia, o Carlos instalou-se na capital, e eu cada vez via menos o Joaquim. Sinto-me culpado, eu era quem estava por perto, e não percebi – ou não me importei – que ele estava passando por um período complicado. Havia rompido com a Maria, mas esse não era o principal problema, eu creio; ele nunca a amou. O grande baque foi com a Lili, que o desprezou e jogou muito baixo. Um dia, no Bar da Lúcia, o Joaquim me contou que a Lili certa vez lhe disse que enquanto ele estivesse com a Maria nunca nada aconteceria entre eles. Ou seja, deixou nas entrelinhas que se ficasse solteiro as coisas poderiam funcionar. Você não acompanhou isso, mas foi um escândalo na cidade quando o Joaquim resolveu romper o noivado com a coitada da Maria. Cidade pequena, todo mundo ficou sabendo, e muita gente desconfiou de que havia uma culpada. E então o Joaquim esperou passar umas semanas, deixou a poeira assentar, e foi todo perfumado e com ramo de flor na mão para conquistar Liliane Dutra Buaventura. Recebeu foi um tremendo não no meio do peito. Aquilo lhe doeu mais do que fosse uma navalhada nas carnes. Lembro-me de encontra-lo na praça umas quantas vezes perdido, só, e sem dizer coisa com coisa. Por conta da bebida, perdeu o emprego na companhia. Cheguei a vê-lo dormindo na rua num domingo antes da missa. E eu, como estava bem, feliz, casado e cheio de planos, evitava cada vez mais o contato.

Uma das últimas vezes que o vi foi no velório do Raimundo. Espero que tenham lhe contado... Foi terrível, pobre homem. Pobre e azarado, porque no trem ia muita gente, mas só morreu ele. Demoraram quase um mês para trazer o corpo dos confins da Bahia. A família endividou-se, precisou pedir dinheiro a todos, e o caixão veio lacrado. Sabe-se lá se o corpo que havia ali era o do Raimundo. Nem sei se ali havia um corpo.

O Joaquim apareceu bem vestido, mesmo terno que hoje o enterraram, cabelo penteado, barba feita, mas era impossível disfarçar a miséria de vida que levava. Contou-me que tinha planos de abrir um negócio, que precisava de um capital. Antecipei-me, e disse que se ele soubesse como conseguir que por favor me dissesse porque eu também necessitava dinheiro para trocar minhas máquinas. Dali fomos tomar umas cachaças, e falarmos de ti. E da Maria, que parece ser que não sai de casa e disse que não quer saber de homem mais na vida. E logo surgiu o tema Lili. Joaquim disse que o que mais lhe doía era que cada vez que a via ela estava mais bonita e encantadora, enquanto ele era aquele farrapo sem trabalho e sem sonhos.

João, depois da terceira dose ele começou a chorar, e falou que não valia a pena viver, que o bom mesmo era dar um fim. Disse assim, João, “dar um fim nas coisas”, e eu me fiz de desentendido, olhei o relógio, disse que era tarde, paguei a conta (faço questão de pagar, eu disse com o peito cheio), dei um tapa nas costas dele, e fui embora achando-me um homem bom, um sujeito que havia vencido na vida, não como o Joaquim.

Isso faz uns seis meses. Foi a última vez que nos falamos. E ontem ele cumpriu com o que tinha dito. Deve ter sofrido um bocado o nosso amigo. Lembro-me tanto dele menino, de todos nós, das nossas farras, das nossas conversas e dos nossos projetos. Nada saiu como planejávamos, verdade?

No velório, já entrada a noite, apareceu a Lili. Ia acompanhada de um tal de João Pinto, parece ser que é filho do Fernandes da Carniçaria, você conhece? Abraçou a dona Dolores, cumprimentou-me com um cordial e falso inclinar de cabeça, e foi-se embora com cara de triunfo tomada da mão daquele homem que eu nunca tinha visto na vida. E fiquei a pensar que se ela tivesse escolhido o Joaquim, eu estaria agora era escrevendo uma carta para contar da festa de casamento, ou do batizado da criança que acabara de nascer. Mas não, não é assim, e a Lili não conseguia disfarçar a alegria mórbida de estar ali, de estar acompanhada, de ter optado pelo filho do Fernandes e não pelo Joaquim, que não era filho de ninguém e tampouco será o pai de alguém.

