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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 31 de março de 2014

50 anos do golpe


Hoje faz 50 anos do golpe militar que depôs o presidente João Goulart. E a partir da semana que vem, nossa colunista Fernanda Pompeu, com ilustrações de Fernando Carvall, vai inaugurar uma série especial "1964 + 50". Como ela mesmo diz:  para "descomemorar" o golpe que mudou o País.

Abaixo, uma pequena seleção de matérias/especiais que garimpamos na rede sobre o período. Trabalhos nos veículos de imprensa nacionais. Pelo direito à memória e à verdade. É preciso conhecer para não se repetir.

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Especial EBC - Um golpe na democracia (acesse)
Um trabalho jornalístico e multimídia belíssimo, que traz uma cronologia dos acontecimentos, com depoimentos e fatos históricos em áudio, vídeo e texto. A cronologia se inicia em 1961 e vai até 1964.

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Folha de S. Paulo - Em quadrinhos (acesse)
A folhinha, suplemento do jornal Folha de S. Paulo, contou o período em formato de quadrinhos com desenhos de Caco Galhardo.

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Especial Estadão - 1964 (acesse)
O jornal também traz uma série de matérias e depoimentos, numa página especial no seu site.

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Rádio Brasil Atual - (acesse)
Uma série de entrevistas do jornalista Oswaldo Colibri Vitta com Camilo Tavares, autor do documentário O dia que durou 21 anos; Aldo Fornazieri da Escola de Sociologia e Política de São Pauo, entre outros personagens.

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Folha de S. Paulo - 50 anos do golpe de 1964 (acesse) / Tudo sobre a ditadura militar (acesse)
Outro trabalho jornalístico multimídia de muita qualidade. Com animações, áudio, vídeo e textos, produzido pela 56 turma de traines do jornal. O segundo trabalho multimídia traz os depoimentos de personagens do período, cronologia, animações etc.

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Instituto Moreira Salles - arte e cultura no ano do golpe. (acesse)

Será a volta do monstro?

por Cidinha da Silva*

Parece que o vento virou, à direita, e os de sempre têm o leme nas mãos.

Mãos sujas de sangue por tantos séculos, tantas gerações.

Gerações de sesmeiros, exploradores de minas e escravizadores de gente, cafeicultores, usineiros, donos do cartel do transporte público.

Transporte público que foi e é luta de vanguarda, pelo direito a viver na cidade, a desfrutar da cidade.

Cidade que nos expulsa, que não nos cabe, não nos dá amor.

Amor que se vê na Brasilândia, no Campo Limpo, no Morro do Alemão que desce para o asfalto e exige o fim do extermínio da juventude negra, favelada, periférica. Amor que se respira na Revolta dos Turbantes.

Turbantes que protegem e molduram cabeças e cabeleiras de potentes mulheres negras.

Negras mulheres que mais uma vez tingem as ruas e a noite com cores de alegria e força da transformação, com espadas banhadas em mel.

Mel que nos dá Oxum com chá de canela bem quente para que, despertas, acompanhemos o desenrolar dos fatos novos para alguns, tão velhos e conhecidos para nós.

Conhecidos como o são todos os expedientes da direita que não podem nos surpreender, tampouco nos apequenar.

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Redemoinho


por Junia Púglia    ilustração Fernando Vianna*

No final dos anos setenta, morei uns tempos no Rio, trabalhando no apoio à produção de um programa de TV evangélico. Sair de casa e encarar a vida adulta, um sonho acalentado fazia tempo, foi a confirmação do meu pendor por desafiar o previamente definido e as expectativas sobre mim. Ao desembarcar no Rio, eu era uma pirralha de vinte anos metida a gente grande, que tomava e executava decisões radicais.

Tempos complicados aqueles, com coisas demais pra aprender, absorver e rearrumar. O redemoinho interno girava, parava alguns segundos, girava mais, desorganizava mais, girava mais um tanto, invertia o sentido e me apertava. Foram muitas horas sentada num banco de frente para o mar em Ipanema, nas tardes de sábado, vestida da cabeça aos pés, olhando o movimento das ondas e tentando dar nome ao que sentia. Eu não era, aliás, não sou, dada a rompantes emotivos. Sou das que viajam doze horas de carro, com muito gosto, mas não encaram vinte minutos numa montanha russa, nem mesmo ao lado do George Clooney.

Passados alguns meses, comecei a participar de um grupo de conversação em inglês, uma vez por semana, no horário do almoço. De maneira simples e eficaz, um artigo de revista lido em voz alta dava o mote para a conversa, facilitada por uma norte-americana. Foram poucas reuniões, porém, apesar de breve, aquela foi para mim uma experiência singular.

Na primeira vez que, motivada pela conversa, comentei referências e fatos da minha vida, ainda que de maneira superficial, tive a nítida sensação de estar falando de outra pessoa. Como se ao mudar o idioma eu tomasse distância de mim e assim pudesse me ver de forma mais objetiva e generosa, daquele jeito que nos veem as pessoas a quem damos acesso ao nosso lado de dentro. Como se, em pleno giro, se abrisse uma fresta no redemoinho e eu pudesse vislumbrar o que estava lá bem no centro dele, mas que só se revelou claramente muito depois.

Sem saber, sem nem desconfiar, eu embarcava no trem do autoconhecimento e iniciava uma viagem só de ida, às vezes trágica, às vezes cômica, sempre intensa, inescapável, que transforma tudo, inclusive os redemoinhos e as lembranças.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Onde foi que erramos?

por Celso Vicenzi*

O filme “Meia-Noite em Paris”, de Woody Allen, de maneira muito original questiona: existe época melhor para se viver? Muitos de nós gostariam não só de ter uma vida diferente como de ter vivido em outra época. Difícil dizer se o passado já foi melhor ou se o futuro promete dias mais felizes.

Mas, na música brasileira, arrisco dizer que já vivemos dias – e noites – melhores. Onde foram parar versos imortais como os de Carinhoso, de Pixinguinha (“meu coração, não sei por quê / bate feliz quando te vê / e os meus olhos ficam sorrindo / e pelas ruas vão te seguindo / mas mesmo assim, foges de mim”)? Ou de As rosas não falam, de Cartola (“queixo-me às rosas / mas que bobagem / as rosas não falam / simplesmente as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai”)? E o que dizer de Construção (Chico Buarque), Travessia (Milton Nascimento e Fernando Brant), Tropicália (Caetano Veloso), Eu sei que vou te amar (Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes)?

Nossa música caipira, antes de entrar para a escola do show business e se graduar em sertaneja universitária, também produziu versos antológicos, como No rancho fundo, de Ary Barroso e Lamartine Babo (“No rancho fundo / bem pra lá do fim do mundo / onde a dor e a saudade /contam coisas da cidade...”) ou Romaria, de Renato Teixeira (“O meu pai foi peão /minha mãe solidão / meus irmãos perderam-se na vida / à custa de aventuras / Descasei, joguei /investi, desisti / se há sorte / eu não sei, nunca vi”). Isso para não falar de Asa Branca, Luar do Sertão, Menino da Porteira, Tristeza do Jeca e tantas outras.

Não é por nada, não, mas comparem com Lepo Lepo, de Márcio Victor: “Eu não tenho carro / não tenho teto / e se ficar comigo é porque gosta /do meu / rá rá rá rá rá rá rá /Lepo Lepo / é tão gostoso quanto eu / rá rá rá rá rá rá rá / Lepo Lepo”. Veio para substituir outra que não parava de tocar: Ai se eu te pego, de Sharon Acioly e Antônio Digs (“Nossa, nossa / assim você me mata / ai se eu te pego, ai, ai, se eu te pego”). Quase todas apelam para uma sexualidade fast food, com letras medíocres. Se você ainda não se convenceu da distância poética que separa os exemplos citados, concluo com a primorosa letra de Eu quero tchu, eu quero tcha, de Shylton Fernandes: “Eu quero tchu, eu quero tcha / eu quero tchu tcha tcha tchu tchu tcha / Tchu tcha tcha tchu tchu tcha”. E tem ainda o “vai rolar bundalelê”, “rala o tchan”, “faz uó”, “melô do pirulito”, grosserias para todos os gostos (duvidosos).

