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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Até 2015

O Nota de Rodapé faz um pausa. Voltará em 2015 com novidades. E muitas. Aguardem. Boas festas a todos noss@s leitores e colaboradores.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Bem vivos


por Júnia Puglia  ilustração Fernando Vianna

Mesmo que eu me esforce muito na formulação e na elaboração, sei, de partida, que será bem difícil ajustar o tom e expressar a profundidade do que quero dizer. A clássica frase dos discursos, de que “não tenho palavras”, aqui se encaixa justinha. Palavras me faltam até mesmo para começar. Mas insisto.

Durante rápida caminhada aqui perto de casa, o olhar do belo rapaz negro cravou em mim um largo e genuíno sorriso, acompanhado do melhor “bom dia” que eu poderia esperar. E despertou as borboletas dormidas no meu estômago.

Algumas semanas atrás, a seção brasileira da Anistia Internacional lançou a campanha “Jovem Negro Vivo” (https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/), uma iniciativa de conscientização da sociedade, anestesiada sobre a realidade do genocídio da juventude negra. Se você acha exagerado usar o termo “genocídio” para definir o que acontece, o Aurélio, em versão resumida, me acode: “destruição metódica de um grupo étnico pelo extermínio dos seus indivíduos”. O termo foi forjado no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, para definir a eliminação sistemática de grupos étnicos praticada pelos nazistas.

Todas as pessoas que conhecem o Brasil e vivem aqui sabem do que estou falando, por mais que evitem ver. Nossa cegueira está calcada em séculos de desprezo por qualquer indivíduo que tenha ou aparente ter menos. Aqui, nascer negro ou negra define ter e ser menos, de saída. Simples assim. No rap “Haiti”, Caetano Veloso adverte sobre o cenário contemplado a partir do adro da Casa de Jorge Amado, no Pelourinho de Salvador: “a fila de soldados quase todos pretos dando porrada na nuca de malandros pretos... só pra mostrar... como é que pretos, pobres e mulatos e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”. Mas só pretos se importam com pretos. Só pretos choram os milhares de jovens pretos amputados de viver e realizar seu potencial e suas habilidades em benefício próprio.

Enquanto isso, nossa capacidade de copiar gringuices esquisitas parece inesgotável. Até Halloween e Black Friday entraram na lista de eventos apreciados por jovens brancos, que falam uma língua diferente da minha, salpicada de palavras inglesas adaptadas à força de customização, blutuf, delivery e companhia. Lá na gringolândia, a segregação e a discriminação dos negros foi muito mais profunda e escancarada do que aqui, é o argumento que os tolos usam para nos fazer sentir menos responsáveis pela nossa própria tragédia racial. Porém, se os branquinhos de shopping prestassem atenção nas imagens dos protestos que vêm acontecendo por conta dos recentes assassinatos de jovens negros por policiais nos Estados Unidos, veriam que há muito deixaram de ser manifestações só de negros. E estão sacudindo o país com sua indignação e clamor.

Isto, nem lhes ocorre imitar. Deixe quieto, aqui a gente tem outras prioridades de mobilização, atividade há pouco ressuscitada na nossa vida política. No topo da lista, o inconformismo com o resultado do jogo democrático, que inclui uma bizarra vertente chamando os carrascos militares de volta, por mais incrível que possa parecer.

Eu, na minha inescapável brancura, quero todos os meninos e meninas, de todas as cores, bem vivos. Você me acompanha? Então clique no link acima e veja mais sobre o que estou tentando falar.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Réquiem caboclo

1964 + 50
 Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Episódios quinzenais toda quinta-feira.

(episódio 21)

por Fernanda Pompeu   ilustração Fernando Carvall

Na manhã do 24 de agosto de 1954, Getúlio Dornelles Vargas atirou contra o próprio peito obtendo 100% de resultado, se tornando um estraga-prazeres, uma mala sem alça, uma pedra no sapato, um estorvo para militares e políticos que estavam prontinhos para surrupiar a presidência da República e sentar seus respeitáveis traseiros nas cadeiras do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro.

Antes do tiro, a oposição tinha razão em acreditar que havia encurralado o pai-dos-pobres, a esfinge-dos-pampas, o velho, a raposa. Carlos Lacerda, o Corvo, não dava trégua. Acusava Getúlio de ser o mandante do atentado contra sua vida, que matou o major da aeronáutica Rubens Vaz. Este fazia a vez de segurança de Lacerda. O episódio ficou conhecido como o Atentado da Rua Tonelero, em Copacabana.

A oposição ao Raposa, liderada pelo Corvo, investigou parentes, auxiliares, e principalmente o chefe da guarda pessoal de Getúlio, Gregório Fortunato, que por seu cargo e cor da pele era chamado de o Anjo Negro. Os interrogatórios aconteciam na base área do Galeão, melhor dito, na República do Galeão - por conta do poder concentrado.

Também pipocaram denúncias de corrupção e arrepios da lei. Irmão, filho, genro, dono de jornal foram para a frigideira. É claro que o alvo era o presidente, mas no final não conseguiram provar sua participação em nada. Ao menos, não diretamente. Porém o estrago estava feito.

