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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

Tucanos a solta!

Dia 13 último, o que já era sabido e evidente se confirmou com um “sou” de Geraldo Alckmin, atual governador de São Paulo. Isso mostra que o PSDB já começa, sorrateiramente, a mexer suas peças dentro do próprio partido. No programa “cult” da TV Cultura, Roda Viva, Alckmin estrategicamente começou a fazer sua campanha para encabeçar o seu nome no PSDB para as eleições de 2006. Entre outras, disse que a política de juros está errada e o governo Lula pode ser resumido a uma seguida perda de oportunidades, por não ter levado adiante nenhuma das reformas ou outras promessas de campanha. A investida de Alckmin aconteceu um dia antes da pesquisa Ibope revelar, pela primeira vez, que Serra, o outro do PSDB, ultrapassaria Lula no primeiro turno, em uma das simulações de intenções de votos para as eleições do ano que vem. Segundo a CNI/Ibope, Lula caiu dois pontos percentuais em relação à última pesquisa, passando de 33 por cento para 31, enquanto o tucano José Serra avança sete pontos e sobe de 30 por cento para 37 por cento. Sobre a disputa com Serra, Alckmin respondeu que “Ninguém deve ser excluído por W. O.” “Não posso responder pelo prefeito”, repetiu. Se levarmos em conta que o PSDB governou São Paulo por 12 anos e nesse período não resolveu o problema da Febem, sucateou a Ciência e a Tecnologia e usou e abusou do apóio da imprensa paulista para encobrir seus erros, vale muito a pena fazer uma pesquisa e uma varredura nesses dois figurões e nas suas atitudes antes de qualquer posicionamento. Se eu fosse apostar, apostaria em Geraldo Alckmin como o candidato do PSDB. Primeiro porque ele tem a chave do cofre – São Paulo e, segundo, Serra “queimaria seu filme” se largasse à prefeitura em tão pouco tempo (lembre-se que ele assinou um documento dizendo que não deixaria a prefeitura para sair candidato à presidência). Se o fizer, terá traído sua assinatura e a população que o elegeu, já que palavra de político não tem credibilidade.

Thiago Domenici é jornalista

terça-feira, 29 de novembro de 2005

Videofestival São Carlos 2005

Alô, galera, pra quem não sabe o documentário sobre a Ética na imprensa brasileira e as lições do Caso Escola Base ganhou Menção Honrosa concedida pelo Júri de Premiação do III Vídeo Festival de São Carlos 2005, realizado pelo Sesc São Carlos e pela Secretaria de Educação e Cultura/Departamento de Artes e Cultura e da Fundação Pró-Memória. Foram inscritos 265 trabalhos de 41 cidades e 15 Estados.
Estou muito feliz, contente, honrado, surpreso e queria agradecer aqui meus companheiros Paulo e Mineiro pelo feito. Quem tiver interesse no vídeo sobre a Escola Base basta mandar um e-mail pra mim no thiagodomenici@carosamigos.com.br
É isso aí, galera.
Parabéns: Videoclipe - "Hell", Felipe QuéretteFicção - "Sem Ana", Rafael BarionAnimaç ão - "A morte do Rei de Barro", de Marcos BucciniDocumentário - " Ao vencedor, o capim", de Carol AraújoOs vencedores foram escolhidos pelo Júri de Premiação:André Sturm (cineasta), Di Moretti (roteirista) e André Klotzel (cineasta,sócio da Pandora filmes).Prêmio Júri Popular de São Carlos - "Neguinha e Kika", de Luciano VidigalEscolhido pelo voto popular sem distinção de categoria.As apresentações dos vídeos selecionados tiveram um público de aproximadamente 1.500 pessoas.Tivemos ainda 2 Menções Honrosas concedidas pelo Júri de Seleção:" Homens pequenos no ocaso projetam grandes sombras", de Tim Gerlach" Chico Lee 2: A Fórmula Fênix", de Allan dos SantosE 1 Menção Honrosa concedida pelo Júri de Premiação:" Ética na imprensa na década de 90 e as lições do caso Escola Base" de Gustavo Brigatto,Paulo R. Ranieri e Thiago Domenici.Parabéns aos vencedores!Agradecemos à todos, desde as inscrições à participação no evento!Até a próxima edição!Vídeofestival São Carlos 2005 Central de Atendimento(0XX16) 3372-7555www.sescsp.org.brvideofestival@scarlos.sescsp.org.br

quinta-feira, 24 de novembro de 2005

O Almoço de Natal

O Almoço de Natal

Naquele tempo em toda casa havia um galinheiro. Bendito galinheiro. E um porão escuro e úmido. Porão abençoado.
A iniciação amorosa de todo menino era feita onde e com quem você já sabe.
Éramos dois irmãos, cada um tinha a sua namorada. E cuidávamos de agradá-las com água fresquinha, folha de couve, punhado extra de milho.
Primeira vez só consegui atraí-la ao navio pirata & mina de ouro & nave espacial com migalhas de pão, nova Mariazinha perdida no caminho de casa. Já nas outras, bastava eu me curvar para adentrá-lo, ela me seguia a toda pressa em passo miudinho de gueixa.
Quando ela chegava fazia-se a luz na caverna. De suas tocas, aranhas e lagartixas espirravam as ca­be­ci­nhas para vê-la.
Era sentimento mútuo, fonte de surpresas, de­lí­cias,­ arrepios de prazer. Ai, olhinho buliçoso que não piscava, sem pálpebra... para melhor te seduzir. De volta da escola, eu corria para o quintal e, ao me ver, ela abria as asas jubilosa ao meu encontro. Enquanto eu penava com as lições de gramática, para me consolar ciscava e arrulhava sob a janela.
A tragédia iminente era o famoso almoço de Natal. No dia fatídico seria a vez da tua bem-querida — a mais gordinha e apetitosa do terreiro. E, angústia maior, os carrascos alternados no altar do sacrifício você imagina quais eram.
Três, os métodos clássicos: golpe certeiro de ma­chadinha no longo pescoço da mártir (sobre a bacia que aparava o sangue do molho).
Ou repuxá-lo sem dó finalizando no estalido se­co­ — ao soltá-la, sem saber que estava morta, en­saia­va uns tantos passos bêbados, antes de se esvair aos teus pés...
Ou, ainda, girá-lo com força até que ouvisse um crack!
Os sons fatídicos — o golpe, o estalo, o crack — eram as três pancadas da desgraça à tua porta.
Afinal me coube — ai de mim, maldito — abre­viar os dias felizes da prometida do meu coraçãozinho de 7 anos. Nem pensar em desobedecer às ordens de Mamãe — atrás dela se levantava o poder maior desse­ Pai dos Pais, ditador trovejante de prêmios e castigos.
Cogitei de imolar não a eleita dos meus suspiros e, sim, a do meu irmão menor, tanto eram parecidas, gêmeas da mesma ninhada. Decerto, feroz na defesa do seu próprio amor, ele denunciaria aos berros a minha fraude. E eu sonhava, dormindo e desperto, com a bicicleta azul que, menino bem-comportado, ganharia no Ano-Novo.
Aqui a mão ponho na minha boca. Sou o túmulo do sofrimento humano.
E o crime foi consumado.
Para surpresa familiar (e minha, mais que de todos), não fui o único glutão a recusar com horror o pedaço predileto de coxa. Também ele, o caçula, se absteve de provar a noivinha inebriante ao molho pardo.
Foi a minha primeira desilusão amorosa. Ah, o coração feminino... Bem que era volúvel, ó ventoinha de penugem dourada vogando ao léu. O tempo todo me iludira, a ingrata — e com o meu próprio irmão!
Outras namoradas vieram. Da primeira você jamais esquece. O amor, essa coisa, sabe como é. Ainda hoje, dela me lembro: pequenina e trêmula nos meus braços, as macias penas arrepiadas, pipilante de prazer.­
Tudo passa, ela passou.
Era aberta enfim a temporada de caça às primas. Viva a estação das priminhas!
Dalton Trevisan do Livro Rita Ritinha Ritona, Editora Record