Pensando bem, não seria má ideia poder escolher a melhor época para se viver.

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Celso Vicenzi, jornalista,. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres. Esse texto foi publicado originalmente no Correio Lageano.

quarta-feira, 26 de março de 2014

É o que se pode chamar de "experimento homofóbico"

Assistir a esse vídeo é uma experiência das mais interessantes. De um lado, quinze homofóbicos assumidos. De outro, quinze homossexuais. Os encontros são reservados. A intenção em cena: um simples abraço. E, vejam vocês, a dificuldade em se conseguir o mais básico de uma troca humana.

O "experimento" é do canal The Gay Women Channel no YouTube. Selecione a legenda em Português para assistir.


terça-feira, 25 de março de 2014

Da vida só me tiram morto


por Fernanda Pompeu*

A frase do título é do Millôr Fernandes (1923-2012), mestre saudoso para seus leitores, eu incluidíssima. O que aprecio na prosa de Millôr é a leveza com que ele escrevia sobre qualquer assunto, mesmo acerca da assombrosa morte. Imprimir leveza num texto é trabalho de fortes. Assim definiu outro leve, também morto em 2012, o caneta de ouro Ivan Lessa: "A gente trabalha com a enxada dura da língua."

Para chegar no texto leve, coloquial, informal, sem terno e gravata, sem salto alto e espartilho, temos - além de usar a enxada - deletar da tela asperezas, rebarbas, calcificações. A leveza também exige um exercício contínuo de desaprendizagem. Desaprender a escrita burocrática, a escrita covarde, a escrita dos chatinhos e chatinhas. Leveza tem muito a ver com momento, fugacidade, passarinho. Em contrapartida, pouco ou nada a ver com certeza, posteridade, eternidade - essas três damas da ilusão mais profunda. Leveza, no texto e na vida, é a aceitação do transitório, do minúsculo, da poesia cotidiana.

Corações atentos percebem o conceito do instante poético, aquele que já nasce morrendo. Aquele que para ser experimentado e curtido exige que o observador se concentre totalmente. Só assim podemos ver poesia numa gota d´água, numa pedra solta, numa frase de rua ou numa lágrima viúva.

Quando eu e meus quatro irmãos éramos crianças, sempre ouvíamos da nossa mãe uma advertência com cara de lição. Ela dizia: "Aproveitem o momento, pois não existe a felicidade. Não existe o todo, apenas existem as partes." Eu não gostava de ouvir essas palavras, porque acreditava amarga a ideia de não existir a felicidade.

Até hoje não consigo afirmar se a felicidade existe como um todo. Tive e tenho momentos e fases felizes. Por exemplo, me sinto feliz quando ponho o ponto final em uma crônica. Ou ao saborear o primeiro café expresso do dia. Reparem, coisinhas pequenas. Quase feitas de nada.

Sinceramente ainda estou muito longe de alcançar a leveza dos mestres Millôr e Lessa. Mais longe ainda da sabedoria da minha mãe. Mas vou tentando com toda a coragem. Escrevo e verifico se a frase ficou dura. Se ficou, pego o buril da memória literária e retrabalho. Na vida, idem. Telefono para a leveza mesmo nos momentos e fases tristes.

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fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé. *Texto publicado originalmente no Mente Aberta - Yahoo. Imagem: Régine Ferrandis

segunda-feira, 24 de março de 2014

As duas vidas de um menino negro

por Cidinha da Silva*

A primeira vida é de um rapaz de família, trabalhador, pacato, cercado de amigos negros e brancos. Um homem jovem, para quem, ser negro, talvez vá pouco além da alegria e do orgulho de uma bela coroa Black Power.

A segunda vida é a do sujeito descrito, mas, tratado como um negro qualquer pela polícia. Toda singularidade se esvai como bolha de sabão colorida diante da perseguição dos estereótipos.

Por um lance simples de sorte e provável proteção espiritual, Vinícius Romão de Souza não foi abatido como Cláudia da Silva Ferreira. Em comum, a negritude de ambos, o pertencimento à mesma comunidade de destino.

O racismo é o que menos se evidencia nas histórias de Cláudia e Vinícius. A mulher trabalhadora, mãe zelosa de filhos e sobrinhos, sucumbe à condição de “a arrastada”. A mídia não se dá ao trabalho sequer, de dizer seu primeiro nome, Cláudia! De Vinícius exploram a juventude, os sonhos, a família forte que supera os sofrimentos das perdas precoces, a cabeleira Black Power, atributos que o individualizam, emprestam-lhe uma história particular que não é respeitada, por isso, ele é “o injustiçado”. Contudo, o que pegou mesmo, quer para a prisão de Vinícius, quer para o assassinato de Cláudia, foi o fato de serem negros desprotegidos, expostos à sanha racista e ao humor sórdido de policiais, que, para os que não querem entender, prendem e matam as pessoas negras a esmo, como insetos ou vermes.

Depois de sair da prisão, em busca de recuperar a primeira vida, Vinícius afirma que nunca fora vítima de racismo, sempre foi respeitado. Vítima, não. Isso é certo. Vinícius é alvo de uma sociedade que, estrategicamente, refuta a existência do racismo dirigido aos negros, para garantir os privilégios dos brancos; que enlouquece os que atestam sua virulência, pois querem provar a eles que o que julgam ser racismo é apenas a vida inexorável do negro (não por acaso conveniente para manter intactos os louros da branquitude).

Vinícius terá se sentido respeitado todas as vezes que levou baculejo da polícia? Ao voltar da universidade, do colégio, talvez até da escola primária com uniforme escolar. Porque é assim que homens e meninos negros são tratados! Ou não? Terá se sentido respeitado a cada vez que uma mulher protege a bolsa ao sentir sua aproximação? Ou nas inúmeras vezes em que foi ridicularizado por sua compleição física de descendente de africanos?

Para infelicidade dos negros, a história individual não tem evitado sua morte, seja física, seja simbólica. Mas, Vinícius, como a maioria dos seus, foi levado a dormir dentro dessa casca de ovo, até que a segunda vida a quebre e surja de dentro um cheiro insuportável de coisa podre que toma conta de todo o ambiente. Então, mesmo não havendo como fugir, disfarçar, negar o óbvio, a primeira vida será evocada outra vez, na ilusão de que possa proteger as pessoas- alvo da voracidade do racismo.

E a trilha viciosa se repetirá até que as duas vidas se encontrem e se fundam. Até que se compreenda que todas as vezes que um negro sofre discriminação porque é negro, trata-se de uma agressão coletiva. Desse modo, não existe um negro que nunca tenha sido discriminado.

A repetição ocorrerá até que se entenda a alteridade como direito que não exime a população negra do pertencimento à mesma comunidade de destino. Os “negros especiais” não existem, apenas negros que contaram com mais sorte ou acessos ao longo da vida. O povo negro será tratado como negro, descendente de escravizados as vezes sem conta em que o poder branco se sinta ameaçado. É a regra do jogo da opressão racial.