Hoje, há quem analise que a grande carta do jogo era a recém-criada Petrobras e o projeto da Eletrobras. Evidente que Getúlio Vargas queria uma petrolífera estatizada. Já altas patentes militares, grandes empresários, o Corvo, vários políticos desejavam um modelo aberto ao capital privado e, principalmente, ao capital americano. Argumentavam: “Tupiniquins não são capazes de gerir empresas complexas”.

O Brasil é complicado, mas sua elite política é simples. Ela sempre esteve dividida entre entreguistas e nacionalistas, pró-americanos e pró-cubanos, Miami e Paris, esquerda e direita. Sendo que em todos os governos, com variação de grau, o povo raramente é consultado para as grandes mudanças.

Aliás, no dia seguinte ao suicídio de Getúlio e após a divulgação de sua carta-testamento, finalmente o povo subiu ao palco. Sem pedir licença. Uma multidão chorou a cântaros a morte do três-em-um: revolucionário, ditador, democrata. Rapidamente o clima político favorecendo um Golpe se desfez. O presidente se tornou mártir. Com mitos não se brinca.Os golpistas tiveram esperar por dez anos.

Nesse ínterim, tiveram JK e Brasília, Jânio e a renúncia, Jango e as reformas de base. Até que, num quartel em Minas Gerais, um general tocou a corneta da alvorada de 1964. Tempo que voa. Todas as personagens dessa crônica: corvo, anjo, raposa, generais, presidentes, ditadores estão mortos. O único que segue vivo é a nossa vontade de saber e de contar.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O barbeiro machão

por Carlos Conte*

Esperava sentado numa cadeira escolar, quieto no meu canto, enquanto o Barbeiro (vou chamá-lo assim) cortava o cabelo de um homem velho, narigudo e careca – aqui na Vila Romana é um tipo clássico – até que, me olhando pelo reflexo no espelho, o Barbeiro ordenou:

– Não lê essa revista aí, meu! Tenho coisa melhor. Claro: pra quem gosta de mulher!

Sem largar a tesoura, abriu uma gaveta e tirou dali uma pilha de revistas de mulher pelada.

– Lá no armário tem mais! – jogou as revistas no meu colo. – Depois me fala qual é a melhor. Minha preferida é a Patrícia Jordane. Esse Neymar é um cara de sorte, você não acha?...

Patrícia Jordane, ex-affair do Neymar. Essa não conhecia. A edição era recente mas o exemplar estava tão surrado que não pude evitar um princípio de nojo. Muitos pares de mãos masculinas já tinham virado aquelas páginas, só espero que ninguém tenha lido no banheiro (sabemos que isso é quase impossível).

Talvez fosse apenas sua maneira de receber bem um cliente, pondo à sua disposição toda pornografia disponível a fim de agradá-lo. Mas fico com a hipótese de que ele queria me provar alguma coisa, marcar posição, com sua exibição testosterônica exagerada e sem sentido, além de muito constrangedora. Acho que na cabeça dele funciona assim: pelo fato de tocar um salão de beleza masculino – afinal, barbearia não deixa de ser isto: um salão de beleza masculino, sendo barbearia só o nome “macho” para distingui-lo dos salões femininos –, o Barbeiro precisava provar aos clientes que não jogava no “outro time”. Atitudes como a dele, afobadas, atrapalhadas, escondem na verdade um medo terrível. Medo de passar por “cabeleireiro”.

Ao mesmo tempo em que provava sua “macheza”, ele me testava. Notei que o Barbeiro, entre uma tesourada e outra, ficava me olhando pelo espelho enquanto eu folheava a revista. Dependendo da minha reação diante da Playboy, ficaria provado se eu jogava ou não no “time” dele.

– E aí, aprovou?

– Nada mal...

Quando perguntada pelo repórter se vale tudo entre quatro paredes (já que no futebol existem regras bem definidas), a Maria Chuteira não titubeou: “com certeza!”.

O problema dessas revistas é que as fotos são ruins e cheias de photoshop. Um pouco de olhar crítico já faz você perder o tesão. Tem que entrar no jogo, abstrair. Tipo futebol. Se você começa a pensar um pouco, já era. Por isso que na adolescência eu gostava tanto de revista de sacanagem. Hoje não sinto a menor emoção. E a Playboy já foi uma revista melhor.

– Viram a polêmica da Viviane Araújo? Lembrei disso agora porque o cara que aparece no vídeo é careca...

O cliente e eu nos entreolhamos pelo espelho.

– Não viram? Não acredito! Dá uma olhada nisso aqui... – e me empurrou o iPhone.

Eram imagens de uma câmera de vigilância, dessas que nos filmam pra lá e pra cá o dia todo. Um carro estaciona numa rua deserta, um homem e uma mulher saem do veículo, abrem a porta traseira, ela se debruça no banco de trás, ele fica em pé atrás dela, e então, sem desconfiar de nada, começam a fazer sexo ali mesmo. Tem uns 2 minutos. O homem é calvo. A mulher, de fato, é bem parecida com a garota do Fantástico 94. Nunca vou me esquecer dela apagando a lousa na Escolinha do prof. Raimundo.