Só não foi pior porque por lá apareceu o Carlos, que há anos se foi para a capital e pouco aparece por aqui. Contou-me que a faculdade de farmácia não lhe serviu para grandes coisas, que o seu negócio é mesmo escrever, e que está metido em um projeto de um livro de poesia. Disse que prepara surpresas. É o mesmo de sempre: elegante, discreto, e genial. Tenho certo que se falará muito dele no futuro.

Pois era isso, meu caro amigo. O pedido de desculpas é pelo sumiço. É inadmissível que nos percamos dessa maneira. Mande notícias, de preferência boas, eu tratarei de fazer o mesmo. Um abraço forte,

Edu Coutinho

Pós-escrito: e de Teresa, sabe algo?

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Ricardo Viel, jornalista, atualmente em Lisboa, Portugal. Ilustração: ROBERT BEATTY SURREAL-SCAPES

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

São Jorge

por Fernanda Pompeu*

Reconheço que na maioria da vida dos santos há abnegação, sacrifício, compaixão. E, é claro, esforço e graça em amar o outro, principalmente quando esse outro são crianças, bichos, velhinhos. Os santos amaram, cada um ao seu modo, a imensa legião dos sem. Sem dinheiro, sem casa, sem país, sem alfabeto, sem direitos, sem sorte. Praticaram o chamado e idealizado amor gratuito.

Sempre me surpreendeu quando um amigo ou conhecido revelava seu santo de devoção. Filha de mãe e pai ateus, vivi minha infância sem medalhinhas ou retratinhos bentos. Mas, brasileira, sou herdeira de uma religiosidade mestiça, abundante e flexível. Daí, já na minha vida adulta, percebi que eu também precisava eleger um santo pra chamar de meu.

Por fidelidade de gênero, no princípio, procurei uma santa. Tendi para a Santa Clara, uma vez que no começo da minha de saga de trabalhadora estive envolvida com cinema, vídeo e televisão. Encontrei poética a ideia de uma santa que, em 1688, fez uma menina cega voltar a ver. Clara de Assis que se tornaria, no século XX, a padroeira dos ofícios da imagem. Mas foi uma escolha cerebral demais, não pegou no coração. Segui deserdada de santo.

Até que numa data qualquer, ouvindo uma emissora de rádio, me encantei com a voz da xará Fernanda Abreu interpretando Jorge da Capadócia, de outro Jorge, o Ben Jor: "Jorge sentou praça/ na cavalaria / Eu estou feliz / porque eu também / sou da sua companhia." A partir daí, minha memória ateia passou a recuperar milhares de imagens do lanceiro sobre um cavalo. Nos táxis, nas cozinhas, nos bares, nos barracos. O cavaleiro lutando contra o dragão da maldade.

Gostei principalmente de ele ser um santo guerreiro. Aquele que sabe que paz se conquista com luta. Pronto. Virei São Jorge. Entrei para a legião dos milhões de devotos. Ele é santo em rede, conhecido no Oriente e Ocidente, popular nas igrejas Católica, Ortodoxa, Anglicana. Aquele que conjuga força e fé, pois uma nada pode sem a outra. Se você age sem acreditar, dá em nada. Também dá em nada acreditar sem agir. Por fim, São Jorge é Ogum! "E beira-rio, beira-rio, beira-mar / o que se ganha de Ogum / só Ogum pode tirar."

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fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé. *Texto publicado originalmente no Mente Aberta - Yahoo. Imagem: Régine Ferrandis, "São Jorge lutando com o dragão", de Rafael.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Telenovelo: pobres homens


por Júnia Puglia  ilustração Fernando Vianna*

Deixa ver se eu entendi “Amor à Vida”. Aline é uma piranha, que se emprega como secretária do César, de olho na fortuna dele. Trabalhada no decote, na saia curtíssima e nas caras e bocas. O otário cai na conversa, se apaixona, casa e passa para ela uma procuração com plenos poderes sobre seu próprio e vasto patrimônio. Mas não sem antes se deixar cegar, através dos efeitos de um pó mágico, que Aline o faz ingerir sistematicamente.