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 escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Bordado


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna

“O grande prazer do bordado é andá-lo sempre a fazer”, disse Maria Eduarda ao visitante que lhe elogiou a destreza, na série televisiva baseada no romance “Os Maias”, de Eça de Queiroz. Manusear interminavelmente as linhas e agulhas sobre intrincados desenhos em tecidos esticados por bastidores redondos era a principal ocupação das mulheres de sua classe, quando não estavam desmaiando de paixão pelos cantos. Como não tinham nada relevante a fazer, as mulheres e os homens da aristocracia passavam a vida gastando heranças e se desmilinguindo de amor. Este, pouco ou nada tinha a ver com o sacrossanto casamento. No quesito conjugal, todo mundo traía todo mundo, desde que mantidas as aparências e garantido o patrimônio da família.

No caso de Eduarda, a fortuna acumulada por seu avô, notório negreiro que enricara traficando escravos africanos para o Brasil, fora dilapidada por sua desmiolada mãe Maria Monforte, e ela agora dependia de que algum senhor ricaço lhe bancasse o ócio. Porque trabalhar mesmo, nem pensar, isso era coisa de negros e pobres. E a autonomia feminina não existia.

Um grande livro, situado na segunda metade do século 19. Desde então, as coisas mudaram muito, em especial para as mulheres.

Há poucos dias, Michelle Bachelet tomou posse como Presidente do Chile, pela segunda vez. A faixa presidencial foi-lhe entregue por Isabel Allende, presidente do Senado, filha de Salvador Allende. Entre os muitos chefes de estado que assistiram a cerimônia, Cristina Kirchner e Dilma Rousseff. Todas as quatro nascidas entre 1945 e 1953. Nada mau. Em cento e poucos anos, viver a bordar e suspirar deixou de ser o destino obrigatório das mulheres “bem nascidas”, em boa parte do mundo. Muitas, incluindo as pobres e as negras, que trabalham desde sempre, começaram a se desvencilhar do seu destino tácito por caminhos próprios e a se ver como indivíduos dotados de vontade e direitos. Nas décadas mais recentes, empreenderam uma ocupação territorial nunca vista antes: sacudiram a hegemonia masculina na vida pública e no poder. Estamos ainda muito longe de uma situação justa, mas já andamos um bom caminho.

Ver as três presidentas juntas – eu me recuso a discutir a flexão de gênero, considero-a uma licença poética –, e uma quarta mulher empossando Bachelet, foi de arrepiar. Sim, as quatro são brancas, sempre tiveram o suficiente para viver com dignidade, formaram-se em boas escolas, com acesso a informação, contatos e livros. Portanto, poderiam ter escolhido bordar e suspirar, em seus muitos sucedâneos mais modernos, como gastar seus dias malhando nas academias, torrando os cartões de crédito do marido da vez e postando inutilidades nas redes sociais. Preferiram o engajamento e a militância política, com tudo o que vem no pacote, para mal e para bem. Delas se poderá dizer tudo, menos que se esquivaram da tourada. Entre outras coisas, estão forjando o futuro de nossas meninas.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Quando a palavra seca

por Cidinha da Silva

Tudo perde o sentido quando uma mulher negra, moradora de favela, baleada no pescoço, pende de um porta-malas e tem o corpo arrastado pelas ruas do centro do Rio. Transeuntes e motoristas buzinam, gritam, acenam, se desesperam, choram, lamentam, porém, os policiais que dirigem o carro não ouvem, não vêem, não param. Não param. Não param.

As palavras humanidade, respeito, dignidade, cidadania, vida, direitos, sonhos, justiça, perdem o sentido. A gente perde as forças, a palavra, e míngua, como o texto seca diante de mais um caso de horror racista que não comoverá o mundo e ainda terá a dimensão racial esvaziada.

Perde-se o sono e não se sabe a fórmula do conforto para reencontrá-lo. Tudo perde o sentido. A vida perde a poesia. A condição humana é rebaixada a cada ação policial.

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 escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Férias à lá Chuck Norris


por Tomás Chiaverini     ilustração Ligia Morresi 

Os doze recém chegados estão exaustos, suados e famintos. Vieram de lugares tão diversos como Nova Iorque, São Paulo e Berlin e enfrentaram uma estafante jornada Comandos em Ação por terra, céu e água para chegar àquela longínqua paragem amazônica. Passa um pouco das quatro da tarde e a sensação térmica se assemelha à de uma sauna a vapor. Ainda assim eles juntam forças e ensaiam sorrisos de simpatia enquanto o rapaz de bermuda cáqui e camiseta verde se utiliza de um inglês tropical para apresentar as espartanas regras do estabelecimento.

O desjejum é às seis da manhã, o almoço ao meio dia e o jantar às sete da noite. Sorrisos persistem. O rapaz explica que, apesar de a pousada ser flutuante, não é possível deixar a área dos bangalôs a não ser de barco, e sempre com o pessoal local. E que, a despeito do calor, é expressamente proibido nadar no rio, infestado de jacarés e piranhas.

Nesse momento, um homenzarrão loiro, de pele muito branca, levanta a mão e, visivelmente decepcionado, pergunta se realmente aquela água toda ficará ali à disposição e ele não poderá sequer refrescar os pés. O rapaz de camiseta verde conta de uma funcionária que limpava peixes na varanda da cozinha, foi atacada por um jacaré e por pouco não perdeu a perna. Depois dá prosseguimento às instruções que, apesar do tom amável, não deixam de remeter ao discurso de um carcereiro recepcionando presidiários novatos.

A água do rio alimenta os chuveiros e as torneiras mas não é potável. Cada bangalô conta com o auxilio luxuoso de duas garrafas térmicas para matar a sede e escovar os dentes. A energia elétrica é solar e, apesar do calor apocalíptico, escassa. Há pequenos ventiladores elétricos ao lado das camas, mas eles só funcionam por três horas diárias. Nesse momento, os recém-chegados, que ainda não se conhecem entre si, trocam olhares de cumplicidade, desconfiando que aquilo pode ser um trote de boas vindas. Não é.

O rapaz de camiseta verde informa que haverá uma hora de descanso antes de saírem para a primeira trilha. Os sorrisos prosseguem mas agora, além da simpatia forçada, denotam um discreto desespero. A maioria permanecerá ali por quatro noites. Alguns ficarão confinados por sete longos dias.

Sem mais a fazer, eles pingam de suor e arrastam malas e corpos cansados até seus bangalôs. São quartos amplos de madeira, cobertos por telhas cor de tijolo feitas de garrafas pet recicladas. A estrutura, interligada por passarelas de madeira, oscila de leve sob o peso dos hóspedes. Em cada cômodo há duas camas de viúva com cortinado, duas mesinhas pequenas e uma cadeira. As janelas são forradas por telas contra mosquitos. Ao lado da cama há dois ventiladores de Kombi cujo diâmetro não ultrapassa os ridículos vinte centímetros.

Há frestas consideráveis entre as tábuas do assoalho e é possível ver a água amarronzada do rio lá embaixo. Também é possível ouvir peixes pulando ou, no caso do pirarucu, subindo à superfície para respirar. Famílias de morcegos se mexem e guincham entre o forro e as telhas. De tempos em tempos um urro profundo e assustador vem lá de longe na floresta. Bandos de macacos guariba disputando território.

Os hóspedes largam as malas e se olham ampliando aquele sorriso de desespero, tentando não pensar que, pelos cerca de R$ 600 por dia para o casal, poderiam pagar um confortável e asséptico resort em Cancun ou um cruzeiro pelo nordeste com direito a show do Rei Roberto e sem limites para caipirinhas de frutas vermelhas. Acalma-se pensando que a Pousada Uacari fica dentro da reserva Mamirauá, e que o dinheiro arrecadado, em vez de engordar o caixa da CVC, será dividido entre os habitantes locais que gerenciam o lugar.

Na caminhada, o guia explica que aquele será o único dia em que o grupo sairá junto, porque na maioria das trilhas não são permitidas mais do que quatro pessoas. O ocaso urge e o passeio é rápido. Uma hora sob uma mata aberta, onde é possível ver a marca do rio no ano anterior, mais de cinco metros acima do chão. Na época da cheia, toda a região da reserva alaga, e os passeios são feitos apenas de barco.