Claro que no dia seguinte ela negou tudo. No Instagram, descolou um álibi: no mesmo dia e no mesmo horário, cumpria compromisso com uma escola de samba. Abri a edição do mês seguinte e comecei a ler uma entrevista com o deputado Jean Wyllys, em que ele conta da sua experiência com maconha, diz que já ficou com meninas e admite que é um cara feio. Já pensou se o Barbeiro descobre que eu estou lendo a entrevista do Jean Wyllys? Ia ser divertido. Corrijo: ia ser pavoroso. Mas nunca, nunca mesmo, se deve arrumar encrenca com um barbeiro. Caso você brigue com um, nunca mais ponha os pés lá. Quem está com a navalha é ele, não você. O pescoço é o seu, não o dele. Enfim, essas coisas do dia a dia às quais precisamos estar sempre atentos. E com garçom é a mesma coisa.

Chegou minha vez. O de sempre: diminuir o volume e fazer um corte “normal” (seja lá o que isso signifique), mas não tem muito o que inventar na minha vasta cabeleira.

– Gostou da Viviane? – ele insistiu.

– Gostei.

– Lembra quando o professor Raimundo chamava ela pra apagar a lousa?

Só queria dizer a ele que não precisava forçar tanto a barra para provar sua heterossexualidade. “Já entendi, cara. Você gosta de mulher, parabéns! Eu também. Mas isso agora não importa. Corta meu cabelo e dá um tempo!”.

Claro que não foi isso que eu disse. Melhor não contrariar quem está com a navalha na mão. Afinal, o pescoço é o meu, não o dele.

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Lina Bo Bardi: a arquiteta-antropóloga

CENTENÁRIO: autora de projetos famosos, como os do Masp e do Sesc Pompeia, Lina Bo Bardi, que ainda na Itália juntou-se à resistência antifascista e se dizia “stalinista”, alcança um nível de reconhecimento que não teve em vida.

por Marcos Grinspum Ferraz
[texto originalmente escrito para a revista Retrato do Brasil]

Lina Bo Bardi, nascida em Roma, na Itália, em dezembro de 1914, não só escolheu o Brasil como pátria, como foi apaixonada por este país, suas paisagens e culturas. Como ela mesma escreveu: “Naturalizei-me brasileira. Quando a gente nasce, não escolhe nada, nasce por acaso. Eu não nasci aqui, escolhi este lugar para viver. Por isso, o Brasil é meu país duas vezes, e eu me sinto cidadã de todas as cidades, desde o Cariri ao Triângulo Mineiro, às cidades do interior e da fronteira”. Mas, se a arquiteta escolheu o Brasil com tamanha convicção, o Brasil não parece tê-la aceitado, ou compreendido, do mesmo modo. Hoje celebrada como um dos maiores nomes da arquitetura mundial da segunda metade do século XX, sendo tema de exposições, livros, artigos de jornais e estudos acadêmicos, Lina não teve o mesmo reconhecimento em vida.

Na verdade, de 1946, quando desembarcou no Brasil, até sua morte, em 1992, a arquiteta enfrentou uma série de dificuldades na carreira, passou por longos períodos de ostracismo e deixou, ao todo, não mais de dez obras construídas. Entre elas estão algumas das mais notáveis edificações do Brasil moderno, como o Museu de Arte de São Paulo (Masp), o Sesc Pompeia (ambos na capital paulista) e o restaurado Solar do Unhão (em Salvador), mas poderia ter deixado mais. E, se é difícil explicar com precisão os motivos de tantas adversidades – que passam pelos fatos mais óbvios de ser mulher em uma sociedade machista, ser “estrangeira” em tempos de nacionalismo ou, ainda, ser casada com um sujeito polêmico, como Pietro Maria Bardi –, há algo notável sobre a arquiteta que se relaciona à maioria de seus fracassos e sucessos: Lina não seguiu padrões, modelos prontos e modismos, nunca escolheu os caminhos fáceis e não hesitou em experimentar, subverter e ir contra os discursos hegemônicos na política ou na cultura. Sem se enquadrar – mesmo dentro do modernismo ou da esquerda –, ela fez da arquitetura sua arma para a transformação do mundo em um lugar mais igualitário e “humano”. Incomodou e por isso pagou preços, mas deixou, ao fim, um valioso legado para a arquitetura e para o País.

“Hoje as pessoas veem a obra dela com certa esperança, com grande frescor, algo que não houve à época”, diz Zeuler Lima, professor da Washington University em Saint Louis (EUA) e autor de extensa pesquisa sobre Lina. “O discurso modernista também não abria espaço para certos experimentos, e acho que a obra dela foi bastante experimental, não só do ponto de vista tecnológico, prático, mas também na maneira como ela pensava.” O pesquisador costuma dizer que Lina foi uma arquiteta moderna, mas não modernista, já que não perseguia uma linguagem específica nem seguia determinadas regras formais em sua produção – ao contrário, por exemplo, de outros grandes, como Oscar Niemeyer. “A Lina constrói com tijolo, concreto, ferro, pedra, barro, palha, com qualquer tipo de coisa”, diz o arquiteto André Vainer, que trabalhou com Lina por cerca de 13 anos, entre 1977 e 1992. “Você olha a cobertura da Casa do Benin [Salvador, 1987], de barro, e compara com o Masp [São Paulo, 1957–1968], são coisas diametralmente opostas, e isso é um sinal de liberdade enorme, de abertura para projetar.”