segunda-feira, 7 de novembro de 2005

João Cabral de Melo Neto

"...E não há melhor respostaque o espetáculo da vida:vê-la desfiar seu fio,que também se chama vida,ver a fábrica que ela mesma,teimosamente, se fabrica,vê-la brotar como há poucoem nova vida explodida;mesmo quando é assim pequenaa explosão, como a ocorrida;mesmo quando é uma explosãocomo a de há pouco, franzina;mesmo quando é a explosãode uma vida severina."
(Morte e Vida Severina)
João Cabral de Melo Neto nasceu na cidade de Recife - PE, no dia 09 de janeiro de 1920, na rua da Jaqueira (depois Leonardo Cavalcanti), segundo filho de Luiz Antônio Cabral de Melo e de Carmem Carneiro-Leão Cabral de Melo. Primo, pelo lado paterno, de Manuel Bandeira e, pelo lado materno, de Gilberto Freyre. Passa a infância em engenhos de açúcar. Primeiro no Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata, e depois nos engenhos Pacoval e Dois Irmãos, no município de Moreno.
Em 1930, com a mudança da família para Recife, inicia o curso primário no Colégio Marista. João Cabral era um amante do futebol, tendo sido campeão juvenil pelo Santa Cruz Futebol Clube em 1935.
Foi na Associação Comercial de Pernambuco, em 1937, que obteve seu primeiro emprego, tendo depois trabalhado no Departamento de Estatística do Estado. Já com 18 anos, começa a freqüentar a roda literária do Café Lafayette, que se reúne em volta de Willy Lewin e do pintor Vicente do Rego Monteiro, que regressara de Paris por causa da guerra.
Em 1940 viaja com a família para o Rio de Janeiro, onde conhece Murilo Mendes. Esse o apresenta a Carlos Drummond de Andrade e ao círculo de intelectuais que se reunia no consultório de Jorge de Lima. No ano seguinte, participa do Congresso de Poesia do Recife, ocasião em que apresenta suas Considerações sobre o poeta dormindo.
1942 marca a publicação de seu primeiro livro, Pedra do Sono. Em novembro viaja, por terra, para o Rio de Janeiro. Convocado para servir à Força Expedicionária Brasileira (FEB), é dispensado por motivo de saúde. Mas permanece no Rio, sendo aprovado em concurso e nomeado Assistente de Seleção do DASP (Departamento de Administração do Serviço Público). Freqüenta, então, os intelectuais que se reuniam no Café Amarelinho e Café Vermelhinho, no Centro do Rio de Janeiro. Publica Os três mal-amados na Revista do Brasil.
O engenheiro é publicado em 1945, em edição custeada por Augusto Frederico Schmidt. Faz concurso para a carreira diplomática, para a qual é nomeado em dezembro. Começa a trabalhar em 1946, no Departamento Cultural do Itamaraty, depois no Departamento Político e, posteriormente, na comissão de Organismos Internacionais. Em fevereiro, casa-se com Stella Maria Barbosa de Oliveira, no Rio de Janeiro. Em dezembro, nasce seu primeiro filho, Rodrigo.
É removido, em 1947, para o Consulado Geral em Barcelona, como vice-cônsul. Adquire uma pequena tipografia artesanal, com a qual publica livros de poetas brasileiros e espanhóis. Nessa prensa manual imprime Psicologia da composição. Nos dois anos seguintes ganha dois filhos: Inês e Luiz, respectivamente. Residindo na Catalunha, escreve seu ensaio sobre Joan Miró, cujo estúdio freqüenta. Miró faz publicar o ensaio com texto em português, com suas primeiras gravuras em madeira.
Removido para o Consulado Geral em Londres, em 1950, publica O cão sem plumas. Dois anos depois retorna ao Brasil para responder por inquérito onde é acusado de subversão. Escreve o livro O rio, em 1953, com o qual recebe o Prêmio José de Anchieta do IV Centenário de São Paulo (em 1954). É colocado em disponibilidade pelo Itamaraty, sem rendimentos, enquanto responde ao inquérito, período em que trabalha como secretário de redação do Jornal A Vanguarda, dirigido por Joel Silveira. Arquivado o inquérito policial, a pedido do promotor público, vai para Pernambuco com a família. Lá, é recebido em sessão solene pela Câmara Municipal do Recife.
Em 1954 é convidado a participar do Congresso Internacional de Escritores, em São Paulo. Participa também do Congresso Brasileiro de Poesia, reunido na mesma época. A Editora Orfeu publica seus Poemas Reunidos. Reintegrado à carreira diplomática pelo Supremo Tribunal Federal, passa a trabalhar no Departamento Cultural do Itamaraty.
Duas alegrias em 1955: o nascimento de sua filha Isabel e o recebimento do Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras. A Editora José Olympio publica, em 1956, Duas águas, volume que reúne seus livros anteriores e os inéditos: Morte e vida severina, Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina. Removido para Barcelona, como cônsul adjunto, vai com a missão de fazer pesquisas históricas no Arquivo das Índias de Sevilha, onde passa a residir.
Em 1958 é removido para o Consulado Geral em Marselha. Recebe o prêmio de melhor autor no Festival de Teatro do Estudante, realizado no Recife. Publica em Lisboa seu livro Quaderna, em 1960. É removido para Madri, como primeiro secretário da embaixada. Publica, em Madri, Dois parlamentos.
Em 1961 é nomeado chefe de gabinete do ministro da Agricultura, Romero Cabral da Costa, e passa a residir em Brasília. Com o fim do governo Jânio Quadros, poucos meses depois, é removido outra vez para a embaixada em Madri. A Editora do Autor, de Rubem Braga e Fernando Sabino, publica Terceira feira, livro que reúne Quaderna, Dois parlamentos, ainda inéditos no Brasil, e um novo livro: Serial.
Com a mudança do consulado brasileiro de Cádiz para Sevilha, João Cabral muda-se para essa cidade, onde reside pela segunda vez. Continuando seu vai-e-vem pelo mundo, em 1964 é removido como conselheiro para a Delegação do Brasil junto às Nações Unidas, em Genebra. Nesse ano nasce seu quinto filho, João.
Como ministro conselheiro, em 1966, muda-se para Berna. O Teatro da Universidade Católica de São Paulo produz o auto Morte e Vida Severina, com música de Chico Buarque de Holanda, primeiro encenado em várias cidades brasileiras e depois no Festival de Nancy, no Théatre des Nations, em Paris e, posteriormente, em Lisboa, Coimbra e Porto. Em Nancy recebe o prêmio de Melhor Autor Vivo do Festival. Publica A educação pela pedra, que recebe os prêmios Jabuti; da União de Escritores de São Paulo; Luisa Cláudio de Souza, do Pen Club; e o prêmio do Instituto Nacional do Livro. É designado pelo Itamaraty para representar o Brasil na Bienal de Knock-le-Zontew, na Bélgica.
1967 marca sua volta a Barcelona, como cônsul geral. No ano seguinte é publicada a primeira edição de Poesias completas. É eleito, em 15 de agosto de 1968, para a Academia Brasileira de Letras na vaga de Assis Chateaubriand. É recebido em sessão solene pela Assembléia Legislativa de Pernambuco como membro do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT).
Toma posse na Academia em 06 de maio de 1969, na cadeira número 6, sendo recebido por José Américo de Almeida. A Companhia Paulo Autran encena Morte e vida severina em diversas cidades do Brasil. É removido para a embaixada de Assunção, no Paraguai, como ministro conselheiro. Torna-se membro da Hispania Society of America e recebe a comenda da Ordem de Mérito Pernambucano.
Após três anos em Assunção, é nomeado embaixador em Dacar, no Senegal, cargo que exerce cumulativamente com o de embaixador da Mauritânia, no Mali e na Giné-Conakry.
Em 1974 é agraciado com a Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco. No ano seguinte publica Museu de Tudo, que recebe o Grande Prêmio de Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte. É agraciado com a Medalha de Humanidades do Nordeste.
Em 1976 é condecorado Grande Oficial da Ordem do Mérito do Senegal e, em 1979, como Grande Oficial da Ordem do Leão do Senegal. É nomeado embaixador em Quito, Equador e publica A escola das facas.
A convite do governador de Pernambuco, vai a Recife (em 1980) para fazer o discurso inaugural da Ordem do Mérito de Guararapes, sendo condecorado com a Grã-Cruz da Ordem. Ali é inaugurada uma exposição bibliográfica de sua obra, no Palácio do Governo de Pernambuco, organizada por Zila Mamede. Recebe a Comenda do Mérito Aeronáutico e a Grã-Cruz do Equador.
No ano seguinte vai para Honduras, como embaixador. Publica a antologia Poesia crítica.
Em 1982 é agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Vai para a cidade do Porto, em Portugal, como cônsul geral. Recebe o Prêmio Golfinho de Ouro do Estado do Rio de Janeiro. Publica Auto do frade, escrito em Tegucigalpa.
Ganha o Prêmio Moinho Recife, em 1984 e, no ano seguinte, publica os poemas de Agrestes. Nesse livro há uma sessão dedicada à morte ("A indesejada das gentes"). Em 1986 é agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Pernambuco. Sua esposa, Stella Maria, falece no Rio de Janeiro. João Cabral reassume o Consulado Geral no Porto. Casa-se em segundas núpcias com a poeta Marly de Oliveira.
Em 1987 publica Crime na Calle Relator, poemas narrativos. Recebe o prêmio da União Brasileira de Escritores. É removido para o Rio de Janeiro.
Em Recife, no ano de 1988, lança sua antologia Poemas pernambucanos. Publica, também, o segundo volume de poesias completas: Museu de tudo e depois. Recebe o Prêmio da Bienal Nestlé de Literatura pelo conjunto da obra, e o Prêmio Lily de Carvalho da ABCL, Rio de Janeiro.
Aposenta-se como embaixador em 1990 e publica Sevilha andando. É eleito para a Academia Pernambucana de Letras, da qual havia recebido, anos antes, a medalha Carneiro Vilela. Recebe os seguintes prêmios: Criadores de Cultura da Prefeitura do Recife, Luis de Camões (concedido conjuntamente pelos governos de Portugal e do Brasil), em Lisboa. É condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Judiciário e do Trabalho. A Faculdade Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro publica Primeiros Poemas.
Outros prêmios: Pedro Nava (1991) pelo livro Sevilha andando; Casa das Américas, concedido pelo Estado de São Paulo (1992); e também nesse ano o Neustadt International Prize for Literature, da Universidade de Oklahoma. Viaja a Sevilha para representar o presidente da República nas comemorações do dia 7 de Setembro, que tiveram lugar na Exposição do IV Centenário da Descoberta da América. No Pavilhão do Brasil, foi distribuída sua antologia Poemas sevilhanos, em edição especial. No Rio de Janeiro, na Casa da Espanha, recebe do embaixador espanhol a Grã-Cruz da Ordem de Isabel, a Católica.
Em 1993 recebe o Prêmio Jabuti, instituído pela Câmara Brasileira do Livro.
João Cabral era atormentado por uma dor de cabeça que não o deixava de forma alguma. Ao saber, anos atrás, que sofria de uma doença degenerativa incurável, que faria sua visão desaparecer aos poucos, o poeta anunciou que ia parar de escrever. Já em 1990, com a finalidade de ajudá-lo a vencer os males físicos e a depressão, Marly, sua segunda esposa, passa a escrever alguns textos tidos como de autoria do biografado. Conforme declarações de amigos, escreveu o discurso de agradecimento feito pelo autor ao receber o Prêmio Luis de Camões, considerado o mais importante prêmio concedido a escritores da língua portuguesa, entre outros. Foi a forma encontrada para tentar tirá-lo do estado depressivo em que se encontrava. Como não admirava a música, o autor foi perdendo também a vontade de falar ("Não tenho muito o que dizer", argumentava). Era, sem dúvida, o nosso mais forte concorrente ao prêmio Nobel, com diversas indicações dos mais variados segmentos de nossa sociedade.