César é um médico famoso, dono de um grande hospital, casado com Pilar, a quem traiu vezes incontáveis, inclusive com a nora de ambos, Edith. A uma certa altura, cai de amores pela secretária Aline, a cascavel interesseira, que inclusive domina a arte de cegar médicos experientes com pós misturados ao uísque, que o desinfeliz bebe como água, sem nem desconfiar.

Amarílis é uma médica mal amada e amargurada. Grande amiga do Niko, uma bicha boazinha, ansiosa por ter uma família para chamar de sua. Niko é casado com Eron, e com ele planeja contratar uma mulher para gestar-lhes um filho, concebido por inseminação artificial. Amarílis se prontifica para a tarefa. Niko a traz para morar com o casal durante a gestação, e a mocreia faz o maior jogo duplo. Seduz o pobre Eron e o rouba de Niko, se nega a entregar o bebê ao amigo e se supera todos os dias na arte da manipulação e da chantagem emocional contra os dois.

Alejandra é outra criatura do mal, oriunda das trevas incas do Peru, cheia de péssimas intenções gratuitas, que resolve explorar o sentimento do ingênuo amigo Ninho, um artista plástico podecrê. Ele cai na conversa dela e concorda em sequestrar a própria filha, para se aproximar da menina e ficar numa boa com a vilã.

Ninho é um cara do bem, mas não resiste a uma bruxa competente, que o convença a praticar as piores maldades, pois seu estilo de vida alternativo negou-lhe a oportunidade de ter boas influências e construir um caráter respeitável. Na juventude, envolveu-se com Paloma, uma criatura frágil e aguada a ponto de se apaixonar por um bonitão inútil como ele, que só faz maldades porque mulheres más o perseguem. Aline se aproveita do coitadinho e o obriga a fazer coisas terríveis, como matar a tia Mariah com uma tesoura de cozinha. Glauce é a víbora ginecologista, obcecada pelo Bruno “Bofe de Ouro”, cuja mulher dá à luz em condições de alto risco, o que oferece à doutora a oportunidade de assassiná-la sem deixar rastro, para depois poder arrastar a asa para o viuvão sofredor. Mais tarde, torna-se amiga e aliada de Félix, a bicha má da história.

Leila é uma moça pobre e ambiciosa, que tem uma tia rica e uma irmã autista, a quem ela odeia. Através da tia, conhece uma garota milionária e sozinha no mundo. Bola um plano maquiavélico para roubar-lhe a fortuna e convence Thales, seu guapo namorado escritor, a participar do plano e seduzir a ricaça, casar com ela e eliminá-la, para que depois ambos se joguem juntos na dinheirama. Ele aceita, o plano funciona e a moça rica morre, deixando seus milhões de herança para o garboso rapaz. Mas ele é sensível, coitado, começa a ver a morta pela casa, e fica lhe fazendo juras de amor eterno. Natasha, meio-irmã de Nicole, o enreda em outra armação pérfida.

Félix é a quintessência do vilão: ambicioso, mesquinho, ardiloso e estridente. Apronta todas com todas e todos. Rouba da própria irmã a filha recém-nascida e a abandona numa caçamba de lixo, trapaceia, mata, planeja sequestros, faz um casamento de aparência com a Edith (uma vilãzinha de quinta), surrupia as economias da Amarílis para investi-las em suas falcatruas, pinta e borda em várias modelagens e tons. A certa altura, a solidariedade e a generosidade de uma suposta estranha o comovem de tal forma, que ele se vê como um ser totalmente desprezível, se arrepende de todas as suas incontáveis maldades e se regenera. No caminho do bem, terá a companhia de Niko, o bonzinho, com quem está prestes a iniciar o romance da superação.

Então, ficamos assim: César, Niko, Eron, Thales e Ninho são todos pobres vítimas das bruacas irremediáveis Aline, Amarílis, Alejandra, Leila e Glauce, enquanto Félix, ferino e perigoso, se regenera, conquista o afeto de todos e encontra o amor nos braços de Niko.