Construir sem regras técnicas e formais não era algo gratuito, mas parte de uma concepção de que o arquiteto deve entender os contextos sociais e humanos de cada local para poder projetar. Para Lina, cada caso era um caso, e a arquitetura deveria ter como protagonista o ser humano, não o espaço, como ela mesma disse certa vez. “Ela olhava o espaço não como os arquitetos geralmente definem, que é um espaço vazio cartesiano geométrico, mas como os antropólogos definem, que é o espaço vivido”, diz Lima. “Iniciava um projeto com o que ela tinha, seus princípios, mas recebia do mundo e das situações, e esse diálogo criava-se na própria obra.” Quando, num fim de semana, foi pela primeira vez à velha fabrica instalada no bairro paulistano da Pompeia – que seria transformada em uma das sedes do Serviço Social do Comércio (Sesc) – e viu famílias comendo e conversando, com seus filhos brincando, Lina afirmou: “É essa a atmosfera que quero manter aqui”. Nesse sentido, diz Vainer, “a Lina representa um tipo de arquitetura que tem um respaldo com a realidade muito grande, o que é raro hoje. Ela sempre trabalhava a partir de ideias que não eram de arquitetura, mas de relacionamento humano, de sociedade, de justiça entre os homens e de comportamento”.

Se não teve tantas obras construídas, Lina foi incansável em sua produção em diferentes áreas. Foi também designer, cenógrafa, editora de revistas, curadora de museus e exposições e até “estilista” – chegou a desenhar roupas e joias, principalmente nos primeiros anos no Brasil. Mas, na verdade, tudo para ela era arquitetura. As coisas se misturavam, de modo híbrido, e tudo estava dentro de um jeito maior de pensar a profissão, o mundo e o ser humano dentro dele. “Arquitetura, para mim, é ver um velhinho, ou uma criança, com um prato cheio de comida atravessando elegantemente o espaço do nosso restaurante à procura de um lugar para se sentar, numa mesa coletiva”, disse certa vez no Sesc Pompeia. Lina trazia de sua formação em Roma, influenciada pelo professor Gustavo Giovannoni, uma ideia do “arquiteto total”. “Para ela, o arquiteto deve vestir a ‘pele do lobo’: ser cozinheiro para projetar uma boa cozinha, ser aluno e professor para projetar uma boa escola, ser ator e espectador para projetar um bom teatro”, escreve Marcelo Ferraz, arquiteto que trabalhou por 15 anos com Lina.

Para poder se propor a fazer uma arquitetura tão diversa e experimental e conseguir transitar com tamanho êxito por variados campos do conhecimento, ainda mais sendo mulher em meados do século XX, Lina precisava de conhecimentos e ferramentas poderosos. E os tinha, como relembra Vainer: “Uma capacidade de desenho e de síntese impressionante, um entendimento da história da arquitetura, uma postura ideológica muito bem definida e construída e uma postura de liberdade”. Para entender um pouco como isso foi criado, é preciso voltar à vida de Lina desde os primeiros tempos.

Os anos de infância e juventude de Achillina Bo (nome de batismo) na Itália não transcorreram em período tranquilo da história do país. Muito pelo contrário. Se a Primeira Guerra Mundial (1914–1918) acabou quando ela tinha apenas quatro anos, a ascensão do nazifascismo e a tensão do período entreguerras foram vividas de perto pela garota, que, em seus anos de formação, já demonstrava talento excepcional para a pintura e o desenho.

Após se formar na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma, em 1939, Lina mudou-se para Milão e foi trabalhar no escritório do célebre arquiteto Gió Ponti. Enquanto aprendia com a prática diária da profissão, Lina logo teve que lidar com a eclosão da guerra, o que a marcou de modo profundo. “Entre bombas e metralhadoras, fiz um ponto da situação: importante era sobreviver, de preferência incólume. Mas como? Senti que o único caminho era o da objetividade e racionalidade, um caminho terrivelmente difícil quando a maioria opta pelo ‘desencanto literário e nostálgico’. Sentia que o mundo podia ser salvo, mudado para melhor, que essa era a única tarefa digna de ser vivida. (...) Entrei na Resistência, com o Partido Comunista clandestino.” Em período pouco propício para a arquitetura – quando prevalecia a destruição, não a construção –, Lina intensificou o trabalho como ilustradora de revistas e jornais e como editora. Foi também aí que assimilou algumas das bases do que seria sua arquitetura até o fim da vida. “Quando as bombas demoliam sem piedade a obra e a obra [sic] do homem, compreendemos que a casa deve ser para a ‘vida’ do homem, deve servir, deve consolar, e não mostrar, numa exibição teatral, as vaidades inúteis do espírito humano. A guerra destruiu os mitos dos ‘monumentos’. Também na casa. (...) Os móveis devem ‘servir’, as cadeiras para sentar, as mesas para comer, as poltronas para ler e repousar, as camas para dormir, e a casa assim não será um lar eterno e terrível, mas uma aliada do homem, ágil e serviçal, e que pode, como o homem, morrer.”