sábado, 8 de outubro de 2005

Miguel de Cervantes

Em 1575, bem antes de publicar Dom Quixote, Miguel de Cervantes, que era soldado a serviço da monarquia espanhola, foi capturado por piratas berberes no norte da África. Passou cinco anos preso na Argélia. Resgatado em 1580, trabalhou como espião em Oram, uma cidade ao norte daquele país. Foi um caso típico de dublê de escritor e espião.
A história da literatura está repleta de casos como o dele. Francisco de Quevedo, John le Carré, Graham Greene, Rabelais, Voltaire, Daniel Defoe - todos eles, escritores conhecidos, também atuaram como espiões.
Por que tantos tiveram essa vida dupla? Uma explicação pode ser uma característica comum às duas atividades: o dom de observar. "O espião é, sobretudo, um observador a quem dão ordens. O escritor é um observador que se autogoverna. Mas ambos desenvolvem olhares parecidos sobre o mundo que os rodeia", afirma Fernando Martínez Laínez em Escritores e espiões - a surpreendente vida secreta de grandes nomes da literatura mundial.
Alguns escritores usaram a experiência de espião como matéria-prima da ficção. Foi o caso de Graham Greene, que trabalhou para os serviços de inteligência da Grã-Bretanha (registre-se, porém, que ele já escrevera sobre espionagem antes de ser recrutado). Outros mantiveram as duas atividades separadas. Foi o caso do próprio Cervantes, que terminou se envolvendo com a literatura porque, a certa altura, viu que não tinha jeito para a atividade secreta. Na voz de um personagem, ele diz: "Não sou muito bom para o palácio porque tenho vergonha e não sei lisonjear".

segunda-feira, 3 de outubro de 2005

Uma história do(s) terrorismo(s)

Matéria do genial Renato Pompeu, publicada em mais um especial Caros Amigos. Trata da história do terrorismo.
O terror começou como terror de Estado; o terror anti-Estado só surgiu depois. O terrorismo de Estado ainda predomina

Provocar o terror nas populações para alcançar fins políticos, militares, religiosos ou econômicos é tão antigo quanto as primeiras sociedades humanas. Haja vista que os dois satélites do planeta Marte, nome do antigo deus da guerra, são Fobos e Deimos, o Medo e o Terro, em grego, duas táticas de guerra bastante conhecidas e utilizadas ao longo de toda a história. Na Grécia antiga, o historiador militar Xenofonte já aconselhava a prática de assassínios em países potencialmente adversários, para criar pânico entre a população potencialmente inimiga. Os imperadores romanos e os padres da Inquisição da Igreja Católica Romana são bem conhecidos pelas suas atrocidades contra recalcitrantes. Nunca é demais ressaltar, além disso, que a escravidão só pôde sobreviver na Antiguidade e nas Américas coloniais por causa do regime de terror, estatal e privado, a que os escravos eram submetidos.
Mas a primeira vez em que surgiu o termo “terrorismo” foi com referência ao chamado período do Terror na Revolução Francesa de 1789. O Dicionário da Academia Francesa, na edição de 1798, assinala o termo como significando “sistema ou governo baseado no terror”. O período do Terror foi a época da Revolução Francesa em que governos ditatoriais guilhotinaram 12.000 pessoas, primeiro da direita e depois da esquerda. O terrorismo entra na linguagem, portanto, como terrorismo de Estado, que já era sua forma quase exclusiva antes de ele ser “batizado”.
Na segunda metade do século 19, o terrorismo passou também a ser praticado por individualidades e pequenos grupos, se tornando famosa a figura do incendiário, armado com uma bomba a que se chamava de “engenho infernal”. Esse terrorismo era dirigido também contra individualidades, principalmente contra autoridades e soberanos. De raiz anarquista na Europa Ocidental e Central e nos Estados Unidos, e de origem populista no Império Russo, esse terrorismo se baseava em que o assassínio de um opressor funcionaria como “ação exemplar”, desencadeando a revolta dos oprimidos. Isso, porém, nunca se verificou, apesar de terem sido mortos vários chefes de Estado, como o czar russo Alexandre II em 1881, o presidente americano William McKinley em 1901. Cumpre notar que os populistas russos que mataram o czar se orgulhavam de serem chamados de “terroristas” e como tal se apresentavam. Os terroristas direitistas agiam mais em grupos e contra membros de uma determinada população, como a Ku Klux Klan de brancos racistas dos Estados Unidos, que até meados do século 20 ainda linchavam negros.
A consagração do 1o de maio como Dia do Trabalho tem como origem um atentado em 1886, na praça Haymarket, em Chicago, EUA, quando estava havendo um comício de trabalhadores e a Polícia interveio, sendo atingida por uma bomba que matou oito policiais. Foram presos e condenados à morte oito anarquistas que não tinham nada a ver com o atentado, mas a histeria encarniçou contra eles a ira da imprensa, da opinião pública e da Justiça. Até hoje, os Estados Unidos são o único país do mundo em que o Dia do Trabalho não é comemorado a 1o de maio, e sim no primeiro fim de semana de outubro, exatamente para apagar da memória dos trabalhadores a lembrança da injusta condenação de seus líderes.
Um ato terrorista individual, entretanto, viria a desencadear a Primeira Guerra Mundial. Um estudante sérvio-bósnio de 19 anos, Gavril Princip, em junho de 1914, quando a Bósnia pertencia ao Império Austro-Húngaro, matou em Sarajevo (sempre Sarajevo!) o arquiduque austríaco Ferdinando, herdeiro do trono imperial. O objetivo de Princip era reivindicar maior liberdade para os sérvios da Bósnia, mas o que ocorreu é que a Áustria-Hungria reagiu se preparando para atacar a Sérvia independente, o que desencadeou a Primeira Guerra em toda a Europa. Vale lembrar, naturalmente, que para os sérvios Princip nunca foi um terrorista, mas um combatente pela liberdade de um povo oprimido.
Após a Revolução de Outubro na Rússia, em 1917, novamente surgiu o terrorismo de Estado, o Terror Vermelho nas áreas controladas pelos comunistas e o Terror Branco nos territórios dominados pelos czaristas. Em ambos os casos se tratava de execuções em massa dos oponentes.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista impôs o terrorismo de Estado nas regiões ocupadas e deu andamento ao Holocausto, o extermínio de milhões de judeus, ciganos, comunistas e outras pessoas. Após a Segunda Guerra, o terror passou a ser uma arma dos movimentos de libertação dos povos coloniais contra o terrorismo de Estado das potências coloniais. Ficaram famosos os atentados dos Mau-Mau no Quênia e as bombas em bares de praia freqüentados por franceses na Argélia. No entanto, às vezes esses atos de terror anticolonial eram dirigidos por uns grupos de libertação contra outros grupos de libertação seus rivais, para imporem a sua liderança.
Depois do fim do colonialismo, nos anos 1960, surgiram ações de terrorismo, como atentados, seqüestros etc., contra ditaduras e contra ocupantes estrangeiros que impunham o terror de Estado, em vários países da América Latina e nos territórios ocupados por Israel, além de na África e na Ásia em geral. Também nos países adiantados ocorreram atos de terror, às vezes pela direita (Organização do Exército Secreto, na França, contrária à independência da Argélia; atentados direitistas na Itália, assassínio do primeiro-ministro sueco Olof Palme), às vezes pela esquerda (Brigadas Vermelhas, na Itália, que entre outras coisas seqüestraram e mataram o ex-primeiro-ministro democrata-cristão Aldo Moro; grupo Baader-Meinhoff, na Alemanha; Exército de Libertação do País Basco – ETA –, na Espanha: Exército Republicano Irlandês – IRA –, no Ulster; Weather Underground e Exército Simbionês de Libertação, nos Estados Unidos; separatistas do Quebec, no Canadá). Nenhum desses grupos conseguiu avançar no cumprimento dos seus objetivos, mas houve um atentado que “deu certo”: o assassínio do almirante espanhol Carrero Blanco, que coordenava a modernização do franquismo, foi um dos fatores que contribuíram, nos anos 1970, para a redemocratização na Espanha.
Na mídia, a face mais divulgada do terror é a islâmica. Em setembro de 1970, militantes palestinos seqüestraram vários aviões e os levaram para a Jordânia, onde libertaram os passageiros, mas queimaram os aviões. Dois anos depois, nas Olimpíadas de Munique, em 1972, novamente militantes palestinos mataram onze atletas israelenses. Esse foi um dos primeiros ataques indiscriminados, isto é, não dirigido a pessoas específicas, contra ocidentais – claro que com muito maior repercussão do que os ataques indiscriminados das potências ocidentais contra os povos coloniais (só as forças belgas, no Congo, em meados dos anos 1880, mataram 6 milhões de pessoas, num terrorismo indiscriminado contra a população em geral).
A ligação do chamado terrorismo com o fundamentalismo islâmico tem como foco principal uma origem material, e não religiosa. No subsolo dos países islâmicos da Ásia estão concentradas as maiores reservas comerciais de petróleo do mundo. A ação ocidental, principalmente dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, para controlar o petróleo da região data da passagem do século 19 para o 20, primeiro pelo estabelecimento do colonialismo direto e, depois da Segunda Guerra Mundial, por intervenções militares nos países recém-independentes que tentavam estabelecer regimes nacionalistas e estatistas, como o Irã do primeiro-ministro Mossadegh nos anos 1950.
Com o fracasso do nacionalismo e do estatismo que acompanhou mundialmente a derrocada geral do socialismo e do comunismo e com a ofensiva mundial do neoliberalismo, se criou um vácuo que passou a ser preenchido, no enfrentamento contra o Ocidente, pelo fundamentalismo islâmico, que alcançou sua maior vitória com o triunfo da revolução islâmica no próprio Irã, em 1979. Além disso, a aliança indissolúvel entre os Estados Unidos e Israel se somou à disputa pelo controle do petróleo para acirrar a campanha islâmica contra o Ocidente, agora com aspectos religiosos profundamente entranhados, tanto no Ocidente e em Israel como nos países islâmicos.
Nos anos 1990, o empresário saudita Osama bin Laden e sua organização Al Qaeda (A Base ou O Método), que na década anterior tinham ajudado os Estados Unidos a combater os ocupantes soviéticos do Afeganistão – e que até mesmo tinham sido treinados e financiados pelo Ocidente –, consolidaram o terrorismo indiscriminado antiocidental, por sentirem que seus povos são oprimidos pelas forças militares, políticas e econômicas do Ocidente. Em agosto de 1998, mataram centenas de pessoas em ataques a embaixadas americanas na África.
A partir de 2001, os militantes palestinos passaram a organizar ataques suicidas indiscriminados contra alvos israelenses, adicionando, por sua vez, um elemento religioso ao que tinha sido até então um movimento predominantemente político. (Isso porque o fiel muçulmano acredita que, se morrer em defesa da fé, sua alma irá para o Paraíso.) Se, para os israelenses e a mídia ocidental, esses militantes suicidas são terroristas, para os palestinos e seus simpatizantes os homens-bomba são combatentes da liberdade contra o terror de Estado de Israel nos territórios ocupados. Também foram suicidas, isto é, de caráter religioso, os grandes atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York e Washington.
Nos EUA existem terroristas tipicamente americanos que se incluem entre os chamados “libertários”, direitistas contrários à interferência do governo em suas vidas, inclusive contrários à cobrança de impostos. Seu maior feito foi a morte de 168 pessoas num prédio federal em Oklahoma City, em 1995.
A “guerra contra o terror” desencadeada pelo presidente George Bush após os atentados de 11 de setembro de 2001 se seguiu, vinte anos depois, à “guerra contra o terror” desencadeada pelo presidente Ronald Reagan em 1981, logo após a libertação dos americanos que haviam sido feitos reféns na embaixada dos EUA no Irã. O maior triunfo dessa guerra internacional foi a detenção do famoso terrorista venezuelano Carlos, o Chacal – mas, se foi pego um terrorista, não acabou o terrorismo. Calcula-se que os efetivos da Al Qaeda tenham aumentado grandemente em duas ondas, uma depois dos atentados de 2001 em Nova York e Washington e outra depois da invasão do Iraque em 2003. A organização teria agora, segundo os cálculos mais recentes, 18.000 membros em todo o mundo.
Desde 1963, a ONU tem discutido e/ou aprovado numerosas convenções que mencionam o terrorismo, da condenação aos atos de seqüestro e à ocupação de embaixadas com manutenção de reféns, passando pela proibição aos governos de financiarem atos de terror, até o esboço de uma convenção geral, aprovada pela Comissão Jurídica da Assembléia Geral, assim redigida, em 1999:
“A Assembléia Geral reitera que atos criminosos com o objetivo ou o cálculo de provocar um estado de terror no público em geral, num grupo de pessoas ou em pessoas específicas, com propósitos políticos, são injustificáveis em quaisquer circunstâncias, sejam quais forem as considerações de natureza política, filosófica, ideológica, racial, étnica, religiosa ou de qualquer outra natureza que possam ser usadas para justificá-los.”
O problema é que, o que é “ato criminoso” para uns é “ato de legítima defesa” para outros. Afinal, o Congresso Nacional Africano foi considerado “terrorista” pela Grã-Bretanha e Estados Unidos em 1987 e hoje compõe o governo da África do Sul, reconhecido pelo mundo inteiro. Também judeus apontados como terroristas na Palestina sob mandato britânico, como Menachem Begin, passaram a ser líderes e heróis nacionais no Israel independente. Brasileiros apontados como terroristas durante o regime militar hoje são nomes de rua, parlamentares e até ministros. O que vai acontecer amanhã com os “terroristas” de hoje?
Qual o maior foco de terrorismo da história? Segundo muitos historiadores, são os Estados Unidos, o próprio país que, paradoxalmente, promove a guerra contra o terror. Um documento oficial do Ministério da Defesa da Bélgica (país acusado do genocídio de 6 milhões de pessoas no Congo, no século 19, como vimos) aponta os EUA como o palco do maior genocídio da história, pois os colonizadores teriam exterminado 15 milhões de indígenas em território americano.
Nos primeiros vinte anos do século 20, os EUA intervieram vinte vezes na América Central e Caribe. Depois da Segunda Guerra Mundial, além das guerras da Coréia e do Vietnã, em que bombardearam também o Camboja e o Laos, estiveram envolvidos em operações encobertas que derrubaram governos nacionalistas no Irã, na Indonésia – nesta, com a morte de centenas de milhares de pessoas. Ajudaram a ditadura indonésia a ocupar o Timor Leste em 1975; antes tinham agido na República Dominicana. Colaboraram com a instauração de ditaduras militares por toda a América Latina, nos anos 1960 e 1970, e também na América Central, nos anos 1980.
Fomentaram a oposição fundamentalista islâmica ao regime laico do Afeganistão, já calculando que a União Soviética interviria e se desgastaria na luta contra os rebeldes fundamentalistas, que depois passaram a constituir o Taleban, mais tarde apontado como inimigo por Washington. No governo de Bush pai, na passagem dos anos 1980 para os anos 1990, ocorreram a invasão do Panamá, a expulsão das tropas iraquianas do Kuwait, a instalação de tropas americanas na Arábia Saudita – o que levou o milionário Bin Laden, até então aliado dos EUA, a se tornar seu inimigo, pois considera que o solo do seu país é sagrado e não pode receber tropas estrangeiras.
No governo Clinton foram bombardeados o Afeganistão, Sudão, Iugoslávia e Iraque. O governo Bush filho ocupou o Afeganistão e o Iraque e aumentou a presença na Colômbia e outros países latino-americanos. Os EUA gastam atualmente 450 bilhões de dólares por ano com suas Forças Armadas e combatem insurreições em oitenta países. Que foco maior de violência pode existir?
Os Estados Unidos, com sua política expansionista e sua força militar incontrastável, acabam sendo o maior fator, ativo e passivo, do terror no mundo. Os povos oprimidos pelo poder americano acabam reagindo da maneira mais desesperada, pois não têm meios de enfrentar os EUA. Mas se engana quem imagina que a guerra no Iraque é uma “loucura” de Bush. As classes dominantes americanas aprenderam desde a Segunda Guerra Mundial, que se seguiu à Grande Depressão, que a guerra é o melhor meio de manter o dinamismo de seu tipo particular de capitalismo.
Com a guerra, o Estado americano pode cobrar mais impostos dos pobres do que dos ricos, para financiar a indústria armamentista e para assegurar militarmente o fluxo de petróleo, duas instâncias vitais para o crescimento econômico dos EUA. Com a guerra, a classe dominante americana pode cortar benefícios sociais, manter baixos os salários e prolongar as horas de trabalho. Só que, com a guerra, os EUA e seus aliados têm de contar com o terrorismo como resposta. Tudo indica que os EUA empreenderão novas guerras, qualquer que seja seu presidente, e que os povos oprimidos e fracamente armados continuarão reagindo com o terror individual ou de pequenos grupos contra o terrorismo de Estado americano.