Um pouco adiante o grupo avista um bando de macacos de cheiro e, ainda sem dimensionar o tamanho do problema, se depara com alguns exemplares da mais perversa criatura já saída das pranchetas do Criador: mosquitos. O guia, um caboclo baixinho que tem jeito de criança apesar do rosto enrugado, sorri enquanto o grupo se estapeia. O macaco de cheiro, explica, tem esse nome porque urina nas mãos e passa no pêlo pra espantar os mosquitos. Até o fim da estadia os doze integrantes do grupo, sem exceção, aventariam a hipótese de fazer o mesmo.

Na manhã seguinte, após o café, dividem-se em atividades diversas que basicamente se resumem em ver a floresta, com devoção especial a seus habitantes. Aranhas, besouros, escorpiões, grilos, peixes, répteis, preguiças e os reis do pedaço: nossos coleguinhas primatas. Macacos prego, macacos de cheiro e, claro, o Uacari branco de cara vermelha que só existe ali e que motivou a criação da reserva. Em passeios à pé, de barco a motor ou em canoinhas a remo, vêm bando de biguás decolando do meio do rio para pousar numa árvore ao pôr-do-sol. Vêm araras, tucanos, ciganas e falcões.

Depois da segunda ou terceira noite estão razoavelmente acostumados ao enxame de mosquitos que, qual a oitava praga do Egito, torna o ar denso e agressivo. Eles picam sem dó, por cima das roupas encharcadas de repelentes, mas, a essa altura todos já sabem, por experiência própria, que não se pode morrer devido a picadas de pernilongos (os guias garantem que a região é livre de Malária). Também já sabem que os morcegos, que voam à centenas, como se estivessem no quintal de Bruce Wayne, não apenas são inofensivos como alimentam-se de mosquitos.

Misteriosamente passam a ver algo de bucólico nos enormes jacarés boiando diante da sacada dos quartos, com aquela calma de rocha pré-histórica, e sabem que aquele silvo fantasmagórico que sobe pelo assoalho nas madrugadas nada mais é do que um suspiro dos companheiros répteis. O calor continua, mas já é algo natural, e os ventiladorezinhos de Kombi se constituem num artigo de raro luxo e deleite.

No último dia, visitam o lago Mamirauá, num passeio catártico que reúne todos os animais acrescidos da presença mítica dos botos cor de rosa, que corcoveiam na água de um lado para o outro, exibidos feito atletas de nado sincronizado. Voltam para a pousada já à noite, vendo as estrelas refletidas na água escura do rio.

Quando colocam as malas no barco no dia seguinte estão queimados de sol, cobertos de picadas, arranhados de espinhos e ligeiramente mais magros devido às caminhadas diárias e à dieta minimalista de arroz, feijão e peixe. Um hóspede sueco leva o troféu de um dedo enfaixado, depois de ser abocanhado por uma piranha durante uma pescaria. O paulista alto e branco ainda considera a hipótese de dar uma nadada com os jacarés, mas se contém. Nenhum deles trocaria a experiência por uma temporada em Cancun ou por um cruzeiro com o Rei Roberto.

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Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha. Ilustração de Ligia Morresi, especial para o texto

segunda-feira, 17 de março de 2014

Era do rádio particular

por Cidinha da Silva

Minha era do rádio durou da infância aos primeiros anos da juventude, já em São Paulo. Em Belo Horizonte duas estações me formaram, Inconfidência FM, a Brasileiríssima, e Alvorada FM. Ali apurei o ouvido e o gosto musical. Ali conheci samba de primeira linha, Jazz, música erudita e chorinho, a música dos deuses.

Nas estações de rádio AM, preferidas de minha mãe, também ouvia música boa: Clara Nunes, Elizeth, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Angela Maria, Jamelão, Agepê, Martinho da Vila, Beth Carvalho, a queridíssima Alcione, Roberto Ribeiro e um pouquinho ainda do Trio Esperança e do Trio Mocotó. Ouvia muita valsa e bolero. E minha mãe cantava tudo o que a encantava, com voz bonita e afinada.

Tinha também os impagáveis programas policiais da Glória Lopes, que iam dos tenebrosos crimes do esquadrão da morte, atuante nas periferias da cidade, aos casos hilários dos bêbados e maridos infiéis perseguidos pela Loira do Bonfim, fantasma residente no Cemitério da Saudade.

Belo Horizonte, Velhorizonte, Belzebuzonte! Horizonte para todo gosto. Cidade pródiga em conservar o velho e fossilizar o novo. Ainda hoje, quando ligo o rádio nos dezembros chuvosos que passo por lá, sintonizo as estações do passado e encontro os mesmos programas e os mesmos radialistas de 30 anos. Só mudam quando morrem e não duvidarei do dia em que fizerem programas psicofônicos.

A crônica esportiva é uma fábula. Não pensem, vocês do Rio e de São Paulo, que Alexandre Kallil, presidente do Atlético Mineiro, campeão das Américas, seja peça rara. Não é não! Aquele bairrismo arraigado e atroz, o fanatismo, tudo isso está presente no rádio mineiro, como de resto, na cidade.

Contam que nos anos 50 ou 60 havia um juiz de futebol, torcedor doente do Galo, que quando a bola saía de campo, chutada por um adversário do Atlético, ele apitava, virava-se para o jogador alvinegro mais próximo e ordenava: “Vamo, meu filho, vamo! Bola nossa, bola nossa, bate logo o lateral”. Frase célebre de um cronista de Belo Horizonte diz que atleticano torce até contra o vento, se a camisa do Galo estiver secando no varal.

O comentarista esportivo moderno, isento, constitui figura novíssima e escassa no rádio mineiro. O que predomina são os comentaristas apaixonados, que mal disfarçam a predileção por um time e, declaradamente, descaradamente, torcem por Minas, enaltecem Minas no cenário nacional.

O rádio é uma recordação muito boa e feliz. E agora, graças ao programa “À beira da palavra”, inscrevi meu nome na história das rádios educativas de São Paulo e do Brasil. Não lembro exatamente o que falei, penso que a concentração exigida pelo veículo e por meus ágeis entrevistadores embotou minha memória. A única lembrança nítida foi a resposta à pergunta sobre futebol / literatura.

Na literatura, em que posição jogo? No ataque ou na defesa? Em nenhuma das duas, respondi. Eu gosto do meio, gosto de armar o jogo. Não adianta ser Romário ou Reinaldo, se não houver Sócrates, Cerezo, Falcão, Zidane, Didi, Júnior que era lateral, mas dava tratos à bola como meio-campista genuíno e passava-a redonda aos atacantes.

E como literatura é um jogo jogado junto, meu barato é armar, pôr a bola para rolar e deixar meus leitores e leitoras na cara do gol.

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 escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Banzo


por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

Chegamos ao bairro quando eu tinha dez anos. Do lado esquerdo da casa onde viveríamos os sete anos seguintes, havia um terreno baldio, o campinho oficial das peladas dos meninos da rua. Só deles, pois meninas brincavam de bola com as mãos, jamais com os pés. Eles pareciam um bando de gafanhotos, e recebiam um reforço especial quando meu pai cismava de entrar no jogo, descalço e com o short escorregando pança abaixo, feliz da vida. A bola suja de terra teimava em vazar para o nosso quintal e carimbar as roupas postas para quarar ou secar. Era recebida com impropérios variados e devolvida ao cabo de muita negociação.

À direita, uma família japonesa, isto sim uma grande novidade. Três gerações na mesma casa, incluindo uma trinca de crianças de idades próximas às nossas. Àquela altura, já havia uma grande comunidade nipônica no interior de São Paulo, mas nunca havíamos convivido tão de perto.