Após chegar ao Rio de Janeiro, em 1946, Lina e Pietro (marchand, crítico de arte e jornalista) foram convidados por Assis Chateaubriand, magnata das comunicações, a ficar no Brasil para criar aqui um museu de arte. Encantada com o novo mundo, terra onde as coisas poderiam florescer livres das amarras do passado – feudal, monárquico, burguês ou de grandes guerras –, Lina convenceu Bardi a ficar. No Museu de Arte instalado na rua 7 de Abril, em São Paulo (sede do grupo Diários Associados, controlado por Chateaubriand), onde o excepcional acervo trazido pelo marido foi acomodado, Lina começou a desenvolver suas primeiras ideias de museu e expografia, que radicalizadas culminaram nos polêmicos cavaletes de vidro do Masp, hoje brutalmente banidos do local. O museu não deveria ser um recanto de memória, um túmulo obsoleto ou um depósito de obras humanas, dizia Lina, mas um lugar vivo e dinâmico, onde devem entrar “luz e ar puro”. Mais do que isso, o museu deveria ser popular, voltado a todos, em uma concepção que pautou todos os seus projetos para espaços coletivos até o fim da vida. “Tirar do museu o ar de igreja, tirar dos quadros a ‘aura’ para apresentar a obra de arte como um trabalho, altamente qualificado, mas trabalho; apresentá-lo de modo que possa ser compreendido pelos não iniciados”, escreveu Lina certa vez.

Inédito: a prisão preventiva de Lina revogada
Após a experiência no museu, para o qual também projetou uma série de móveis, e a criação da revista Habitat, Lina teve sua primeira obra construída em 1951, mesmo ano em que se naturalizou brasileira. A Casa de Vidro, erguida no bairro paulistano do Morumbi, residência construída para morar com Pietro, trazia ainda grande influência da arquitetura racionalista europeia, com a qual Lina tinha tido mais contato até ali. Após ser recusada – em concurso anulado – para dar aula na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo e com o projeto do Masp, construído na avenida Paulista, já em curso, Lina viajou para sua primeira grande estada na Bahia, o que representa talvez a grande transformação em suas ideias e obra.

Convidada para dar um curso e, posteriormente, criar o Museu de Arte Moderna da Bahia, no teatro Castro Alves, a arquiteta entrou em contato com outro Brasil, com a cultura popular e com realidades que desconhecia em São Paulo e no Rio. Lá também projetou a restauração do Solar do Unhão, um importante conjunto arquitetônico de Salvador, e conheceu o cineasta Glauber Rocha, o etnólogo Pierre Verger e outros importantes intelectuais.

Em 1964, de volta a São Paulo, já com as tensões geradas pelo golpe militar, Lina continuou tocando as obras do Masp, inaugurado finalmente em 1968. No entanto, mais engajada com a contracultura e com a luta contra a ditadura, Lina passou a apoiar a guerrilha nos chamados anos de chumbo, num capítulo pouco conhecido de sua vida. Sabe-se que a arquiteta sediou em sua casa reuniões da Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo de Carlos Marighella, e foi perseguida pelos agentes da repressão. Com os bons contatos que tinha, principalmente o apoio do marido – homem bem relacionado e não engajado na luta política –, Lina se exilou na Itália por cerca de uma ano, enquanto um processo de prisão corria na Justiça Militar brasileira. Lina voltou em 1971, quando os militares revogaram sua prisão preventiva (imagem ao lado). A posição política da arquiteta, aparentemente bastante à esquerda e engajada quando se analisam episódios como esse, é relativizada por alguns pesquisadores de sua vida, que enxergam uma série de contradições em suas posições ao longo da vida. Lina foi amiga de figuras conservadoras e trabalhou com políticos de direita em certos momentos, ao mesmo tempo em que foi próxima de artistas libertários e chegou a afirmar, mais de uma vez, ser “stalinista”.

Sesc Pompéia, SP: espaço público igualitário e democrático 
“É uma pessoa muito complexa”, diz Vainer. “Às vezes eu fico tentando enquadrá-la, mas a verdade é que não dá. Quando ela dizia que era ‘stalinista’, isso estava muito mais ligado ao papel que Stalin teve durante a Segunda Guerra Mundial, que possibilitou que os Aliados vencessem os nazifascistas, do que a qualquer outro sentido atribuído ao termo, como os relacionados a expurgos, matanças. Ela era mais ligada a uma esquerda mais moderna, desligada do ‘partidão’, da União Soviética. Era heterogênea.” O documento da revogação do pedido de prisão na época da ditadura , por exemplo, foi dado por Lina à Vainer e Ferraz nos anos 1980, em uma pastinha que continha também uma foto de Che Guevara e outra de Lenin. “Ela tinha uma vida burguesa, afinal o Bardi tinha muito dinheiro”, diz Vainer. “E por isso também fez gratuitamente os projetos do Masp e da Igreja de Uberlândia. E acho que isso é também uma espécie de distribuição de renda, uma postura socialista de certa maneira. Algo como: ‘Eu não preciso desse dinheiro, mas quero doar meu conhecimento’.” Seja como for, com suas contradições e coerências – Lina também gostava de chocar, o que deve ser levado em conta –, o fato é que sua arquitetura sempre foi de propósito social, acessível e humanizada. O Sesc Pompeia, para o qual a arquiteta foi chamada após longos anos “colocada de escanteio” pelo poder político e também pela arquitetura dominante, talvez seja a experiência mais bem-sucedida de Lina no sentido de utilizar a arquitetura para criar um espaço democrático e igualitário. Nos anos seguintes, entre 1986 e 1990, já bastante madura e calejada, Lina pôde, em seu segundo período na Bahia, fazer uma série de projetos, como Casa do Benin, Casa do Olodum e Ladeira da Misericórdia – o qual viu ser abandonado e parcialmente destruído ainda em vida. Ali levou ao máximo sua experiência como arquiteta-antropóloga, se assim podemos dizer, investigando e vivenciando intensamente a cultura popular baiana e afro-brasileira.