Renato Pompeu é jornalista.

terça-feira, 27 de setembro de 2005

Colligere, o poder do pensamento negativo

“No final, e apenas uma questão de aceitar regras, abrir mão de algumas coisas para ter outras.
Natureza é conflito.
Sociedade é submissão.
A conveniência se impõe sobre a liberdade.
E o poder se impõe sobre a vontade.
Quem constrói a verdade controla a sua vida.
Cansados de perder alguns tentam mudar por dentro”.

Colligere, o poder do pensamento negativo

segunda-feira, 26 de setembro de 2005

Orçamento Público Federal

Matéria publicada no especial Caros Amigos Corrupção (nas bancas até o começo de outubro), sobre o Orçamento Geral da União. Parceria com Diogo Ruic.

Orçamento público federal: os caminhos e descaminhos

O Orçamento Geral da União (OGU) é todo o dinheiro que o Brasil tem para investir e pagar dívidas a cada ano. E como ele é arrecadado e como é gasto? É uma contabilidade extremamente complexa, mas simplificando, vamos imaginar um contrato firmado entre o governo e a sociedade, pelo qual a nossa contribuição (impostos, por exemplo) vai para um grande “cofre federal”. Esse dinheiro deve destinar-se às ações do governo – programas, projetos, despesas constitucionais, obras e serviços, custeio.
O Orçamento se alimenta de mais de vinte fontes, as principais são o imposto de renda, a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e a Previdência Social recolhida por todos os patrões e empregados. Para 2004, o Orçamento foi de 1,5 trilhão de reais.
A elaboração e a execução do Orçamento obedecem a leis, como a Lei do Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual. Tudo começa assim: o poder executivo elabora a proposta orçamentária, que é enviada pelo próprio presidente da República em forma de projeto de lei, ao Congresso Nacional até o dia 31 de agosto de cada ano. Ao Congresso cabe analisar e aprovar o orçamento. Para isso, existe a CMO – Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização, composta por 21 senadores e 63 deputados. Por lei, todos os congressistas podem propor as chamadas emendas parlamentares: emendas individuais, máximo de 20 por parlamentar, emendas coletivas, que se subdividem em bancadas estaduais (de 18 a 23), e bancadas regionais (até duas por bancada); e emendas de comissões permanentes do Senado e da Câmara (até cinco por comissão).
O deputado federal pelo PT de Santa Catarina e relator geral da CMO para o orçamento de 2006, Carlito Merss, explica que depois do célebre rombo dos Anões do Orçamento que gerou uma CPI (veja na página 28), diminuiu a margem para esquemas de corrupção usando as emendas: “Os deputados não tinham limites para emendas, podiam fazer quantas achassem necessárias. Hoje não, somente vinte e a soma total delas não pode passar dos 3,5 milhões de reais por parlamentar”. Na visão de Merss, a margem para fraudes é pequena “mas elas ainda existem”. E como podem ocorrer? Ele responde que o superfaturamento é um exemplo: “Chego pro prefeito: ‘O que o senhor está precisando aí?’ ‘Tô precisando fazer um posto de saúde’. Digo: ‘Vou propor uma emenda de 100 mil para garantir o posto’. Muitas vezes o valor do posto é razoável, mas o prefeito já arma esquema com uma empreiteira de lá”. O esquema seria, por exemplo, executar a obra por 20 mil com material de má qualidade que custa bem menos e embolsar os 80? “Essa possibilidade existe, mas é mais difícil porque o processo é mais transparente e rígido do que na época dos Anões.”

