foto de Nayanna Marques |
entrevista por Ana Mendes*
NR – O que te motivou a fazer este trabalho?
Eu me motivei a pensar sobre o clima aqui na região porque hoje em dia os paradigmas sobre esse assunto estão completamente mudados. E eu queria entender até que ponto os indígenas tem conhecimento disso e o que eles tem a acrescentar nessa temática. A verdade é que as Ciências Sociais não está trabalhando as questão das mudanças climáticas. E ela tem que se voltar pra isso, principalmente a antropologia. Os geógrafos e os engenheiros ambientais falam muito sobre o clima. Mas nós, antropólogos, sabemos que nessas análises falta o olhar do cotidiano. Daí a ideia de trabalhar essa produção de conhecimento com os indígenas e com as populações tradicionais. Onde eu trabalhei a maioria das pessoas não tem acesso a informação da mídia. Então eu pude compartilhar como eles enxergam isso realmente.
NR – O que é antropologia do clima?
A antropologia do clima está nascendo agora. Ela é um olhar dentro da antropologia que está buscando analisar as mudanças climáticas. Existem poucas pessoas trabalhando com isso, uma delas é uma colega do México, Esther Katz, que pesquisa populações originárias lá, e eu, aqui. O meu desejo é que muito mais gente faça isso, pra que possamos montar um mapa dos conhecimentos tradicionais indígenas em todo o Brasil. Mas, claro, há que se tomar muito cuidado porque trata-se de uma etnografia somada a uma nova forma de olhar que a antropologia está pegando emprestado das ciências naturais, da geografia física. Em resumo, estamos buscando saber como isso [mudanças climáticas] está sendo sentido no dia-dia, não só nas situações de catástrofe, mas no cotidiano.
NR – Li no teu trabalho que os índios Ashaninka precisam fazer o reflorestamento de certas espécies que antes era feito naturalmente, quando a época dos ventos coincidia a floração. Há outras iniciativas nesse sentido?
Justamente, eles já fazem estas coisas a sua maneira. Há também a agrofloresta que os índios já praticam, mas isto não é fomentado por nenhuma política. Então, a questão é mostrar pro poder público que se pode fazer mais. O conhecimento que eles produzem pode gerar políticas públicas. Não basta só olharem o painel do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas]. E eu não estou criticando, mas estes dados devem ser somado à outros olhares. Os governos tem que saber que essas populações podem contribuir, contribuir na prática. Lá nas Filipinas, perto de onde aconteceu essa grande catástrofe recentemente, um xamã percebeu que vinha o tsunami. Aquele último, de 2004. Ele avisou pra todos da aldeia. E as pessoas foram se refugiar nas montanhas mais altas. Mas na cidade, o poder local não acreditou nele quando tentou alertá-los sobre a onda gigante. É justamente pra fazer com que esse tipo de coisa não passe batido que deve-se trazer à tona o conhecimento tradicional. Os poderes locais e globais tem que acreditar que este conhecimento não é mito. São uma categoria que tem prática sim. Ainda há um precipício entre o conhecimento tradicional e o conhecimento institucionalizado. E essa história está aos poucos sendo fecundada. Porque em relação às políticas públicas para povos indígenas o tratamento ainda é de cima pra baixo, infelizmente. Este ano a UNESCO vai lançar um coletânea de artigos sobre o viés das Ciências Sociais a respeito das mudanças climáticas, incluindo o meu trabalho.
Indios Katukina, proxima etnia a ser pesquisada [Foto Ana Mendes] |
Nos grandes polos de conhecimento do Brasil sim. Ainda não atingiu a grande mídia, mas a gente já vê que o movimento é pra que isso aconteça. Muitos antropólogos brasileiros estão trabalhando nessa mesma linha. Eu bebi muito nessas fontes: Manuela Carneiro da Cunha, Gilles Deleuze, Marcel Mauss, Eduardo Viveiros de Castro. A começar por Marcel Mauss, que na década de vinte fez uma classificação do pensamento nativo. Ele foi visto como um grande etnógrafo, mas nunca foi colocado em prática. Então, muita coisa escrita por grandes antropólogos estavam engavetadas e parece que agora está vindo à tona. Hoje em dia vivemos um novo paradigma da ciência tradicional. Muitos cientistas estão com os olhos mais abertos para a ciência nativa. Já temos graduações indígenas, médicos indígenas e daqui a pouco os primeiros doutores indígenas.
NR – Me fala um pouco sobre as tabelas que tu elaborou com os tipos de chuva, de sol e de lua. Porque tu sentiu a necessidade de fazer essa organização?
É inacreditável pensar que as populações tradicionais enxergam seis tipos de sóis. Vou te dar um exemplo prático, quando fui morar em uma aldeia na cidade de Marechal Taumaturgo, achava que qualquer água que caia do céu era chuva. Mas tem chuva feminina, masculina tem chuva que é 'feita acontecer'. Os Ashanika mascam batata e sopram, aí a chuva vem. Foi surpreendente quando eu comecei a perceber que essa noção pra eles não é tão genérica como pra nós. Quando eu falei 'tá chovendo' a primeira vez me corrigiram 'Isso não é chuva, é puagem. Chuva é quando molha a terra.' Quem não vive na floresta tem um olhar mecânico, os índios são cheio de pormenores. Eles tem um conhecimento muito grande que até então, há mais ou menos cinco anos não era valorizado, mas agora a coisa tá mudando. Como dizem nas manifestações, Brasil a fora, 'o gigante acordou!' e acordou pra muita coisa mesmo. Não só tardiamente em manifestações, mas também na ciência com relação ao conhecimento indígena. Só tá faltando virar política pública.
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Ana Mendes, gaúcha de nascimento, é fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Mantém a coluna mensal Faço Foto.
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