A integração da galera miúda foi imediata. Para nós, havia pouca diferença entre as casas e a rua, pois as crianças transitavam livremente. Quando não estávamos na escola, nos juntávamos na rua para a amarelinha e o campeonato de pião, ou entrávamos em alguma casa para filar bolo com groselha e nos abrigar do sol a pino. Os adultos não se enturmavam muito, interagiam apenas em função da criançada circulante.

A casa do Seu Zé e da Dona Elisa era muito diferente. Logo na chegada, estranhamos os canteiros de agrião na frente da casa, onde normalmente se plantavam jardins. Em sua primeira visita à nossa nova casa, meus avós ficaram muito impressionados com o tamanho e o viço dos agriões, cultivados na terra e não na água, coisa desconhecida para eles, grandes apreciadores de hortaliças. Ficaram ainda mais maravilhados quando descobriram a enorme horta que a Dona Elisa e os sogros cultivavam no terreno dos fundos, enquanto o Seu Zé dava duro em sua oficina mecânica. A horta era mesmo uma beleza, mas eu estava muito mais interessada nos estranhos cheiros daquela casa e nos sorridentes velhinhos japoneses, capazes de dizer umas dez palavras em brasileiro, se tanto.

Pendurado na parede da sala, um retrato dos velhos quando jovem casal se aventurando do outro lado do mundo e o indefectível calendário com a foto do monte Fuji, distribuído pelos comerciantes, que adornava todas as casas, japonesas ou não. Nas datas festivas nipônicas, a Dona Elisa mandava um dos meninos entregar lá em casa um prato de deliciosos bolinhos doces à base de feijão ou uma goma colorida que, se bem me lembro, era feita com amido de arroz. Uma forma de demonstrar seu contido apreço por aqueles vizinhos pra lá de animados.

Em certas noites quentes do nosso mundo, o velhinho se sentava na cama, com a janela aberta para a rua, e tocava o que nos parecia um banjo de três cordas, cantando a mesma melodia, imóvel, horas a fio. Desde a primeira vez que ouvi, me impressionou aquele canto triste, com ondulações na voz que pareciam acompanhar o som do instrumento. As não mais que três ou quatro notas daquela melodia estão aqui, intactas na minha memória, tanto na batida das cordas quanto na voz do Seu Tsuha. Ele provavelmente desconhecia a palavra “banzo”, que acho até que existe em japonês – a palavra, com outro sentido – mas era este o sentimento, então indefinível, que me tomava quando, encolhida nos panos da minha cama, dormia ouvindo aquele som pungente.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Ferréz: "o meu olhar é de guerra"

UMA CONVERSA SEM FRESCURA E EXPLOSIVA! 



Pouco antes de o país explodir com as jornadas de junho do ano passado, o Nota de Rodapé, em parceria com a Bonita Produções, colocou em prática projeto concebido meses antes: um programa de entrevistas para a internet - e, quem sabe, para a televisão - no qual a ideia central é que não exista assunto proibido com o entrevistado.

Chamamos a empreitada de NR conversa. A ideia aqui é levantar temas de relevância nacional, tabus ou não, que contribuam para o debate social e político mais amplo, que fuja, eis o grande desafio, da mesmice dos programas do gênero que estão disponíveis ao público.

Caricatura de Carvall Estúdio Saci 
Para a primeira conversa, convidamos o romancista, cronista e contista Reginaldo Ferreira da Silva, conhecido pela alcunha de Ferréz. O autor de Capão Pecado, Manual Prático do Ódio e Deus foi Almoçar é também o criador da 1daSul, que, além de ser uma marca de roupas e acessórios criada para os moradores da periferia, promove eventos e ações culturais na região do Capão Redondo, bairro onde mora, com forte influência do movimento hip-hop.

Durante o NR conversa, no Bar Tubaína, em São Paulo, numa tarde fria e chuvosa, Ferréz opinou com propriedade sobre temas como a polícia militar, aborto, maconha, maioridade penal, literatura, partidos políticos, corrupção e educação, sempre com a verve contundente de quem respira o dia a dia da periferia paulistana. Logo de início, ele provoca: “Costumo dizer que o meu olhar é de guerra. Hoje em dia, nos vivemos numa sociedade que ninguém quer se apegar a nada”. “Quem tem ponto de vista machuca, quem não tem, não causa nada. Tem coisas que você têm que tocar mesmo no assunto, porque o país virou um groselha, mano”. Uma entrevista sem frescura e explosiva. Esperamos que você goste e compartilhe. Mais do que isso: que sirva de reflexão. Aproveite!

Os jornalistas entrevistadores do programa são: Thiago Domenici, coordenador e editor do Nota de Rodapé, também da revista Retrato do Brasil; Moriti Neto, colaborador do NR e um dos editores da Rede Brasil Atual, e Marina Amaral, sócia-diretora da Pública, a primeira agência de jornalismo investigativo do país.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Tristes táxis


por Carlos Conte*

Na segunda-feira pós-carnaval (10/03), li com alegria um post no facebook do meu amigo Mariano Mattos (o folião dos foliões!), do bloco Viemos do Egito. Ele compartilhou um link do jornal O Globo – nada mais nada menos que coluna assinada por Caetano Veloso dizendo que brincar carnaval na Cinelândia no meio do bloco Viemos do Egito o fez relembrar toda a história recente do carnaval brasileiro e dos blocos de rua de Salvador de sua juventude. Ao som de “O canto da cidade”, na voz de Daniela Mercury, Caetano festeja sorridente “a volta às ruas da juventude carioca”. (Se quiser ler a coluna na íntegra, acesse).

Nesse mesmo post, comentando suas vivências carnavalescas, meu amigo Mariano recorda a experiência tipicamente “momística” de tentar tomar um táxi fantasiado durante o carnaval. (Detalhe: “momesco” ou “momístico”, esta última mais interessante, por fundir as palavras Momo + místico, são expressões usadas fartamente pelos integrantes dos novíssimos blocos de rua paulistanos. Então viva a “Momocracia”!).

Pois é, Mariano, os táxis não param mesmo. Senti isso na pele na madrugada da segunda-feira, depois de brincar carnaval no bloco Bastardo, em Pinheiros (na imagem acima). Minha fantasia esse dia estava “bem de boa”, como se diz. Nada de vestido, saia, sutiã, sunga, colares. Penso o que teria acontecido com o folião que foi fantasiado de Borat na praia... Já viram esse filme? Imagine um sujeito alto, bigodão preto, trajando um maiô verde mínimo, com um tremendo fio dental... A melhor fantasia. A mais ousada. Geralmente as melhores fantasias são as mais ousadas. Mas com certeza teria muitas dificuldades de entrar num táxi.

Não era o meu caso nessa madrugada de segunda. Estava com uma fantasia relativamente discreta. Saí de romano. Mais especificamente de Carlos Magno Máximos III (o Neto), para divulgar o nosso nascente bloco Quem Tem Boca Vaia Roma, que desfilou na segunda à tarde causando arrepios nas donas de casa da Vila Romana. Minha fantasia não era nada escandalosa: uma toga feita de trapo de lençol velho, uma espécie de saiote improvisado com o forro branco da minha cama, galhinhos atrás das orelhas imitando folhas de louro e, nos pés, sandálias de couro emprestadas do meu amigo Cabelo. E só. Vê se pode! Nenhum táxi parar por isso?

Que foi? Acharam a pouca roupa indecência, atentado ao pudor? O problema era o saiote? Ah, já sei: veadagem... É que os taxistas não conhecem as virtudes machas de um imperador romano, como Júlio César, ou um general como Pompeu, líder militar de inúmeras façanhas. Talvez se levassem isso em conta tivessem me deixado entrar. Tudo bem que o Nero fosse cheio das extravagâncias (com suas festas eróticas repletas de convivas nus), mas aos olhos dos machões de hoje em dia seria considerado, por seus feitos militares, um cara de respeito, sujeito de fibra, destemido, cabra homem.