O caminho do dinheiro

O assessor de normas orçamentárias da Secretaria de Orçamento Federal, José Roberto de Faria dá mais detalhes: “Encerrada a discussão e aprovado o projeto de lei orçamentária no Congresso, o presidente tem 15 dias úteis para sancionar e publicar na íntegra ou com vetos na parte que considerar contrária ao interesse público ou inconstitucional”. Depois de tudo aprovado, o orçamento é publicado no Diário Oficial da União e a partir daí está em condições legais de ser executado.
Trinta dias após a publicação no Diário Oficial da União, o poder executivo estabelece o cronograma mensal de desembolso, isto é, define como o dinheiro será liberado. Nesse momento entra em cena o Ministério da Fazenda, por intermédio da Secretaria do Tesouro Nacional, que é quem "toma conta do caixa" e faz as liberações dos recursos do Tesouro Nacional. O valor de 1.5 trilhão de reais citado como “estimado” no começo deste texto não é a realidade do Orçamento. Por quê? Porque a Constituição de 1988 divide o Orçamento em três frentes: O Orçamento Fiscal, o da Seguridade e o de Investimento das empresas estatais federais. O Orçamento Fiscal se destina aos gastos com investimentos de infra-estrutura (obras federais), saúde, educação, manutenção dos ministérios, parcelas de receitas tributárias federais transferidas para Estados e municípios, etc. A Seguridade Social atende os benefícios previdenciários (aposentadorias, pensões etc.). E o de investimento, como diz o nome, responde pelos investimentos das estatais, a Petrobrás, por exemplo. E a dívida pública? O Orçamento destinou 860 bilhões, em 2004, ao refinanciamento da dívida pública, ou seja, 57 por cento do total. Sobram, então, 630,4 bilhões para os investimentos todos, levando em conta que desses 630 bilhões parte tem destino certo – pagamento do funcionalismo federal (ativos e aposentados e pensionistas dos três poderes); transferências constitucionais aos Estados e municípios, além do contingenciamento dos recursos para fazer caixa objetivando bons resultados com o superávit primário –, o que realmente sobra para investimentos sociais e melhoria das condições de vida da população é um orçamento modesto. “Em 2003 sobraram 4 bilhões para investimento; 2004, 10 bilhões; 2005, menos de 15 bilhões. Espero que em 2006 possamos trabalhar com o orçamento na casa dos 20 bilhões”, diz Carlito Merss.

Quem paga a conta é você

Parte do Orçamento é transferida para os Estados e municípios para realizarem obras públicas ou programas nas áreas de saúde, educação, saneamento etc. E nesses casos é que a corrupção tem mais campo, com os problemas de desvio de verbas e superfaturamento. Em 2004 a União repassou para os 5.561 municípios brasileiros, 21 bilhões de reais. Estudo do economista Cláudio Ferraz, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, mostra que foi detectado algum tipo de corrupção na máquina administrativa em 73 por cento dos municípios fiscalizados pela Controladoria Geral da União entre 2001 e 2003. “Não tenho certeza se a descentralização de recursos federais aumenta a corrupção, pode ser que aumente, o problema é não ter mecanismos suficientes para conter esse tipo de corrupção. Sou a favor da descentralização com mais controle, como comitês que fiscalizassem, por exemplo, as licitações”, explica Cláudio Ferraz.
Alguns casos são comuns, como a criação de empresas fantasmas e a simulação de processos de licitação. Também são usuais as licitações não competitivas, das quais apenas uma empresa participa, quando a lei exige pelos menos três participantes para qualquer projeto acima de 80.000 reais por ano. Em Itapetinga, na Bahia, o edital de licitação para compra de merenda escolar era publicado apenas uma hora antes do prazo final, de forma que vencia sempre a empresa do irmão do prefeito. “Espero que daqui a uns dez, doze anos seja possível mandar um auditor uma vez por ano aos municípios para checar o destino real do dinheiro federal, mas agora não temos condições pra isso e nem estrutura”, finaliza o deputado Carlito Merss. Decerto, o grau de organização da sociedade local pode ser determinante para prevenir e combater o desvio de dinheiro público vindo do Orçamento Geral da União, como comprova o exemplo da pequena Ribeirão Bonito, o qual você verá na reportagem a seguir.

Thiago Domenici e Diogo Ruic são jornalistas.

quinta-feira, 22 de setembro de 2005

Slogans dos Candidatos

Severino renunciou, enfim. Diz que voltará. Espero que não. Enquanto isso no blog do jornalista Fernando Rodrigues já surgem slogans dos novos candidatos:
Saem os slogans dos candidatos!

Enquanto não sai o novo presidente da Câmara, dá-se risada no salão Verde da Casa. A última é que a SMPB, de Marcos Valério, fez gratuitamente uma seleção de possíveis slogans para cada um dos principais pré-candidatos. Impagável:

1 - Arlindo Chinaglia (PT-SP):PT no comando para moralizar a Câmara
2 - Beto Albuquerque (PSB-RS):Para uma Câmara independente, um vice-líder do governo
3 - Francisco Dornelles (PP-RJ):Pela renovação da Câmara, um deputado com 5 mandatos
4 - João Caldas (PL-AL):Pela continuidade do bom trabalho de Severino
5 - José Thomaz Nonô (PFL-AL):PFL pela neutralidade na Câmara. Impeachment já!
6 - Luiz Antonio Fleury (PTB-SP):O partido que entende de mensalão saberá combatê-lo
7 - Michel Temer (PMDB-SP)Um tucano do PMDB para tocar a Câmara junto com o PT

