.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sábado, 8 de outubro de 2005

Miguel de Cervantes

Em 1575, bem antes de publicar Dom Quixote, Miguel de Cervantes, que era soldado a serviço da monarquia espanhola, foi capturado por piratas berberes no norte da África. Passou cinco anos preso na Argélia. Resgatado em 1580, trabalhou como espião em Oram, uma cidade ao norte daquele país. Foi um caso típico de dublê de escritor e espião.
A história da literatura está repleta de casos como o dele. Francisco de Quevedo, John le Carré, Graham Greene, Rabelais, Voltaire, Daniel Defoe - todos eles, escritores conhecidos, também atuaram como espiões.
Por que tantos tiveram essa vida dupla? Uma explicação pode ser uma característica comum às duas atividades: o dom de observar. "O espião é, sobretudo, um observador a quem dão ordens. O escritor é um observador que se autogoverna. Mas ambos desenvolvem olhares parecidos sobre o mundo que os rodeia", afirma Fernando Martínez Laínez em Escritores e espiões - a surpreendente vida secreta de grandes nomes da literatura mundial.
Alguns escritores usaram a experiência de espião como matéria-prima da ficção. Foi o caso de Graham Greene, que trabalhou para os serviços de inteligência da Grã-Bretanha (registre-se, porém, que ele já escrevera sobre espionagem antes de ser recrutado). Outros mantiveram as duas atividades separadas. Foi o caso do próprio Cervantes, que terminou se envolvendo com a literatura porque, a certa altura, viu que não tinha jeito para a atividade secreta. Na voz de um personagem, ele diz: "Não sou muito bom para o palácio porque tenho vergonha e não sei lisonjear".

segunda-feira, 3 de outubro de 2005

Uma história do(s) terrorismo(s)

Matéria do genial Renato Pompeu, publicada em mais um especial Caros Amigos. Trata da história do terrorismo.
O terror começou como terror de Estado; o terror anti-Estado só surgiu depois. O terrorismo de Estado ainda predomina