“Lina tinha um grande idealismo. E isso é diferente de utopia, pois era um idealismo de pensar não o impossível, mas o possível. Pensar um futuro melhor não abstratamente, mas no que existe, no aqui e no agora”, diz Lima. “Ela era uma pessoa extremamente generosa com a arquitetura, com a ideia de que a arquitetura tem um propósito e que ele tem que ser social, humano”, conclui. Com a visão de alguém que conviveu de perto por tanto tempo, com uma experiência não só profissional, mas afetiva e de amizade, Vainer ressalta que a generosidade ia para muito além da arquitetura. “Tanto que ela deu para mim e para o Ferraz isso tudo que temos. Ela nunca regulou conhecimento, sempre nos ensinou, exigiu que a gente tivesse uma postura em relação ao trabalho, às ideias. Quando a gente se conheceu, ela tinha 63 anos, eu 23 e o Ferraz, 22. E acho que ela pensou: ‘Vou pegar esses dois caras, porque eu preciso de alguém para fazer os desenhos e tal, mas também vou pegar para ensinar’.”

Em tempos de arquitetura monumental e extremamente cara, por vezes pouco conectada às realidades e contextos locais, Lina ressurge como outro modo possível de se pensar e fazer. Se isso ocorre um tanto tardiamente, o que importa é que a arquiteta é cada vez mais lembrada e difundida, especialmente no ano de seu centenário. “A obra da Lina não era como essa arquitetura ‘do espetáculo’, que é basicamente um exercício de técnica e virtuosismo, tão distante da realidade do homem”, diz Vainer, referindo-se a uma arquitetura de obras faraônicas que predominou nos anos 1990 e 2000. Na mesma linha, Lima conclui: “A arquitetura de Lina é espetacular, não é ‘do espetáculo’. É de propósito à vida”.

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Marcos Grinspum Ferraz, jornalista e saxofonista da banda Trupe Chá de Boldo mantém a coluna mensal Verbo Sonoro, sobre cultura, música e afins. Crédito da imagem de abertura: Arquivo Joaquim Guedes

Vai sim


por Júnia Puglia  ilustração Fernando Vianna

Eita 2014 da moléstia! Não passaram três dias sem alguma notícia trágica. Quantas bruxas precisam estar à solta pra fazer tamanho estrago? Já aprontaram de um tudo, desembestadas, mirando a torto e a mais torto. No meio do ano, quando a cota de maldades me parecia cumprida, considerei que 2014 estava bom de acabar, mas não, ele insistiu, e ainda teve muito mais. Sobrou até pro Chespirito, o querido Chaves do pessoal da geração seguinte.

Estar vivo ainda é a única condição indispensável para se morrer, mas que urgência foi essa que apareceu na produção? E no atacado, valhamedeus! Vamos parando aí, bruxaiada! Voltem a se ocupar com poções, maus olhados, chuvas, raios e trovões, voos de vassoura turbinada, servicinhos leves. Ou, melhor ainda, tirem umas férias em Júpiter ou Plutão, enquanto a gente aqui descansa um bocado dessa trabalheira de vocês.

Bruxas que se prezam estão sempre acompanhadas de urubus, que adoram uma teoria conspiratória destrambelhada, um comentário ferino sobre o que não entendem, uma matéria venenosa no blog político. Perdem amigos e a compostura, mas não perdem o comentário e o veneno. Em ano de eleição, então, se esbaldam. Teve de sobra, não é?

Na era dos retratos instantâneos, rebatizados de selfies, e das redes sociais, a gente está o tempo todo na berlinda, ainda que longe de ocupar ou mesmo aspirar a ocupar algum degrau na escala das celebridades. Até para tomar um café no boteco tem que ter cuidado. Vai que alguma câmera pouco amiga te pilha meio caidinha, antes das oito da manhã, ou com pelos de dois milímetros à mostra nas axilas, e pronto. Sua reputação de coroa que encara mais alguns caldos vai para o vinagre.

Mas não tem nada não, moçada! O ano finalmente está se despedindo, exausto, quase se arrastando, depois de segurar até campanha política com tragédia no pacote, além de um rebuliço danado no cenário institucional investigativo corruptivo. O clima de fim de ano já se instalou. Festas e comilanças na agenda, com os personagens, cardápios e piadas de sempre. A confraternização corporativa é inescapável, à base de cerveja morna, vinho no copo de plástico, champanhe duvidoso, perus, chesters e companhias aladas e assadas. É hora de celebrar. Porque está demorando um bocado, mas 2014 vai embora, ah se vai!