É isso mesmo, Arnaldo?

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Nazis Soltos, Rolezinhos no Corredor Polonês


por Cidinha da Silva*

Fazia sol bonito depois da chuva que havia espantado muita gente da Benedito Calixto. A mulher albina, de dreads grossos no cabelo crespo, meio amarelo, meio branco, circulava protegida por óculos escuros que lhe guardavam parte da face. Vez ou outra renovava a proteção dos lábios e da pele com cremes importados.

Ela vasculhava os produtos das barracas em busca das últimas lembrancinhas encomendadas pelos amigos estadunidenses, sandálias de dedo, de todos os tipos, cores e estampas, eram o must daquele verão.

Depois de finalizar as compras, a estrangeira decide comer algo. Em meio a tantos pratos saborosos escolhe um bacalhau gratinado com batatas. Pede na barraca ao lado um caldo de cana, bem gelado. Um cheiro de dendê fumegante move seus olhos para os boxes seguintes e ela paralisa o garfo a caminho da boca quando vê um homem a espera de um acarajé, tatuado com a suástica no peito.

Era branco, tinha quase dois metros, corpanzil trabalhado no anabolizante. Usava botas de alpinista, calça do exército do país dela, cortada como bermuda. A cabeça era raspada, o peito nu e a tatuagem cravada ali, deixando-a em estado de alerta.

Em situações de perigo (e em política, circunstância não menos perigosa), reza a norma que você imagine cenários. Ela já conhecia as assimetrias brasileiras o suficiente para saber quem pode se sentir protegido e quem é o suspeito preferencial na escala cromática do biopoder.

Ninguém molestava o indivíduo, cuja presença parecia não incomodar a ninguém. Aquela tatuagem não era Mandela, Gandhi, Benazir Butho, não, era a suástica! Embora ela tivesse consciência plena de que quem vê tatuagem de pacifista inscrita em um corpo, não vê coração. Há muita gente do fã clube do Mandela morto incapaz de agradecer ao ascensorista ou à faxineira que segura a porta do elevador para que a beldade entre. Mas a suástica é diferente, é explícita, direta. Ela emite uma mensagem instantânea de ódio racial dirigido às pessoas que não são arianas e isso deveria ser reprimido por quem zela pelas liberdades civis.

A moça passa os olhos ao redor em busca de um policial. Quem sabe se avisasse sobre o homem da tatuagem odiosa, talvez tratassem pelo menos de observar os movimentos do suspeito. Não há polícia e mesmo que houvesse, costumam ser treinados para garantir a segurança dos civis de classe média e para reprimir a circulação de meninos pretos e pobres em shopping centers, em nome da garantia da liberdade de consumo dos que têm dinheiro para consumir.

Está sozinha. Apavora-se. Vê então outro homem tatuado, desta vez perto de si, na barraca de churrasco. A tatuagem é verde e fica esmaecida na pele preta do homem. Ele a observa com cara amigável. Ela pede socorro com os olhos. Ele entende e sorri. Levanta um espeto bem acima da cabeça, olhando-o contra o Sol para conferir se está mesmo limpo. Faz isso com vários outros instrumentos perfurantes. A moça resolve mudar de lugar e senta-se próxima ao homem. Nunca se sabe quando um espeto de churrasco será útil.

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 escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Perseguição


por Carlos Conte   ilustração Leandro Lobo*

Enquanto ela descia, eu subia a Av. Angélica. Pena que foi dessa maneira, ao acaso, no meio da cidade. Apenas uma desconhecida. Vejo hoje uma pessoa na rua e provavelmente não voltarei a vê-la.

Mas foi impossível ignorá-la. Sim, tinha cruzado meu caminho, enquanto eu subia e ela descia a Av. Angélica: o encontro de dois roteiros, um que leva ao centro, outro que leva ao bairro. Sei que faz parte da rotina cruzar com meninas interessantes, totalmente desconhecidas. E ninguém é louco de sair se apresentando, ainda que seja a mais bonita de todas as meninas.