Provocar o terror nas populações para alcançar fins políticos, militares, religiosos ou econômicos é tão antigo quanto as primeiras sociedades humanas. Haja vista que os dois satélites do planeta Marte, nome do antigo deus da guerra, são Fobos e Deimos, o Medo e o Terro, em grego, duas táticas de guerra bastante conhecidas e utilizadas ao longo de toda a história. Na Grécia antiga, o historiador militar Xenofonte já aconselhava a prática de assassínios em países potencialmente adversários, para criar pânico entre a população potencialmente inimiga. Os imperadores romanos e os padres da Inquisição da Igreja Católica Romana são bem conhecidos pelas suas atrocidades contra recalcitrantes. Nunca é demais ressaltar, além disso, que a escravidão só pôde sobreviver na Antiguidade e nas Américas coloniais por causa do regime de terror, estatal e privado, a que os escravos eram submetidos.
Mas a primeira vez em que surgiu o termo “terrorismo” foi com referência ao chamado período do Terror na Revolução Francesa de 1789. O Dicionário da Academia Francesa, na edição de 1798, assinala o termo como significando “sistema ou governo baseado no terror”. O período do Terror foi a época da Revolução Francesa em que governos ditatoriais guilhotinaram 12.000 pessoas, primeiro da direita e depois da esquerda. O terrorismo entra na linguagem, portanto, como terrorismo de Estado, que já era sua forma quase exclusiva antes de ele ser “batizado”.
Na segunda metade do século 19, o terrorismo passou também a ser praticado por individualidades e pequenos grupos, se tornando famosa a figura do incendiário, armado com uma bomba a que se chamava de “engenho infernal”. Esse terrorismo era dirigido também contra individualidades, principalmente contra autoridades e soberanos. De raiz anarquista na Europa Ocidental e Central e nos Estados Unidos, e de origem populista no Império Russo, esse terrorismo se baseava em que o assassínio de um opressor funcionaria como “ação exemplar”, desencadeando a revolta dos oprimidos. Isso, porém, nunca se verificou, apesar de terem sido mortos vários chefes de Estado, como o czar russo Alexandre II em 1881, o presidente americano William McKinley em 1901. Cumpre notar que os populistas russos que mataram o czar se orgulhavam de serem chamados de “terroristas” e como tal se apresentavam. Os terroristas direitistas agiam mais em grupos e contra membros de uma determinada população, como a Ku Klux Klan de brancos racistas dos Estados Unidos, que até meados do século 20 ainda linchavam negros.
A consagração do 1o de maio como Dia do Trabalho tem como origem um atentado em 1886, na praça Haymarket, em Chicago, EUA, quando estava havendo um comício de trabalhadores e a Polícia interveio, sendo atingida por uma bomba que matou oito policiais. Foram presos e condenados à morte oito anarquistas que não tinham nada a ver com o atentado, mas a histeria encarniçou contra eles a ira da imprensa, da opinião pública e da Justiça. Até hoje, os Estados Unidos são o único país do mundo em que o Dia do Trabalho não é comemorado a 1o de maio, e sim no primeiro fim de semana de outubro, exatamente para apagar da memória dos trabalhadores a lembrança da injusta condenação de seus líderes.
Um ato terrorista individual, entretanto, viria a desencadear a Primeira Guerra Mundial. Um estudante sérvio-bósnio de 19 anos, Gavril Princip, em junho de 1914, quando a Bósnia pertencia ao Império Austro-Húngaro, matou em Sarajevo (sempre Sarajevo!) o arquiduque austríaco Ferdinando, herdeiro do trono imperial. O objetivo de Princip era reivindicar maior liberdade para os sérvios da Bósnia, mas o que ocorreu é que a Áustria-Hungria reagiu se preparando para atacar a Sérvia independente, o que desencadeou a Primeira Guerra em toda a Europa. Vale lembrar, naturalmente, que para os sérvios Princip nunca foi um terrorista, mas um combatente pela liberdade de um povo oprimido.
Após a Revolução de Outubro na Rússia, em 1917, novamente surgiu o terrorismo de Estado, o Terror Vermelho nas áreas controladas pelos comunistas e o Terror Branco nos territórios dominados pelos czaristas. Em ambos os casos se tratava de execuções em massa dos oponentes.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista impôs o terrorismo de Estado nas regiões ocupadas e deu andamento ao Holocausto, o extermínio de milhões de judeus, ciganos, comunistas e outras pessoas. Após a Segunda Guerra, o terror passou a ser uma arma dos movimentos de libertação dos povos coloniais contra o terrorismo de Estado das potências coloniais. Ficaram famosos os atentados dos Mau-Mau no Quênia e as bombas em bares de praia freqüentados por franceses na Argélia. No entanto, às vezes esses atos de terror anticolonial eram dirigidos por uns grupos de libertação contra outros grupos de libertação seus rivais, para imporem a sua liderança.