Será que os taxistas estavam com medo? Talvez eu fosse mesmo uma ameaça. Eu e minhas virtudes belicosas de um guerreiro do exército mais entusiasmado e dedicado que existe, embora deliberadamente pouco disciplinado – que é o nosso exército de carnaval. Como diz a canção: “nas trincheiras da alegria / o que explodia / era o amor”. Sim, estava em missão de paz. E, se não podia me considerar derrotado, pelo cansaço, pela cerveja, pela folia, era certo que estava ansioso para chegar ao QG o quanto antes para me recuperar da batalha. Mas quem disse que os taxistas estavam a fim de ajudar este pobre soldado do carnaval?

Passavam, gesticulando as mais diversas coisas, e não paravam. Alguns nem gesticulavam. Nem olhavam. Simplesmente passavam, o carro fazendo aquele típico barulho de borracha alisando o asfalto, o som da rejeição. O gesto que mais se repetiu, entre dezenas de motoristas nos seus carros pálidos, foi o do indicador em riste apontando ora para a esquerda, ora para a direita, querendo que eu acreditasse que ele estava indo atender a um chamado em outro lugar. Pensa que engana quem? Todos os carros vazios. Almas vazias. Teve motorista com a cara de pau de fazer o típico gesto de abrir e fechar a mão com os dedos voltados para cima, polegar encontrando-se com os demais, sinalizando que o carro estava cheio, sendo que a luz estava acesa e o táxi, nitidamente, vazio. Deprimente.

Ora, para um guerreiro romano, natural da Vila Romana, que precisava urgentemente descansar para estar disposto na última batalha, terça-feira, não me sobrou alternativa senão apertar o fecho das sandálias, levantar a cabeça, e seguir adiante, travando disputa com as ladeiras de Pinheiros e Lapa. Não desviei um único olhar. Enfrentei. Há uma tarefa (pensei): desentranhar o espírito carnavalesco dessa gente. Agora era verdadeira batalha. Velhinhos saindo pra comprar pão. Senhoras levando o cachorrinho pra passear. Mamães e papais tomando média na padoca com o pequeno. Zeladores de prédio fumando o cigarro na calçada. Cabeça erguida. Como se o carnaval fosse a regra. Deixando que os primeiros raios de sol refletissem no meu corpo dourado de purpurina. E cochicharam. E me ignoraram. Mas será que aquela ali sentiu tesão? E aquele senhor, me olhando de lado, será que se lembrou de seus tempos passados, não menos dourados? Quase escapou um “Viva a Momocracia!”, mas ele não ia me entender. “Viva o carnaval!”, cumprimentei-o. E ele me respondeu um “Viva!” que me deixou feliz.

De novo, o facebook. Me desculpem. É que ando digerindo este último carnaval através dos infindáveis murais. Postei em tom de lamento, na quarta-feira de cinzas, que chegou a hora, infelizmente, de tirar a purpurina do corpo. E como é difícil! Em todos os sentidos. Mas fico com o que a Evelyn, uma amiga, me respondeu: “Deixa a purpurina!”.

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Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Foto: Facebook do Bloco Bastardo.

Sabichões

por Fernanda Pompeu*

Na casa da internet circulam São Google, Mister Yahoo, Wikipédias ao lado de aplicativos que brotam como capins eletrônicos. Sem esquecer as redes sociais que congregam amigos, conhecidos, amigos de amigos, conhecidos de conhecidos. Todos tendo como matéria-prima informações e contrainformações, veiculadas por palavras e imagens.

Hoje, a gente não fala mais em mundo real e mundo digital. Eles se fundiram, configurando o nosso mundo. Da revolução internet, surgiram estonteantes novidades. Dentre elas, a profusão de especialistas e comentaristas. Todos têm, ao menos, uma opinião. Não importa o tema. Como um São Jorge de lança em punho atacamos o dragão dissonante, dissidente.

Ou, ao contrário, como Pietàs emocionadas acolhemos nossa turma, nossos pares, os que pensam parecido com o que pensamos. Sempre foi assim, não é? Por isso, no passado, inventamos partidos, sindicatos, associações. Para defender interesses de uma categoria, de uma classe, de um conjunto. E também para atacar quem atrapalha, trabalha contra, aqueles a quem chamamos eles.

Mas se a essência se mantém, o resto todo muda. Somos seres mais sabidos e capazes de fuçar dados, argumentos, gostos, avaliações em mínimos cliques. Antes era bem mais fácil para governos, empresas, políticos mentirem. Apenas uma pequeníssima parcela tinha acesso a informações e poder para se contrapor. Eram os chamados subversivos da ordem, do estado das coisas.

A nova pergunta é: o que faremos com tanta sapiência? Está certo, para chegar numa minúscula rua no extenso bairro de Parelheiros, extremo sul de Sampa, basta usar um aplicativo no celular. Para descobrir o caminho que me levará para o outro lado do rio, entre as árvores, só preciso de inteligência para cruzar informações ao usar um buscador. Ficou simples e imediato sair do ponto A para o B. Do C até o Z!

O que eu ainda não consigo encontrar na internet são elementos que me ajudem a mudar a rota da minha vida. Nenhum aplicativo me explica como aplacar a tremenda saudade que sinto do meu pai. Jogo algum me habilita a derrotar os inimigos que ardem no meu peito. Não acho nenhum sistema que minimize minha crise.

Talvez no futuro. Chegará uma época em que um programa secará lágrimas? Tempo em que um verbete da wikipédia ensinará a viver a vida? Não consigo dizer que sim nem que não. Sei que um pedaço da resposta que procuro pode estar no poema escrito por uma doceira, ou até na fala espontânea de uma menina de sete anos de idade.

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fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé. *Texto publicado originalmente no Mente Aberta - Yahoo. Imagem: Régine Ferrandis a partir da obra de Nam-June Paik.

terça-feira, 11 de março de 2014

Do poste à cruz, o objetivo é o mesmo



por Celso Vicenzi*

Com um agradecimento especial ao meu filho Vinicius

As pessoas que amarram seres humanos em postes ou os imobilizam com travas de bicicleta – cenas recentes a se repetir pelo Brasil – têm as mesmas motivações daqueles que pregaram Cristo na cruz. Não há diferenças, por mais cristãos que os contemporâneos imaginem ser. Salvo a distância no tempo, são dois atos com um mesmo propósito, o de exibir a punição para servir de exemplo.

São os mesmos que queimaram entre 100 mil e 500 mil mulheres nas fogueiras da Inquisição Católica, na Europa, acusadas de bruxaria (há quem fale em 9 milhões). Não diferem dos que enforcaram Tiradentes, o esquartejaram e penduraram sua cabeça em Vila Rica e pedaços de seu corpo nos lugares em que fizera seus discursos revolucionários.

Para que os exemplos não frutifiquem, é preciso sempre uma dura lição!

São os mesmos que enforcaram ou decapitaram com machados ou guilhotinas milhares de seres humanos em praças públicas. Ou os torturaram com os métodos mais cruéis já inventados pela mente humana, diante de grandes plateias. A crueldade precisa de espectadores. E não são poucos, ontem como hoje, aqueles que se regozijam com esses atos.

Na Revolução Francesa, na Europa da Idade Média, em vários lugares e épocas, o povo comparecia às execuções em praça pública com o mesmo entusiasmo de quem vai a uma festa popular. Era um espetáculo “familiar” em que até as crianças estavam presentes. Lá como cá, a aceitação da pena aplicada pelos algozes sempre foi enorme.