segunda-feira, 19 de setembro de 2005

No peito, a bala da história

Matéria publicada na revista Caros Amigos Especial sobre os 50 anos do suicídio de Getúlio Vargas. A matéria de minha autoria fala do último dia de vida de Vargas.
No peito, a bala da história
O mordomo percebeu que Getúlio não tirava a mão esquerda do bolso, mas não podia imaginar que ali estivesse o colt 32 com cabo de madrepérola.
Rio de Janeiro. A ambulância nº 11.55 chega às pressas ao Palácio do Catete, sede do governo federal, entra, pára próximo a uma porta onde desembarca médicos e enfermeiros que correm para o elevador que os conduzirá ao terceiro andar. Era terça-feira, 24 de agosto de 1954. Pouco antes de a ambulância chegar, Anísio Viana, diretor do Departamento Administrativo do Serviço Público, aproxima-se da portaria do palácio, pega o telefone e não obtém sinal na linha. Tenso, indaga para si mesmo: “Como é que deixaram esse homem sozinho, meu Deus?” Pede a um contínuo, sem sucesso, que ligue de outro telefone ao pronto-socorro, dizendo que o caso é de “ferimento grave”. O repórter Arlindo Silva, da revista O Cruzeiro, que estava de plantão na cobertura da crise, toma a liberdade de chamar o pronto-socorro da praça da República. Mas, quando a equipe da ambulância está voltando do terceiro andar, o médico responsável é taxativo: “Não há mais remédio, o presidente está morto”.
A notícia se alastrou rapidamente: o presidente se suicidara em seu quarto no palácio, às 8h30, com um tiro no peito. A carta-testamento, deixada na cabeceira da cama, foi lida na Rádio Nacional pelo ministro da Fazenda, Osvaldo Aranha. Comoção nacional. Enquanto os legistas examinavam o corpo, uma multidão ia tomando as ruas próximas ao Catete. A Polícia Especial do Exército e a Aeronáutica montaram um esquema de segurança para conter o povo que se dirigia para o palácio aos gritos de: “Queremos ver Getúlio!” Em São Paulo, um espanhol, após dar um “Viva a Getúlio!”, suicidou-se com um tiro no coração. O jornal Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, foi apedrejado e quase invadido. A Rádio Globo, onde Lacerda fizera a campanha “contra o golpe e contra a corrupção” do governo, também foi apedrejada e dois carros de reportagem do jornal O Globo, de Roberto Marinho, foram virados e incendiados. A multidão já interrompia o trânsito nas imediações do palácio e as sucessivas edições extraordinárias dos jornais se esgotavam mal chegavam à rua. A imprensa só pôde entrar no Catete por volta das 13 horas, e o povão às 17 horas, para participar do velório. Foram 2.100 casos de desmaios nas dezesseis horas em que o corpo esteve exposto à visitação pública, aproximadamente 100.000 pessoas passaram pelo caixão. No Brasil e no exterior, Getúlio virou assunto de todos os jornais. Em Paris, o Le Monde: “A queda de Vargas é uma vitória para os círculos direitistas, para as famílias que são demasiado ricas e estão mal situadas para dar lições de moral e de civismo”. Nos Estados Unidos, o The New York Times: “Poucos acontecimentos, em toda a história da América Latina, têm sido tão pasmosos como o suicídio de Getúlio Vargas”. No Rio, a Última Hora: “Matou-se Vargas. O presidente cumpriu a palavra! Só morto sairei do Catete!” O Jornal do Brasil deu a manchete: “Dramático desfecho”. Mas somente quem esteve com Getúlio nas suas últimas horas pôde relatar os bastidores da crise que se abateu sobre a presidência da República. Desde o chamado atentado da rua Toneleros, no dia 5, quando as suspeitas recaíram sobre Gregório Fortunato, chefe de sua guarda pessoal, Getúlio sabia da situação insustentável: “Esses tiros me ferem pelas costas”.O dia 24 de agostoO documento que suscitou a reunião ministerial daquela madrugada foi o Manifesto dos Generais, levado ao palácio por volta da meia-noite pelo ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa. No documento, o Exército se declarava pela renúncia do presidente. Foi na sala de despachos, à 0h30, que Vargas pegou uma folha datilografada, assinou-a e guardou no bolso – souberam depois que era a carta-testamento. Tancredo Neves, ex-ministro de Getúlio, conta detalhes: “Chegamos à sala de despachos do presidente e o general Zenóbio da Costa e o marechal Mascarenhas de Morais entraram no gabinete presidencial. Trinta minutos depois, o presidente determinou a convocação do ministério. Perguntei: ‘Presidente, como vamos conduzir a reunião ministerial?’ Respondeu-me: ‘Ouviremos os ministros militares e tomaremos uma decisão’. Pegou de cima da mesa uma caneta e me deu, dizendo: ‘Guarde isto como lembrança destes dias’, Diante da minha surpresa: ‘Não te preocupes. Tudo vai acabar bem’ “.Às 3 horas da madrugada, a reunião ministerial foi interrompida por uma decisão rabiscada na agenda pessoal do presidente: “Já que o ministério não chegou a nenhuma conclusão, vou decidir. Determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se a ordem for mantida, entrarei com meu pedido de licença. Em caso contrário, os revoltosos encontrarão, aqui, apenas o meu cadáver”. Sua filha, Alzira Vargas, que esteve presente à reunião, escreveu: “Terminada a reunião, devia ser, mais ou menos, 4 horas da madrugada, papai subiu para o segundo andar do palácio. Estava aparentemente seguro e tranqüilo. Acompanhavam-no eu e meu tio Benjamin. Entramos juntos em seu gabinete. Nesse momento, papai tirou uma pequena chave de seu bolso e nos disse: ‘Esta chave abre aquele cofre. Dentro dele estão os meus documentos mais importantes. Se alguma coisa me acontecer, retirem a chave de meu bolso e limpem o cofre’. Meu tio Benjamin encarou-o fixamente e disse: ‘Está bem, Getúlio’. Eu retruquei: ‘Papai, quer fazer o favor de parar com isso? De que nos adianta a chave se todos iremos juntos para o mesmo fim?’ Papai respondeu sorrindo: ‘Estou apenas avisando’. E retirou-se para os seus aposentos depois de nos dar boa noite.’” Enquanto Zenóbio saía para anunciar aos demais militares a decisão da licença, Tancredo Neves redigiu a nota oficial, que foi divulgada pelo rádio. Por volta das 6 horas, o irmão Benjamin foi ao quarto de Getúlio, dizendo que teria de depor à polícia, por ser acusado de autor intelectual do atentado da Toneleros. O presidente disse que tudo bem, mas que tomassem o depoimento ali no palácio. Logo depois, a filha Alzira, sob o pretexto de procurar um remédio para dor de cabeça, entrou no quarto: “Papai, da cama em que se encontrava repousando, perguntou-me: ‘Ainda não foste dormir?’ Respondi-lhe meio malcriadamente: ‘Eu durmo quando quiser’. Rindo, ele respondeu: ‘Pois então vá embora, que vou dormir’”. Às 7h30, Benjamin voltou ao quarto para informar que o pedido de licença não era o bastante para os militares e que os quartéis queriam o afastamento definitivo. Getúlio pediu ao irmão que trouxesse mais informações. Nesse momento, certamente, já estava decidido a se matar.Como fazia todas as manhãs, o camareiro Barbosa entrou no quarto com o material para lhe fazer a barba. Vargas estava de pijama listrado: “Que é que tu queres, Barbosa?” “Estou aqui para servi-lo, excelência.” “Não é preciso, saia que eu quero dormir mais um pouco.” “Como o senhor quiser, mas acho melhor o senhor vestir o roupão, porque está fazendo frio.” “Isso não tem importância.” Depois que Barbosa deixa o quarto, o presidente sai em direção ao seu gabinete de trabalho. “Quando vi papai acenar-me com a mão ao passar pelo corredor, estranhei sua atitude, pois sabia que não costumava sair de seus aposentos naqueles trajes”, descreve Alzira. Quando o presidente voltou, o mordomo João Zarattini notou que Vargas conservava a mão esquerda no bolso do paletó, mas não imaginou que ali estivesse o Colt calibre 32 com cabo de madrepérola. O presidente fechou a porta, sentou na cama, posicionou o revolver à altura do peito e, como diz sua carta-testamento, “saiu da vida para entrar na história”. O corpo ficou atravessado sobre a cama, a perna esquerda pendente. Junto ao abajur, na mesa de cabeceira, estava a carta-testamento. “Minha blusa ficou embebida de sangue. No sorriso que meu pai ainda me dirigiu, apenas me reconheceu e senti toda a grandiosidade da sua morte, pois ele morria pelo amor de todos nós. Morria sozinho para impedir que morrêssemos ao seu lado”, escreveu Alzira, que, assim que escutou o tiro, saiu em disparada para o quarto, junto com o tio Benjamin, o irmão Luthero e a mãe Darcy. Uma hora depois da morte, Alzira retirou do cofre todos os documentos pessoais de Vargas, entre eles a primeira via assinada da carta histórica e o diário. Ela estava preocupada com o desfecho havia seis dias, quando um funcionário lhe entregou um bilhete encontrado sobre a mesa de trabalho do pai: “À sanha dos meus inimigos deixo o legado de minha morte. Levo o pesar de não ter podido fazer pelos humildes tudo quanto desejava”. Às 10 horas da manhã de 26 de agosto, o presidente Getúlio Vargas foi enterrado na sua cidade natal, São Borja, Rio Grande do Sul, encerrando um ciclo de dezoito anos de poder.
Thiago Domenici é jornalista.

terça-feira, 13 de setembro de 2005

Intelectualidade na Crise

Essa opinião do sociólogo Ricardo Musse integra parte da matéria "o que pensam os intelectuais da esquerda" da revista Caros Amigos, edição de setembro. Essa análise é também o meu ponto de vista sobre toda essa canalhice política. Deixo aqui registrado, pois é crucial que tenhamos um olhar diferenciado sobre todo esse processo.
Ricardo Musse, doutor em filosofia e professor no Departamento de Sociologia da USP, nunca foi filiado ao PT, mas se diz militante do partido.
“Não há como deixar de considerar o governo a partir da crise política em que se deixou enredar. Foram 25 anos para chegar ao poder e pouco mais de 25 meses para colocar alguns de seus principais dirigentes no banco dos réus. Independentemente do poder econômico e político da oposição – de seus métodos e aliados no submundo –, houve um erro monumental na gênese desse fracasso, no mínimo por subestimar ou não identificar o adversário. O ‘grande organizador da derrota’ foi a tibieza em promover mudanças, a estratégia de continuidade na economia, na administração e na política. A fração petista no poder revelou-se alma gêmea do tucanato, desde a transição que virou coabitação até o neoliberalismo mitigado que abraçou como programa de governo. Há uma teia de causas e efeitos em tudo isso, um encadeamento nem sempre visível na mídia, que transforma a denúncia em espetáculo: a política econômica neoliberal só se mantém pela via da subordinação dos interesses populares ao poder econômico, pela mercantilização das consciências e da representação política, partidária, sindical etc. Hoje, o governo agarra-se à falsa expectativa de que agradando ao poder econômico não será destroçado, e dá-lhe cada vez mais do mesmo, ampliando a estratégia de capitulação que é a própria fonte do fracasso. Ao mesmo tempo busca o apoio das massas, ameaçando reeditar dinâmicas típicas da história do populismo no continente. A estratégia de ‘união nacional’, ensaiada desde o início do governo, a tentativa de se apresentar como ponto de confluência de movimentos opostos – do agronegócio e da reforma agrária, dos transgênicos e do ambientalismo, dos banqueiros e do setor produtivo, do capital e do trabalho – corre o risco ainda maior de desagradar a todos. Hoje, a nossa esquerda sofre de melancolia. Uma crise de legitimidade assola todas as instâncias do poder – o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, a mídia, o Exército, as igrejas etc. – e a esquerda imobiliza-se em discussões estéreis – é ou não golpe, querem ou não o impeachtment, deve defender ou não Lula – e não vê a oportunidade histórica de mobilizar os trabalhadores e os setores populares, de apresentar uma solução de esquerda para a crise. Uma das virtudes da crise é a desmistificação de ilusões, em especial da expectativa de que o capitalismo não seja a própria barbárie. Mas tenho me angustiado muito com a imaturidade e fragilidade da esquerda – com as exceções de sempre, como o MST. Uma parcela da esquerda, as ‘boas almas’, vê a conjuntura como uma reiteração de sua previsão de que não se deve lutar pelo poder e de que convém entregar o galinheiro às raposas. Outra, ‘exibicionista’, comporta-se como caudatária do PFL e da mídia. Há ainda alguns que, mesmo tendo alertado para os equívocos da fração dominante no PT, vestem a carapuça e propõem uma atualização dos rituais medievais de autoflagelação em praça pública. Agora e sempre, a tarefa da esquerda é uma só: organizar e mobilizar os trabalhadores e os setores populares. Numa sociedade em que todas as relações estão assentadas no dinheiro, só há uma força capaz de se contrapor a isso: a ação política das massas. O PT, apesar dos desvio de sua antiga direção, ainda é o espaço partidário mais democrático e representativo dos anseios de mudança. É o resultado da ação social de milhares de militantes anônimos que dedicaram parte de suas vidas a mudar o país, um legado que não pode ser usurpado.”

sexta-feira, 9 de setembro de 2005

Quem lembra dos precatórios?

Com tantas notícias e escândalos de corrupção, trago um caso esquecido, porém um dos mais célebres da história do país. É mais um capítulo dos amigos Maluf e Pitta.
Quem lembra dos precatórios?