Depois do fim do colonialismo, nos anos 1960, surgiram ações de terrorismo, como atentados, seqüestros etc., contra ditaduras e contra ocupantes estrangeiros que impunham o terror de Estado, em vários países da América Latina e nos territórios ocupados por Israel, além de na África e na Ásia em geral. Também nos países adiantados ocorreram atos de terror, às vezes pela direita (Organização do Exército Secreto, na França, contrária à independência da Argélia; atentados direitistas na Itália, assassínio do primeiro-ministro sueco Olof Palme), às vezes pela esquerda (Brigadas Vermelhas, na Itália, que entre outras coisas seqüestraram e mataram o ex-primeiro-ministro democrata-cristão Aldo Moro; grupo Baader-Meinhoff, na Alemanha; Exército de Libertação do País Basco – ETA –, na Espanha: Exército Republicano Irlandês – IRA –, no Ulster; Weather Underground e Exército Simbionês de Libertação, nos Estados Unidos; separatistas do Quebec, no Canadá). Nenhum desses grupos conseguiu avançar no cumprimento dos seus objetivos, mas houve um atentado que “deu certo”: o assassínio do almirante espanhol Carrero Blanco, que coordenava a modernização do franquismo, foi um dos fatores que contribuíram, nos anos 1970, para a redemocratização na Espanha.
Na mídia, a face mais divulgada do terror é a islâmica. Em setembro de 1970, militantes palestinos seqüestraram vários aviões e os levaram para a Jordânia, onde libertaram os passageiros, mas queimaram os aviões. Dois anos depois, nas Olimpíadas de Munique, em 1972, novamente militantes palestinos mataram onze atletas israelenses. Esse foi um dos primeiros ataques indiscriminados, isto é, não dirigido a pessoas específicas, contra ocidentais – claro que com muito maior repercussão do que os ataques indiscriminados das potências ocidentais contra os povos coloniais (só as forças belgas, no Congo, em meados dos anos 1880, mataram 6 milhões de pessoas, num terrorismo indiscriminado contra a população em geral).
A ligação do chamado terrorismo com o fundamentalismo islâmico tem como foco principal uma origem material, e não religiosa. No subsolo dos países islâmicos da Ásia estão concentradas as maiores reservas comerciais de petróleo do mundo. A ação ocidental, principalmente dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, para controlar o petróleo da região data da passagem do século 19 para o 20, primeiro pelo estabelecimento do colonialismo direto e, depois da Segunda Guerra Mundial, por intervenções militares nos países recém-independentes que tentavam estabelecer regimes nacionalistas e estatistas, como o Irã do primeiro-ministro Mossadegh nos anos 1950.
Com o fracasso do nacionalismo e do estatismo que acompanhou mundialmente a derrocada geral do socialismo e do comunismo e com a ofensiva mundial do neoliberalismo, se criou um vácuo que passou a ser preenchido, no enfrentamento contra o Ocidente, pelo fundamentalismo islâmico, que alcançou sua maior vitória com o triunfo da revolução islâmica no próprio Irã, em 1979. Além disso, a aliança indissolúvel entre os Estados Unidos e Israel se somou à disputa pelo controle do petróleo para acirrar a campanha islâmica contra o Ocidente, agora com aspectos religiosos profundamente entranhados, tanto no Ocidente e em Israel como nos países islâmicos.
Nos anos 1990, o empresário saudita Osama bin Laden e sua organização Al Qaeda (A Base ou O Método), que na década anterior tinham ajudado os Estados Unidos a combater os ocupantes soviéticos do Afeganistão – e que até mesmo tinham sido treinados e financiados pelo Ocidente –, consolidaram o terrorismo indiscriminado antiocidental, por sentirem que seus povos são oprimidos pelas forças militares, políticas e econômicas do Ocidente. Em agosto de 1998, mataram centenas de pessoas em ataques a embaixadas americanas na África.
A partir de 2001, os militantes palestinos passaram a organizar ataques suicidas indiscriminados contra alvos israelenses, adicionando, por sua vez, um elemento religioso ao que tinha sido até então um movimento predominantemente político. (Isso porque o fiel muçulmano acredita que, se morrer em defesa da fé, sua alma irá para o Paraíso.) Se, para os israelenses e a mídia ocidental, esses militantes suicidas são terroristas, para os palestinos e seus simpatizantes os homens-bomba são combatentes da liberdade contra o terror de Estado de Israel nos territórios ocupados. Também foram suicidas, isto é, de caráter religioso, os grandes atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York e Washington.
Nos EUA existem terroristas tipicamente americanos que se incluem entre os chamados “libertários”, direitistas contrários à interferência do governo em suas vidas, inclusive contrários à cobrança de impostos. Seu maior feito foi a morte de 168 pessoas num prédio federal em Oklahoma City, em 1995.
A “guerra contra o terror” desencadeada pelo presidente George Bush após os atentados de 11 de setembro de 2001 se seguiu, vinte anos depois, à “guerra contra o terror” desencadeada pelo presidente Ronald Reagan em 1981, logo após a libertação dos americanos que haviam sido feitos reféns na embaixada dos EUA no Irã. O maior triunfo dessa guerra internacional foi a detenção do famoso terrorista venezuelano Carlos, o Chacal – mas, se foi pego um terrorista, não acabou o terrorismo. Calcula-se que os efetivos da Al Qaeda tenham aumentado grandemente em duas ondas, uma depois dos atentados de 2001 em Nova York e Washington e outra depois da invasão do Iraque em 2003. A organização teria agora, segundo os cálculos mais recentes, 18.000 membros em todo o mundo.