Por isso, não importa o grau de violência perpetrado, em todos esses casos, mais do que punir, o objetivo sempre foi o de exibir a punição à sociedade com o intuito de desencorajar, de amedrontar pelo terror, de inibir atos semelhantes.

Não bastou condenar Jesus à pena de morte, era preciso mostrá-lo pregado à cruz, para que o exemplo pudesse intimidar quem ousasse seguir o mesmo caminho. Como podem concluir, o método tem suas falhas... Os cristãos se espalharam pelo mundo. Junto a Cristo estavam, também pregados a cruzes, dois ladrões. Não muito diferentes desses que hoje são punidos de modo violento pela sociedade, seja pela tortura, pela mutilação ou pela prisão em cadeias superlotadas, piores que as masmorras medievais.

A moderna sociedade brasileira pouco se difere das de épocas tenebrosas ao permitir castigos cruéis aos apenados. A única diferença é que, atualmente, não há no aparato político-jurídico quem os justifiquem, mas é certo que pouco se faz para impedir que a tortura seja método usual e corriqueiro em delegacias do país, para obtenção de informações e como instrumento de poder. Para os “homens e mulheres de bem”, como boa parte se autoidentifica, não basta privar o sentenciado da liberdade, é preciso infligir castigos cruéis. E, se possível, a pena capital: “bandido bom é bandido morto”. (E depois vão à missa, ao culto, às orações, para pedir paz e um lugar reservado no céu...).

Cerca de 55 mil pessoas são assassinadas anualmente no Brasil. A maioria, 39 mil, são negros. Para os pesquisadores, o racismo e as condições econômicas e sociais são as principais causas.

A pena de morte, na cruz, na fogueira, na cadeira elétrica, na forca, na guilhotina, por injeção ou pelas balas da PM – não importa o método – nunca funcionou para deter nenhum tipo de violência. E muito menos para calar ideias e ideais. Mas serve para o júbilo dos que assistem e para aqueles que assumem, por alguns momentos, o papel de carrasco.

Segundo Priscila Lessa (A tortura no Ocidente: atrocidade cultural ou exercício do poder), o carrasco tinha uma posição de status no Antigo Regime, na França, entre os séculos XVI e XVIII, e era uma profissão bem remunerada e hereditária. “A arte do ofício da tortura e da execução passava, por tradição, de pai para filho. O jovem carrasco tinha sua iniciação desde muito pequeno, aos cinco ou seis anos, quando já estava apto a ajudar o pai em pequenos castigos, como banhar o acusado em óleo quente ou queimar-lhe a sola dos pés.”

Os filhos desses jovens e adultos que atualmente se deliciam em fazer justiça com as próprias mãos também já estão aptos a aprender o ofício? Aprenderão, desde cedo, como tratar adolescentes e jovens envolvidos em furtos e assaltos? Afinal, quem aprende mais com quem? Quem pratica eventual ato ilegal ou violento aprende a não fazê-lo mais depois de espancamento, tortura e prisão num poste, ou o aprendizado é maior para aqueles dispostos a ingressar nessa cruzada por justiçamento, que, sem demora, corre o risco de “sentenciar” pequenos “marginais” à morte, amarrados em postes?

Indivíduos são estimulados desde cedo pela ideologia autoritária, pelos telejornais e programas de TV especializados em exibir violências de todos os tipos, menos aquelas cometidas pelos donos do poder. Afinal, também não é violência o modelo de sociedade onde 0,7% de seus habitantes detêm 41% de toda a riqueza mundial? E que leva milhões à morte? E empurra milhares ao crime? No caso brasileiro, não é uma violência a mesma sociedade ostentar o sexto maior PIB e a quarta maior desigualdade social do planeta? Por que não ocorre aos “justiceiros” amarrar aos postes os responsáveis por tamanha crueldade contra toda a população – ela, classe média, incluída? Tão próxima de um dia se juntar aos que estão mais abaixo?

O aparato de controle da escola, dos meios de comunicação, das igrejas, das tradições familiares, do Estado, ou seja, toda uma ideologia que se aprende desde o nascimento, tem justamente essa função de manter a maioria da população na ignorância sobre quem, de fato, são os seus principais verdugos. Quem são os maiores responsáveis pela inexistência de políticas públicas que poderiam evitar a maior parte das brutalidades cotidianas? Boa parte dos cidadãos, sem acesso à informação de qualidade, a uma boa formação humanística, só consegue enxergar como inimigo direto, o “marginal” que pratica vários delitos.

E contra ele descarrega toda a sua torta ideia de justiça, deixa-se assombrar por vontades arcaicas que o colocam a um passo da barbárie. Séculos, milênios de civilização permitiram ao ser humano construir obras monumentais e desenvolver tecnologias próximas da ficção, mas não o afastaram muito das emoções mais primitivas, de raiva, ódio, vingança, egoísmo, medo e crueldade.

Da cruz ao poste, Estado e cidadãos, numa relação dialética que se retroalimenta, mantêm o modelo ineficaz para conter a violência: vigiar, punir e exibir.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

segunda-feira, 10 de março de 2014

A vitória dos garis no Rio de Janeiro


por Cidinha da Silva

Senti o peso da chegada aos 40 quando em conversa com duas aguerridas ativistas de direitos humanos, uma de 27 e outra de 23 anos, convicta, usei a palavra pelego para caracterizar determinado setor de trabalhadores, sem maiores explicações. Elas me olharam desentendidas e a mais jovem, escusando-se da suposta ignorância, perguntou-me que conceito era aquele. Antes de explicar, fui obrigada a concluir, estou mesmo envelhecendo.

Passada uma década, a mais velha da dupla, que agora chega aos 40, deve sorrir ao ver a abundância de referências ao sindicato pelego dos garis do Rio de Janeiro. A expressão, extremamente usual na década de 80 do século passado, volta à baila em 2014, trazida pelo movimento grevista dos garis do Rio de Janeiro, que abandonaram as vassouras, ergueram punhos, vozes e marcharam durante 8 dias pelo centro da cidade, reivindicando a destituição de decisões anteriores tomadas pelo sindicato pelego que havia se vendido ao patrão (a prefeitura), melhores salários e condições de trabalho. Ascenderam faróis inertes desde as greves do ABC do final dos 70 e dos professores da rede pública na década de 80.

Os meninos e meninas de laranja, cuja força, o peleguismo da mídia hegemônica demonizava e diminuía, o peleguismo do sindicato traía e a prefeitura carioca fingia não ver, disseram um não rotundo a todos que queriam transformá-los em suco. Venceram! Inclusive às tropas armadas e truculentas que os forçavam a trabalhar sob o disfarce da proteção.

É imperativo aos conservadores admitir que doravante, a esperança da transformação social veste laranja e é negra. Bela e majestosa como a noite em que a carruagem abóbora de Matamba nos desperta do pesadelo!

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Vem novidade por aí...

Estranha Brasília


por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

Nesse Carnaval manso aqui de casa, o enredo é ficar à toa, ver filmes, levar um papo com quem aparecer, mandar boas energias para as pessoas queridas que estão se recuperando de abalos na saúde, corujar os bebês próximos, curtir os distantes nas fotos, essas coisas.

Rola uma folia animadora lá fora. Nos últimos anos, os blocos ganharam fôlego aqui em Brasília, que tem fama de ser fraca de samba, pura intriga da oposição. É certo que o traçado da cidade não favorece muito, mas querendo se encontra bom Carnaval para todos os gostos. Eu é que sou mais da preguiça.

Minhas quatro décadas de brasiliense há muito me ensinaram que não se vive aqui impunemente. Sobre nós se acumulam erros de interpretação, alguns já clássicos. Meses atrás, eu perambulava pela avenida Paulista e entrei numa ótica para me informar sobre determinada armação. Como forasteiros sempre trazem um carimbo na testa, o senhor que me atendeu fez a inevitável pergunta sobre de onde eu era. Foi só ouvir a palavra Brasília, disparou: é, lá se rouba muito, né? Respondi: sim, e aqui também. Desconcertado, ele voltou para as armações. O clássico comentário de que “Brasília é cheia de políticos corruptos” merece a boa resposta de que “todos foram eleitos pelo país inteiro, ou nos seus lugares de origem”.