O “Escândalo dos Precatórios” gerou uma CPI em 1997, mas a falcatrua começou em 1995. A história foi badalada e a sacanagem com o dinheiro público cabeluda. Coisa para mais de 5 bilhões de reais (em valores atualizados). As fraudes com os títulos públicos aconteceram nas prefeituras de São Paulo, Guarulhos, Osasco e Campinas e nos Estados de Santa Catarina, Alagoas e Pernambuco. Os principais envolvidos são Paulo Maluf e Celso Pitta, ex-prefeitos de São Paulo, Divaldo Suruagy, ex-governador de Alagoas, Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco, Paulo Afonso Vieira, ex-governador de Santa Catarina, e os peixes pequenos, mas não menos importantes, como Wagner Baptista Ramos, ex-coordenador da dívida pública municipal de São Paulo, considerado “o cabeça” do esquema que aquecia os precatórios. Após várias denúncias foi instaurada no Senado Federal uma comissão parlamentar de inquérito (CPI), que no seu relatório final acusou dezessete pessoas (entre as citadas acima) e 161 instituições financeiras.
O jornalista Luís Nassif, que investigou o escândalo, explica: “A CPI começou em cima de um pequeno banco, o Vetor. Sabia-se da aprovação da emissão de títulos públicos para pagamento de precatórios, mas pelos valores me pareceu impossível um banco pequeno como o Vetor conduzir o processo. No decorrer das minhas investigações deu para perceber que era um enorme esquema que envolvia caixinhas políticas, subfaturamento, mercado de títulos estaduais e fundos off-shore”.
Antes do esquema malandro, vamos às explicações passa a passo. O precatório é um documento em que o Estado ou município reconhece uma dívida – dívida calculada pela Justiça e sem possibilidade de recurso ou contestação. Decorrem, por exemplo, mas não só, de ações por desapropriação de terrenos e processos trabalhistas. Funciona assim: quando um juiz anuncia uma sentença, por exemplo, condenando um Estado, envia um documento (um precatório) ao tribunal responsável e pede que esse tribunal determine ao Estado devedor a inclusão do pagamento desse precatório no orçamento dos anos seguintes. Aí entra a malandragem, de uma brecha legal da emenda constitucional nº 3, de 1988, que permite aos Estados e municípios a emissão de títulos públicos (letras financeiras do Tesouro Municipal ou Estadual negociáveis no mercado financeiro) com o objetivo de antecipar arrecadação de dinheiro para pagar os precatórios. Eis aí um dos caminhos da corrupção, já que as emissões desses títulos pelos acusados eram superiores ao necessário para quitar os precatórios. Um dos trunfos de Wagner Ramos para superfaturar a quantidade de títulos era embutir a correção monetária nos precatórios que seriam saldados: “Descobriram uma brecha na legislação que permitia manipular cálculos de dívidas pré-Constituição para justificar os precatórios. O Senado aprovou a primeira operação para a cidade de São Paulo, tendo Maluf como prefeito. Ele percebeu que era um negócio bom e resolveu terceirizar, chamando o Banco Vetor e seu assessor, Wagner Ramos. Para ser esquentado, o dinheiro passava pelos canais dos títulos estaduais, operações esquenta-esfria em bolsas, doleiros etc. Era um sistema de corrupção, que terminou abafado e sem ação nem do Banco Central nem da Receita Federal”, diz Nassif.
Para outro jornalista, Rogério Pacheco Jordão, autor das primeiras reportagens que denunciaram as irregularidades com os títulos públicos da prefeitura de São Paulo – "Como Pitta deu um prejuízo de R$ 1,7 mi para SP em único dia" e "Celso Pitta: rombo pode chegar a R$ 10 milhões", publicadas no Jornal da Tarde, o desfecho das investigações foi decepcionante: “Era uma CPI propícia a seguir o dinheiro. Sabe aquela coisa do garganta profunda que falava pro jornalista do Washington Post ‘follow the money’? Essa dos precatórios teve todas as chances e condições de seguir o dinheiro, mas não seguiu”. Nassif emenda: “Quando o quadro ficou claro, ocorreu uma ampla manobra de abafamento. O relatório final acabou terminando em meia pizza”.
Essa operação abafa é citada, mas em off, por pessoas que acompanharam a CPI. Segundo relatos, quando Lázaro de Mello Brandão, então presidente do Banco Bradesco S.A. depôs na CPI, o clima amainou. Segundo noticiário do jornal Folha de S. Paulo, os depoimentos de Lázaro e do seu vice, Ageo Silva, “dividiram a CPI do Senado sobre a suposta participação de grandes bancos nas irregularidades com títulos públicos”.
O relator da CPI, Roberto Requião (PMDB-PR), oito anos depois, em recente entrevista de capa a Caros Amigos, declarou: “Fiz a CPI dos Títulos Públicos e joguei para a platéia, joguei para a mídia, se não jogasse pra mídia, não teria aprovado meus relatórios. Mas não foi suficiente, pois o plenário do Senado aprovou relatórios duríssimos e logo depois o Fernando Henrique impôs a legalização dos títulos com o pretexto de que desestruturava o sistema financeiro nacional. ‘Esse roubo tem que ser relevado porque senão quebram os bancos.’ (teria dito FHC) Ele preferiu quebrar os Estados. (...) E aumentando os prazos de pagamento, empurrando o pepino para os Estados, para salvar o quê? Supostamente, para salvar os bancos. Que importância teria quebrar um banco ou outro no Brasil? O que não pode quebrar é o Brasil.”
Encerrado em 1997, o relatório final da CPI estimou em quase 240 milhões de dólares o estrago nos cofres públicos: Pernambuco emitiu 480 milhões de reais em títulos, mas pagou somente 25 milhões. Em Santa Catarina foram emitidos 605 milhões, dos quais 34 milhões quitaram precatórios. São Paulo foi de longe o caso mais absurdo: de 1 bilhão e 500 milhões de arrecadação com os títulos públicos, somente 300 milhões foram usados para quitar precatórios. Ou seja, 1 bilhão e 200 milhões foram aplicados em outras finalidades. Quais finalidades? Nem o Ministério Público sabe dizer, já que o dinheiro não é carimbado. O leitor fique à vontade para imaginar o destino dessa grana toda.
Com o relatório final da CPI nas mãos, o Ministério Público (esferas federal e estaduais) processou os envolvidos. Alguns caíram rápido politicamente, como Divaldo Suruagy, que renunciou ao cargo de governador em 1997. Paulo Afonso Vieira escapou da cassação, em votação na Assembléia Legislativa catarinense, porque faltaram dois votos para aprovar o pedido de impeachment.
Em São Paulo, o MPE propôs três ações civis públicas de improbidade administrativa. Ao todo, foram processadas 34 pessoas, físicas e jurídicas, dentre as quais vinte instituições financeiras, entre elas o Banco Bradesco e o Vetor. Celso Pitta e Wagner Ramos foram condenados, em segunda instância, à suspensão dos direitos políticos por oito anos, perda dos cargos e ressarcimento aos cofres públicos da quantia desviada (21 milhões corrigidos), mas eles recorreram em novembro de 2004 ao Superior Tribunal Federal.Em outro processo, Paulo Maluf também responde como réu e foi condenado, em sentença de primeira instância, a pagar uma multa equivalente a até cem vezes o salário de prefeito. O fato é que oito anos depois nenhum deles foi condenado definitivamente devido à morosidade da Justiça e à velha problemática de vários recursos judiciais que protelam durante anos a sentença final. Efetivamente, só tiveram seus bens bloqueados e as instituições financeiras (as menores) foram fechadas. Maluf, Pitta e Ramos, no processo criminal movido pelo MPF, se condenados, estão sujeitos a pena de um a cinco anos de prisão. As sentenças finais podem levar muitos anos e os acusados nem estar vivos. A justiça tarda, mas não falha. Será?


Thiago Domenici é jornalista

quinta-feira, 8 de setembro de 2005

Dias iguais

Na música relaxante,
Um anestésico cotidiano.
Sobe o som do aparelho,
O veículo roda os cavalos,
Entram um, dois, três; em pé. Não tem onde sentar.
Cavalheiro-obrigatório cede o lugar ao idoso.
A jovem gargalha da amiga,
A janela embasada de suor antigo revela o mendigo que canta a tristeza –
A sede de cachaça aumenta a todo instante.
Muda de faixa, o motoqueiro a mil – pilhado e adrenalizado – quase encontra Deus.
Na música relaxante,
Um anestésico cotidiano.
A injustiça é nua,
Palpável e palatável.
Os gestos são iguais,
Um com a bíblia em punho,
O outro com o revólver.
Cobrador imóvel e o fone esquerdo cai.
O sangue escorreu até a cintura.
Na estatística vale o número,
A vida, em si, não vale – a alma é prisioneira do medo (todos os dias).
A trajetória chega ao fim.
O aparelho é desligado – de volta a realidade.
O sinal é dado,
A porta se abre,
O cotidiano segue.