Desde 1963, a ONU tem discutido e/ou aprovado numerosas convenções que mencionam o terrorismo, da condenação aos atos de seqüestro e à ocupação de embaixadas com manutenção de reféns, passando pela proibição aos governos de financiarem atos de terror, até o esboço de uma convenção geral, aprovada pela Comissão Jurídica da Assembléia Geral, assim redigida, em 1999:
“A Assembléia Geral reitera que atos criminosos com o objetivo ou o cálculo de provocar um estado de terror no público em geral, num grupo de pessoas ou em pessoas específicas, com propósitos políticos, são injustificáveis em quaisquer circunstâncias, sejam quais forem as considerações de natureza política, filosófica, ideológica, racial, étnica, religiosa ou de qualquer outra natureza que possam ser usadas para justificá-los.”
O problema é que, o que é “ato criminoso” para uns é “ato de legítima defesa” para outros. Afinal, o Congresso Nacional Africano foi considerado “terrorista” pela Grã-Bretanha e Estados Unidos em 1987 e hoje compõe o governo da África do Sul, reconhecido pelo mundo inteiro. Também judeus apontados como terroristas na Palestina sob mandato britânico, como Menachem Begin, passaram a ser líderes e heróis nacionais no Israel independente. Brasileiros apontados como terroristas durante o regime militar hoje são nomes de rua, parlamentares e até ministros. O que vai acontecer amanhã com os “terroristas” de hoje?
Qual o maior foco de terrorismo da história? Segundo muitos historiadores, são os Estados Unidos, o próprio país que, paradoxalmente, promove a guerra contra o terror. Um documento oficial do Ministério da Defesa da Bélgica (país acusado do genocídio de 6 milhões de pessoas no Congo, no século 19, como vimos) aponta os EUA como o palco do maior genocídio da história, pois os colonizadores teriam exterminado 15 milhões de indígenas em território americano.
Nos primeiros vinte anos do século 20, os EUA intervieram vinte vezes na América Central e Caribe. Depois da Segunda Guerra Mundial, além das guerras da Coréia e do Vietnã, em que bombardearam também o Camboja e o Laos, estiveram envolvidos em operações encobertas que derrubaram governos nacionalistas no Irã, na Indonésia – nesta, com a morte de centenas de milhares de pessoas. Ajudaram a ditadura indonésia a ocupar o Timor Leste em 1975; antes tinham agido na República Dominicana. Colaboraram com a instauração de ditaduras militares por toda a América Latina, nos anos 1960 e 1970, e também na América Central, nos anos 1980.
Fomentaram a oposição fundamentalista islâmica ao regime laico do Afeganistão, já calculando que a União Soviética interviria e se desgastaria na luta contra os rebeldes fundamentalistas, que depois passaram a constituir o Taleban, mais tarde apontado como inimigo por Washington. No governo de Bush pai, na passagem dos anos 1980 para os anos 1990, ocorreram a invasão do Panamá, a expulsão das tropas iraquianas do Kuwait, a instalação de tropas americanas na Arábia Saudita – o que levou o milionário Bin Laden, até então aliado dos EUA, a se tornar seu inimigo, pois considera que o solo do seu país é sagrado e não pode receber tropas estrangeiras.
No governo Clinton foram bombardeados o Afeganistão, Sudão, Iugoslávia e Iraque. O governo Bush filho ocupou o Afeganistão e o Iraque e aumentou a presença na Colômbia e outros países latino-americanos. Os EUA gastam atualmente 450 bilhões de dólares por ano com suas Forças Armadas e combatem insurreições em oitenta países. Que foco maior de violência pode existir?
Os Estados Unidos, com sua política expansionista e sua força militar incontrastável, acabam sendo o maior fator, ativo e passivo, do terror no mundo. Os povos oprimidos pelo poder americano acabam reagindo da maneira mais desesperada, pois não têm meios de enfrentar os EUA. Mas se engana quem imagina que a guerra no Iraque é uma “loucura” de Bush. As classes dominantes americanas aprenderam desde a Segunda Guerra Mundial, que se seguiu à Grande Depressão, que a guerra é o melhor meio de manter o dinamismo de seu tipo particular de capitalismo.
Com a guerra, o Estado americano pode cobrar mais impostos dos pobres do que dos ricos, para financiar a indústria armamentista e para assegurar militarmente o fluxo de petróleo, duas instâncias vitais para o crescimento econômico dos EUA. Com a guerra, a classe dominante americana pode cortar benefícios sociais, manter baixos os salários e prolongar as horas de trabalho. Só que, com a guerra, os EUA e seus aliados têm de contar com o terrorismo como resposta. Tudo indica que os EUA empreenderão novas guerras, qualquer que seja seu presidente, e que os povos oprimidos e fracamente armados continuarão reagindo com o terror individual ou de pequenos grupos contra o terrorismo de Estado americano.

Renato Pompeu é jornalista.
Web Analytics