A capital reflete o país, e nem podia ser diferente. Nos últimos tempos, com ruas abarrotadas de carros, contaminada pela insegurança urbana em suas formas mais agressivas e pela caretice mais tosca. Tempos muito estranhos, esses que estamos vivendo, com o perdão do clichê.

Como o lugar novo que era, para mim esta cidade significou, quando aqui desembarquei, na efervescência dos dezessete anos, uma lufada de ar fresco, cujos efeitos duraram muito tempo. Apesar do isolamento geográfico de então, da ditadura militar e da estratificação característica dos lugares previamente planejados, havia aqui um cosmopolitismo em terra vermelha, feito do impulso de se lançar no mundo, origens embaralhadas e gosto pelo novo. Não se preocupar com a vida alheia e conviver bem com ela era uma premissa básica da cidade, pois o velho, o tradicional, o familiar tinham ficado na província. Como desperdiçar tamanha oportunidade de auto-reinvenção? Eu e mais um monte de gente nos jogamos com muito gosto na tarefa.

Antes de escorregar na casca de banana da apologia vazia, que aqui se ouve com certa frequência, ou das críticas oriundas das comparações de contextos urbanos, sempre problemáticas quando se trata de Brasília, quero deixar claro o que me motiva neste momento, que é a formação de uma onda sinistra. Temos tido agressões homofóbicas violentas e gratuitas em sequência, racismo exacerbado e anunciado na base do grito, um crescente puritanismo religioso de conveniência, que tem reforçado um conservadorismo político primário baseado em confrontos, violência escabrosa de cidade grande, ufa! A rigor, nenhuma novidade, mas é a onda que me intriga. Não por acaso, ela coincide com a ressaca dos protestos de junho passado e com este ano maluco de Copa do Mundo e eleições nacionais.

Brasília, lembre-se de si mesma, de como éramos mais inteligentes, mais generosos e menos tolos, de como sabíamos lidar muito melhor com o novo e com o diferente. Pensando bem, acho que os brasileiros todos éramos, e não posso aceitar passivamente que estejamos andando para trás.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Celebridades

por Fernanda Pompeu*

Elas e eles são gente um pouco mais do que a gente. Não têm filhos, têm herdeiros. Suas casas são mais amplas, mais charmosas do que as nossas. Em geral, as mulheres são magras, os homens ricos. Ou mesmo magras e ricas, ricos e magros. São bonitos com seus dentes mais brancos do que a neve de Sochi - onde estão rolando os Jogos Olímpios de Inverno. O que dizem, mesmo quando um simplório Desejo um Brasil sem violência, merece ser publicado. Ninguém os acusa de perpetuarem obviedades.

Celebridades não sabem que eu existo, mas eu sei o que elas gostam de comer no café da manhã. Quando morrem são choradas como gente da família. É fato que sempre existiram celebridades. Mas até há pouco tempo, elas vinham associadas a um feito notável. Cruzar a nado o Canal da Mancha. Escalar a mais alta montanha do mundo. Ser mulher e ganhar um Prêmio Nobel. Ser negro e dirigir uma multinacional. Aterrissar um avião desgovernado, salvando todo mundo. Entre outros atos extraordinários.

Mas em tempos de mídias aceleradas e abundantes, na era de portais, facebook, twitter e similares, as celebridades saltam como salta meu Uno nos buracos das ruas de Sampa. Muitas vezes, a celebridade surge do planeta do nada. Alguém pergunta: mas o que mesmo essa pessoa fez ou faz? Um outro responde: sei lá, só sei que ela está bombando. Outras vezes, são celebridades por direito de sangue. Filho de um cantor sertanejo, filha de uma atriz de novela. Ou mesmo mãe de uma modelo, pai de um jogador de futebol.

Não sou ingênua. Imagino que na Idade das Cavernas houvesse também celebridades. Alguém capaz de conseguir mais comida do que a maioria. Um desenhista rupestre mais talentoso do que a média. Mesmo um sujeito que berrasse mais alto afastando os medos. Também entre as lavadeiras de rio, deve existir uma mais hábil do que as outras em molhar, enxaguar, torcer. Até entre blogueiros, há os famosos. Entre as formigas? Talvez tenha uma formiga com ares de cigarra.

Nada disso me intriga. O que me causa perplexidade é a celebridade feita de ar. A celebridade-bolha. Ou o bandido-celebridade, tão exposto pelas mídias que acabamos conhecendo detalhes de sua vida. Por exemplo, qual o último filme que ele viu. No entanto, também é fato que com a mesma velocidade que surge uma celebridade de ar, ela desaparece. O tédio acaba furando a bolha.

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fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé. *Texto publicado originalmente no Mente Aberta - Yahoo. Imagem: Régine Ferrandis sobre vestido original de Azzedine Alaïa.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Por que os brasileiros não gostaram do Oscar?


por Maria Shirts*

A resposta ao título é simples: “porque Gravidade ganhou tudo”. E, diferentemente dos norte-americanos, os brasileiros não gostam de filmes como Gravidade.

O que aquela Academia de Cinema preza não tem nada a ver com os nossos valores estéticos e narrativos. Gravidade é um filme de efeitos especiais. Foi inteiramente feito em estúdio, e ainda com dois atores queridinhos de Hollywood (George Clooney e Sandra Bullock). A trama, uma espécie de Odisséia pós-pós-moderna, tem superação de desafios, é um périplo heróico e de final feliz que ainda por cima foi dirigido por um latino americano, o que pode ser considerado um belo fetiche aos olhos dos norte-americanos politicamente corretos.

Creio que os brasucas gostem de filmes com mensagens existenciais, do tipo Nebraska e, se for pra ter mais “ação”, com uma estética mais chamativa e interessante, do tipo d’O Lobo de Wall Street. Aliás, muitos amigos se surpreenderam pelo fato d’O Lobo não ter ganhado nada. A maior frustração talvez tenha sido com o prêmio de melhor ator, que não ficou com Leo DiCaprio, que encenou o protagonista. No entanto, segundo minha amiga Clara Holtz, que já apareceu em outras mal-traçadas minhas sobre o Oscar, ele não tinha como competir com o ganhador desse ano, Matthew McConaghey, que levou o prêmio pelo filme Clube de Compras Dallas. Afinal “quem emagrece muito e pela primeira vez para fazer filme em Hollywood sempre ganha o Oscar”, justifica.

Independente das questões nutricionais de McConaghey, me parece que os filmes de Martin Scorsese estão um nível acima do que Hollywood gosta e entende. Isso porque quando o espectador norte-americano não sabe exatamente pra quem torcer, fica aflito e perde o interesse. Eles precisam de um herói, e precisam que ele seja do bem. O que aparentemente não dividiu tantas opiniões entre lá e cá foi o também premiado 12 Anos de Escravidão. Percebi que tanto brasileiros quanto americanos gostaram desse filme, se emocionaram com ele. Apesar da luta racial e da escravidão terem acontecido de maneira bem diferente nos dois países, desconfio que esse tema sempre sensibilizará os habitantes das Américas, mesmo que dirigido por um inglês... Encenado ainda por Lupita Nyong’o, chega a ser covardia. A atriz, que levou o prêmio de melhor coadjuvante por sua personagem Patsey, deveria ter um filme só dela. Não me surpreenderia se os víssemos nos cinemas em breve.

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Maria Shirts, internacionalista e pedestrianista, mantém a coluna Transeunte Urbana.
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