Como andava rápido! Paulistana demais. Calça jeans apertada, marcando-lhe as coxas, cintura, bunda. Caminhava com o tronco firme, mas a cintura rebolando. Seus braços, como se atendessem a uma rígida disciplina, não se afastavam muito do corpo; apenas se movimentavam para frente e para trás. Pulseira discreta no pulso direito, mais o relógio. Cabelos pretos, cacheados, até a cintura, contrastando com a pele branca, sob a blusinha de alça vermelha (e fiquei imaginando o ritmo dos seus seios, já que a observava de costas). Estava apaixonado.

Atravessou a rua, entrou na Sergipe. Quem sabe uma vestibulanda... Ou talvez procurasse pelo número de um laboratório, uma clínica médica. Impassível, atravessou a rua imersa nas sombras gigantescas das árvores, caminhou mais alguns metros e parou no sinal. Assim ficamos lado a lado, esperando o farol fechar.

Atravessamos e descemos a Consolação. Juntos. Já não pensava nas minhas obrigações. Meus compromissos do dia foram subjugados pela loucura. Pelo desejo. Queria me aproximar o suficiente para sentir o seu perfume. Queria sussurrar alguma coisa no seu ouvido.

Entrou na padaria. Eu entrei também, e nos sentamos juntos ao balcão. Ela pediu café com leite. Eu pedi um expresso e peguei um livro na mochila, para disfarçar. Acho que ela me olhou. Pela primeira vez eu pensei, um pouco humilhado, que tinha me desviado do caminho de casa há 20 minutos, em plena segunda-feira, por causa de um rabo de saia. Mas levantei a cabeça e continuei minha perseguição, assim que ela pagou a conta e se levantou.

Viramos na Rua Augusta, atravessamos na faixa, atingimos a outra calçada. Aonde me levava? Ela me guiava, eu consentia. Nossa relação era essa.

Até que parou em frente a um sobrado. Sacou da bolsa o telefone celular, depois um batom e um pente de plástico. Virou-se na minha direção: “Oi, gato!”, como se nos conhecêssemos. Pelo que entendi, deveria esperar meia hora. Em meia hora ela estaria pronta. “Sabe que fui com a sua cara, gato? Gosto de homem corajoso... Você faz isso sempre?”. “Isso o quê?”. “Seguir as meninas na rua... Não que eu tenha me incomodado”. Respondi que não, que raramente fazia isso.

O porteiro a cumprimentou com um beijo no rosto e um abraço efusivo. “São 10 reais pra entrar”, ele me disse, “e enquanto a menina se apronta você pode ir tomando uma cerveja, uma caipirinha...”. Esse lero conhecido dos que experimentam descer a rua Augusta até o fim. Entrei.

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Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração de Leandro Lobo, convidado especial para o texto

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Terminal Pinheiros 209P



por Maria Shirts    ilustração Camila Rocun*

Esses dias peguei um ônibus de Perdizes com destino à minha casa, que fica em algum limbo entre a Sumaré e a Vila Madalena (num daqueles bairros que ninguém nunca sabe o nome). O trajeto é fácil e corriqueiro na minha vida: basta aguardar o Terminal Pinheiros que vai toda vida pela Paulo VI, onde desço no último ponto.

Pra quem não sabe, sou uma ativista fervorosa do transporte público. Nunca aprendi a dirigir, e nem vontade tenho. Acho os automóveis inconvenientes, grandes carcaças de toneladas mal-educadas. Não sei porque, mas tenho algum incômodo com o individualismo que o modal representa.

Por isso, fico militando nas vidas virtual e real em prol do busão. Tento espalhar a notícia de que as novas faixas estão mudando a cidade e o nosso modo de se locomover. “É muito melhor do que você imagina”, costumo dizer com frequência. No mês passado, entretanto, o Terminal Pinheiros demorou um pouco mais do que o comum. Quando veio, chegou um ônibus enorme, daqueles de sanfona, anunciando uma mudança de numeração no letreiro.