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Bar do Elvis

por Carlos Conte*

Mais uma crônica de bar. Na verdade, um ex-bar: depois da morte do Vavá, foi demolido e se não me engano virou estacionamento. Vavá era dono de bar à moda antiga. Jaleco branco, cabelos igualmente brancos e meio amarelados, metodicamente penteados para trás e fixados com gel, magro, alto, fã do Elvis. Tão fã que muita gente chamava o lugar de bar do Elvis: um bar temático numa época em que não se falava em bares temáticos. Ali era parada obrigatória do bloco de carnaval Vai-Quem-Quer.

O lugar era bem estreito, pequeno, com um longo balcão dividindo o salão em duas partes desde a porta até os fundos, onde ficava o banheiro. As paredes eram forradas de objetos do rei: cartazes, quadros, discos. Na TV, sempre estava passando algum vídeo do Elvis, e me lembro de ter visto inteiro o show que ele fez no Havaí nos anos 70: o Elvis de colar havaiano usando aquelas roupas coloridas bregas que eu nunca entendi direito, e que são a sua marca registrada, tanto que se você entrar em qualquer loja de fantasia e pedir uma do Elvis vão lhe trazer a versão azul ou dourada de um macacão, além de umas costeletas postiças. Eu sei porque meu pai uma vez foi de Elvis numa festa. Eu estava de gladiador. Uma dupla realmente incrível.

Ali no bar do Elvis tinha umas figuras carimbadas. Todo bar tem. Sempre estava lá um velho barbudo que eu e o Dudu apelidamos só entre nós de Velho Marinheiro, por causa da boininha na cabeça. Uma vez, o Velho Marinheiro dormiu no balcão, e logo em seguida as pessoas começaram a ver uma poça de mijo crescendo embaixo dele, formando uma represa de mijo no chão do bar! Sonhando estar diante de uma privada ou uma árvore, o Velho simplesmente tirou pra fora e começou a fazer ali mesmo. Mas não foi de sacanagem. O Velho, na verdade, era um tipo muito interessante. Tinha estilo. Mijou de bêbado, mas mijou com estilo, dormindo, a braguilha discretamente aberta, apoiando-se no balcão. Depois, como sempre, alguém chamou o táxi, pôs o Velho lá, e o Vavá telefonou para a mulher avisando que o marido bebum estava a caminho.

Num texto chamado “Supermarket”, eu anunciei, bem de passagem, a história que eu vou contar agora. Na verdade foi o irmão mais novo João, e não o próprio Vavá, que uma vez puxou papo comigo e me revelou o verdadeiro motivo da morte do rei do rock. João era tão fanático pelo Elvis quanto o Vavá. Acho que nesse dia o Galo estava tomando cerveja comigo.

– Vou contar uma coisa – disse o João, como se viesse dar uma notícia quente. –Infelizmente o Elvis morreu.

– Morreu sim – respondi.

– Pois tem gente que acha que ele não morreu, mas que ele fugiu, sem deixar pistas! Hoje vive escondido em algum lugar, protegido por uma tal lei de proteção a testemunhas ou alguma coisa do tipo. Mas isso é coisa de fanático! Eu não caio nessa conversa! Com tanto paparazzi, já teriam pegado ele de sunga numa praia do Caribe, você não acha?

Concordei com o João: Elvis estava morto.

– “Elvis não morreu” é uma isca pra manter as lojas vendendo – eu disse, com ares de sociólogo de boteco.

– Dizem que foi droga, mas não foi droga.

– Isso eu não sabia, João. Achei que tinha sido abuso de calmante ou...

– Ele morreu cagando.

– Sério?

– Sério. Acharam o corpo caído no chão do banheiro, mas ele estava sentado na privada fazendo força quando a veia da cabeça se rompeu.

– Quê?!

– Ele só comia lanche do Mc Donald’s! Gente assim não dura. Falta fibra no organismo e aí prende tudo. O Elvis fez tanta força que a veia não aguentou! E aí, você sabe, a versão oficial não vai ser essa, por respeito à imagem do ídolo etc. e tal... mas a realidade pouca gente sabe. Eu sei porque estudei.

– Leu numa biografia?

– Nenhuma biografia vai falar isso porque todos foram muito bem pagos para calar o bico. Você mesmo disse: as lojas têm que continuar vendendo camisas com a cara do rei. E assim a banda toca. Você sabe...

Então, calou-se. Enquanto passava flanela na TV, seus olhos fixaram a tela: ali estava Elvis cantando Love Me Tender. Seu rosto, cada vez mais próximo do rosto do Rei, iluminou-se, e em movimentos circulares João passava o pano na tela como se fizesse carinho no jovem Elvis que cantava “Ame-me com ternura / Ame-me com doçura / Nunca me deixe partir”. Da escatologia às lágrimas: João começou a chorar. Aí me dei conta de que o assunto era sério. Resolvi não perguntar mais nada. É duro falar da morte de um ídolo.

“Então o Rei morreu no lugar apropriado: o trono!”. Ia fazer essa piada mas felizmente desisti. Era hora de chorar.