Era o Terminal Pinheiros 209P, antiga linha 117Y. Perguntei pro cobrador o porquê da demora: “Muito trânsito senhor?”. “Não minha filha, é que essa linha mudou né, por enquanto tá meio confuso”.

É verdade, pensei comigo mesma, lembrando que a mudança faz parte da reestruturação nas linhas que procuram, até onde entendi, otimizar as viagens de ônibus, tornando-as menores e mais rápidas. “Entendi. Mas por que que trocaram por esse ônibus enorme?”, perguntei. “Pra levar mais gente né”, respondeu. “Uhm!” murmurei, um pouco envergonhada com minha própria ingenuidade.

Mas isso não pareceu incomodar o cobrador, o Sergio, que percebeu que eu sou dessas que puxa papo no busão. Sem mais delongas, ele começou a me mostrar todas as vantagens desse novo ônibus, que tinha duas câmeras (uma em cada saída) pra auxiliar o motorista, um painel eletrônico, luzes mais modernas e o melhor de tudo: era bem mais gostoso de dirigir. “Afinal, eu sou motorista também, sabe, tô de cobrador só por hoje”, avisou. E prosseguiu: “Adivinha quanto custa esse ônibus?”.

“Não tenho ideia!”. Já havia cometido uma ingênua gafe e fiquei tímida de lançar outra. “1 milhão e 200. E sabe quem paga? O BNDES”.

Fiz aquela cara de nossa, não sabia! Acho que o Sergio pressupôs o que eu estava pensando e continuou: “Pois é minha filha, os empresários não tiram R$ 1 do bolso, o preço da passagem é que vai pagar tudo!”.

O preço da passagem é que vai pagar tudo. E mais um pouco, concluí, mas quando fui responder já tinha chegado no meu ponto e me limitei a desejar apenas uma boa noite pro Sergio, que ia continuar a viagem naquele novo Terminal Pinheiros 209P, antigo 117Y.

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Maria Shirts, internacionalista e pedestrianista, mantém a coluna Transeunte Urbana. Ilustração de Camila Rocun, graduanda em Design Digital, ilustradora e apaixonada por cinema, divide seu tempo entre fazer arte pelo Portal R7 e ser mãe do Léo.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Hora do almoço

por Thiago Domenici*

Não teve dúvidas. Apontou o dedo na cara do sujeito e gritou:

– Você roubou! Devolve!

O centro apinhado de gente e o calor dava àquela cena um ar cinematográfico. Ao meio-dia a rua 7 de abril é um corredor congestionado. Não se pode vacilar. É São Paulo, centrão, no universo chamado Praça da República.

– Devolve agora.

– Não peguei nada, não, dona!

A amiga agitada olhava no entorno a procura de alguma ajuda. A roda viva de curiosos se formou em segundos.

– Devolve essa porra logo seu filho da puta! – acusou um desconhecido.

O circo estava armado. Um senhor de cabelos brancos falou com o suspeito algo incompreensível. Ele concordou com a cabeça nervosamente. Estava rodeado. Se tentasse correr, toparia com um muro de gente. A situação não era confortável.

– Você já ligou para você mesma? – gritou um sujeito risonho.

A mulher pronunciou impropérios. A amiga – que desistira da polícia – sacou o telefone do bolso.  “Será?", pensei comigo. A acusadora revirou a bolsa.

– Não foge, não! – gritou a plenos pulmões para o suspeito imóvel.

O sujeito não iria fugir. Ele deu de ombros e esperou. Um telefone tocou longe. Claramente é música sertaneja. O celular era de capa rosa com penduricalhos de bichinhos. E estava no bolso interno do casaco.

Na mesma hora a turma entoou uma vaia avassaladora e a mulher, sem chão, sem desculpas, mas com o celular, saiu apressada com a amiga em direção ao metrô.

– Vai à merda sua vaca maluca – disse o suspeito indignado que ficou a berrar que deveria processá-la.

Testemunhas não iriam faltar. Meia dúzia a toa ria da bizarra situação. A confusão deve ter animado os papos na hora do almoço. Em segundos tudo voltou ao normal.

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Thiago Domenici, jornalista, editor e coordenador do NR
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