* * * * * * *

Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Imagem: Futepoca

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Eu odeio guarda-chuva

por Maria Shirts*

A minha vida ficou muito melhor quando eu aceitei o fato de que guarda-chuvas são inúteis. Para não dizer que não servem para absolutamente nada, me limito a concordar que só ajudam para proteger cabelos e ombros, uma funcionalidade pouco interessante para a inconveniência que geram.

Se as pessoas aceitassem tomar uma chuvinha, ou esperassem as tempestades passarem debaixo dos toldos de boteco, não encharcariam os ônibus ou quaisquer outros estabelecimentos que oferecem refúgio àqueles que notam, no meio do caminho, que o acessório não dá conta do recado. (Quem nunca se viu entrando num café para esperar o mau tempo passar, com ou sem a porcaria do guarda-chuva?).

Além de molharem o chão – podendo, inclusive, causar um acidente –, são pesados, caros e ocupam demasiado espaço. Não bastassem todas essas inconveniências, me parece que foram feitos para serem esquecidos. Naturalmente: você chega a algum lugar, enquanto chove, recosta o trambolho na parede para se livrar logo e, quando vai embora, esquece de resgatá-lo, porque a chuva quase sempre cessa antes da partida (principalmente quando falamos em chuvas tropicais).

Lembro que esse era um motivo de alguma discórdia na residência Shirts. Meu pai, gringo bem humorado com um quê consumista, comprava cinco guarda-chuvas por semana na época das tempestades tropicais, não só para fazer piada ou justiça ao physique du role do bom americano, mas também porque eu, filha ingrata, perdia todos eles – um por dia. A época de chuvas parou, mas painho continuava a comprá-los para não perder a piada, falando que na verdade eles estavam se reproduzindo na porta de casa.

Outros parentes me reprimiram pela falta de atenção. Repetidas vezes ouvi, de minha vó, que eu tinha sumido com todas as “sombrinhas” da sua casa – algo tão condenável que só perde para o sequestro de tupperwares.

Em suma, resolvi abdicar do acessório. Mas confesso que achei garboso vê-lo em várias formas e cores pelas ruas de Belém do Pará, onde são usados como refúgio do Sol – aí sim, com uma utilidade respeitável.

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Maria Shirts, internacionalista e pedestrianista, mantém a coluna Transeunte Urbana.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O encantador de palavras

por Celso Vicenzi*

Constam nos registros que Manoel Wenceslau Leite de Barros, que se assinava Manoel de Barros, faleceu no dia 13 de novembro de 2014, aos 97 anos. Posto que tudo é finito e um dia completa o seu ciclo, isso é o que menos importa. O essencial é que semeou palavras que brotam e rebrotam a cada nova leitura. Sabia que a vida tem hora marcada para terminar. E não perdeu tempo. No documentário “Só dez por cento é mentira”, lançado por Pedro Cezar em 2008, o poeta, que construiu uma obra exuberante sobre as “grandezas do ínfimo”, resumiu, pleno de consciência: “A gente nasce, cresce, amadurece, envelhece, morre. Pra não morrer, tem que amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste”.

Ciente de que “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios”, estabeleceu para si uma outra rotina. “Não aguento ser apenas um sujeito que abre / portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que / compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, / que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. / Perdoai. / Mas eu preciso ser Outros. / Eu penso renovar o homem usando borboletas.”

Poetas, escritores, músicos, artistas de modo geral são alguns dos que procuram “amarrar o tempo no poste”. Dão algum sentido à vida para que não seja apenas a soma de esforços pela sobrevivência – e, em muitos casos, a busca desenfreada da opulência, com apetites insaciáveis que destroem a natureza, sem que tanto consumo e riqueza sejam capazes de preencher os buracos da alma e dar um pouco de plenitude ao tempo que vai do nascimento à morte.

Manoel de Barros, desde cedo, foi enfeitiçado pelo verbo que “delira”. E se tornou “encantador de palavras”. Fez desse feitiço o seu ofício, não sem antes esbarrar com todas as exigências de uma vida que pede muito mais utilidades do que poesias “sobre nada”. Ele só “queria crescer pra passarinho” e essa sabedoria o levou a roçar o infinito e devolver o ínfimo grão de pó à poeira interestelar.

Foi o poeta que iluminou “o silêncio das coisas anônimas”, desconstruiu estruturas para se aproximar da “infância da língua” com o intuito de “causar distúrbios no idioma”. Tanta originalidade e beleza acabou por criar um “idioleto manoelês archaico”. Uma nova forma de “desver o mundo”. É uma poesia que se faz de “inutensílios”, coisas, objetos e resíduos desprezados no cotidiano, tudo “o que pode ser carregado como papel pelo vento”. E tudo o que está na natureza: aves, árvores, rãs, lesmas, musgo, limo, água, barro, bichos e gentes, de todos os tipos, principalmente como Bernardo, dono de um acervo que incluía “um martelo de pregar água” e um “guindaste de levantar vento”.

A fábrica de palavras de Manoel de Barros vai do chão ao céu e contempla tudo que se move e respira, e presta atenção – mais que isso, louvação! – às miudezas de seres e objetos que compõem a paisagem dos dias e noites de uma vida a contemplar o infinito ao seu redor.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.
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