Thiago Domenici

terça-feira, 6 de setembro de 2005

O milênio que não veio

Essa matéria de minha autoria foi publicada no especial Caros Amigos Terra em Transe.
A mídia fez a retrospectiva do último milênio. O novo viria e a Austrália seria o primeiro país da virada. Tudo pronto: pacotes turísticos esgotados, fogos de artifício, multidões nas praças, boates e restaurantes decorados, o megashow seria transmitido pela televisão. A maioria não demonstrava, mas havia o tom de interrogação no ar. Para completar, tínhamos o bug do milênio – o poderoso vírus Y2K que paralisaria todos os computadores do planeta. Para profetas, milenaristas e místicos era certo: não teríamos escapatória.
Nada se viu. Tudo normal. A exemplo da Babilônia e do Egito antigos, nenhuma transformação radical, nada de messias e nem anjo descendo dos céus detonando a fúria divina. À época da prometida virada, o famoso costureiro francês Paco Rabanne previu que em 11 de agosto de 1999 a estação espacial MIR cairia sobre Paris, carregada de ogivas nucleares, e mataria 20 milhões de pessoas: “... eu imploro, fujam” foi o que declarou à revista L´Evénement. Paranóia? O professor da PUC de São Paulo Rafael Rodrigues da Silva, especialista em ciências da religião, provoca: “Imagine se o tsunami de agora tivesse acontecido no ano 2000? Ia ser um auê”. Para ele, o Apocalipse é interpretado de forma errada, já que apokalypsis, do grego, significa revelar: “É nessa perspectiva errada que essa gente associa datas simbólicas, troca de períodos, a calamidades”. O teólogo Leonardo Boff completa: “É expressão da crise da cultura, das certezas e das seguranças. Quando a cultura entra em crise, surgem mitos do fim da espécie ou do fim do mundo”. O caso de Paco Rabanne não é o único. Historicamente, são vários os casos de profetas que tentam adivinhar o futuro. O mais famoso é o francês Michel de Nostre-Dame, o Nostradamus. Numa de suas primeiras profecias, na Itália, disse ao jovem criador de porcos Felice Peretti: “Numa ocasião como esta, não posso deixar de me curvar diante de Sua Santidade”. Em 1585 – dezenove anos após a morte de Nostradamus –, Peretti seria eleito papa com o nome de Sisto V.
Também se atribui a ele a previsão dos ataques ao World Trade Center, em 2001: “No ano de 1999 e sete meses, do céu virá um poderoso rei do terror para reviver o grande rei de Angolmois”. Porém, a referência pode ser a Francisco I, que governava a França na época do profeta. O rei foi duque de Angoulême antes de subir ao trono. Sem contar que, de 1999 a 2001, são 26 meses de diferença. Creia-se ou não, as Centúrias de Nostradamus prevêem o futuro do mundo até 3767. São Malaquias foi outro profeta – religioso e reformista – falecido em 1148 que profetizara em frases curtas os papas da história. João Paulo II, por exemplo, foi descrito com a frase “De labori solis”, que significa “do trabalho do sol”.A explicação é que João Paulo é de Cracóvia, onde nasceu Copérnico, primeiro a explicar a órbita solar da Terra. Sobre o último papa a ser eleito no século 21, a previsão assusta: “No papado de um novo Pedro, a Igreja sofrerá uma derradeira perseguição, Roma será destruída e chegará o Juízo Final”.

Milenarismo histórico
O milenarismo é a crença de que Cristo estabeleceria sobre a Terra, após a segunda vinda, seu reino de mil anos (o milênio). “Todos eles (os justos) reviveram e reinaram com Cristo mil anos; os demais (mortos) não reviveram até que se passaram mil anos”. (Apocalipse 20,4-5.) É daí, desse trecho do livro do Apocalipse, do apóstolo João, a origem do termo milenarismo. A confusão entre milenarismo e apocalipse vem de longa data. A mais comum relaciona o milenarismo a catástrofes transformadoras que trariam o fim dos tempos e a renovação posterior, quando, na verdade, a análise é mais profunda e envolve um histórico político-social.
O livro Mil Anos de Felicidade: Uma História do Paraíso, do francês Jean Delumeau, explica o milenarismo na cultura ocidental desde os tempos pré-cristãos até hoje. Segundo ele, “há em geral uma ligação entre febres milenaristas e grupos sociais em crise. Os atores dos movimentos escatológicos são freqüentemente marginalizados, desenraizados ou colonizados que aspiram a um mundo de igualdade e de comunidade”. Leonardo Boff mantém o raciocínio: “Todas essas manifestações devem ser entendidas como expressões imaginárias de uma situação de crise generalizada que demanda sua superação não imaginária ou simbólica, mas real, sócio-histórica”.
As primeiras interpretações são judaico-cristãs, lá do século 12, quando o monge Joaquim de Fiore pregava a volta de Cristo nos moldes atuais. Outros povos também dão conta de milenarismos históricos. Por exemplo, os sumérios (3.000 a.C.), com a mitologia dos “deuses da ordem” e os “deuses da destruição”. Ou os incas e a concepção de “regresso do inca”, na qual a América seria unificada espiritualmente. Conhecedores de astronomia e baseados no calendário maia, tinham até a data do regresso: “21 de dezembro de 2012”, ou seja, daqui a sete anos.
O Brasil não fugiu à regra. Temos Canudos (1898) e a Guerra do Contestado (1916). Em Canudos, no sertão da Bahia, o líder Antônio Conselheiro se considerava um emissário divino. Seus seguidores eram trabalhadores pobres e contra a República. O “Império do Belo Monte” (região onde habitavam) seria uma nova Canaã depois do fim. A repressão militar fez a estatística: 4.000 mortes. No Contestado, sul do Brasil, não foi diferente. Um ex-soldado, Miguel Lucena de Boaventura, reuniu gente em torno da crença dos “Quatro Santos” do monge João Maria – morto em conflito e venerado na região. Com base nisso, pregavam a volta do Rei Encoberto, dom Sebastião. Fundaram a Monarquia Sul-Brasileira, mas a resistência foi contida no mesmo ano, 1916.

Radicalismo da fé?
O pontapé inicial foi de João e bastou para aparecerem inúmeros grupos milenaristas. Segundo o instituto americano Millenium Watch, que pesquisa o assunto, só nos Estados Unidos, em 1999, existiam mais de 1.200 profetas auto-aclamados. Já a Itália teria mais de quatrocentos grupos, entre evangélicos, satânicos, espíritas, mágicos e ufólogos, revelou o Grupo de Busca e Informação sobre Seitas (Gris). Uns esperam o messias e outros já têm o seu próprio. De certo, essas novas tendências utilizam elementos de religiões mais antigas e delas constroem a própria concepção. Para citar as mais conhecidas: Nova Acrópole, Testemunhas de Jeová, Mórmons, Igreja da Unificação ou seita Moon, Rosa-cruzes e outras. As mais radicais apelam para o suicídio como forma de martírio. Texas, 1993, região de Waco. O ex-líder da seita Branch Davidian (Ramo Davidiano), David Koresh, pregou a seus seguidores que deveriam morrer para renascer das cinzas quando chegasse o fim. O resultado: oitenta pessoas carbonizadas. Em 1997, Califórnia, a seita Heavens Gate levou 39 de seus seguidores ao suicídio. Acreditavam que na cauda do cometa Hale Bopp vinha uma espaçonave para salvá-los. O líder, Marshall Applewhite, acreditou que o suicídio era etapa necessária para a salvação “O suicídio deles mudou o mundo?”, pergunta o professor Rafael Rodrigues, da PUC. Ele explica que essa suposta restauração através da morte se deve à marca religiosa forte, já que nesses ambientes a teologia que prevalece é a da resistência pelo martírio: “O martirizado não morre, sai vitorioso. É o Daniel na cova dos leões e seus três amigos que saem da fornalha sem um arranhão. Isso passa como historinha popular que alimenta a mística de resistência”.
Tirar vantagem da situação foi um bom negócio para Karen Anderson, de Dallas, EUA, que tem um livro e vídeos direcionados para donas de casa – são vídeos explicativos de como lidar com o fim do mundo. E Mário da Silva Brito escreveu: “Você já pensou que o destino da humanidade pode estar na dependência de uma dose a mais de uísque no bucho de um piloto atômico norte-americano ou de vodca no do russo encarregado de disparar foguetes balísticos intercontinentais?”

Thiago Domenici é jornalista

sexta-feira, 2 de setembro de 2005

Pisando o astro, distraído

Em 1967, o hoje festejado Tomás Eloy Martínez, autor de O cantor de tango, editava uma revista, a Primera Plana, em Buenos Aires. Certo dia, o jornalista recebeu um telefonema da editora Sudamericana. O editor Francisco Porrua o convidava a conhecer a obra de um novo escritor. Martínez deixou a revista e se dirigiu à casa de Porrua. Como a distância era curta, resolveu andar, apesar da chuva.
Ao chegar, pisou os papéis jogados no chão. Naquela época, era costume portenho proteger o assoalho com jornais nos dias de chuva. Não era essa, porém, a intenção de Porrua. Ao devorar a primeira cópia de Cem anos de solidão, espalhara pela casa algumas páginas do romance do jovem a ser apresentado. "Por sorte as folhas estavam viradas para baixo", contou Martínez a EntreLivros.
As marcas das solas dos sapatos de Martínez ainda estão lá, no verso das páginas 97 a 107, atingidas antes que Porrua impedisse o jornalista de enlamear a obra-prima de Gabriel García Márquez, então promissor escritor colombiano. Mais tarde, Martínez se redimiu da gafe. "Até onde sei, a primeira resenha crítica de seu romance foi escrita por mim."
Fonte: Revista Entrelivros (www.revistaentrelivros.com.br), Ano I, Nº I.

quinta-feira, 1 de setembro de 2005

O Brinco

Esse texto, do gênero Conto, é de um amigo jornalista, Thomaz de Molina (mais conhecido como Batata). Tomei a liberdade de publicá-lo aqui, já que é um texto muito bem escrito e com um humor peculiar. Espero que gostem.

O Brinco

Cá estou eu, de quatro feito um cachorro, a farejar a porra de um brinco. Minha mulher vai chegar de viagem daqui a umas duas horas. Ela, as crianças e o cachorro. Se eu não achar o brinco antes de qualquer um deles, estou ferrado. O quarto ainda está de pernas para o ar e eu me sentindo um crápula. Me sentindo, médio. Foi bom. Minto. Muito bom. Minto. Ótimo, virar a loura pelo avesso, conspurcando meu próprio leito conjugal. Ia começar a arrumar a casa quando o telefone tocou.
“Perdi um brinco aí”, ela disse; eu gelei: “Aí, onde?”. A pergunta soou meio idiota. “Sei lá”- a voz macia respondeu pelo outro lado da linha. “A gente fez amor pela casa toda”. Fiquei mudo um tempão. “Alô”- novamente o veludo da voz. A Loura deve ter repetido o alô umas dez vezes. “Pedro?”- meu nome nem Pedro é. “Vê se não liga mais pra cá” , falei a primeira coisa que me veio à cabeça. “Cachorro! Da próxima vez deixo sua mulher achar o brinco”. Não vai haver próxima vez, pensei sem muita firmeza, desliguei o telefone da tomada.
Prioridades: encontrar o brinco, arrumar a casa, apagar as pistas, não necessariamente nessa ordem. Porra, eu podia ter perguntado como é o brinco! De ouro, pérola, estrelinha, pingente, bolinha...bem, agora já foi. Natália, Natália. Não chegue agora, meu bem. Fure um pneuzinho, pare no Rancho da Pamonha, pegue uma blitz da polícia rodoviária, qualquer coisa do tipo. Acidente, não. Meus filhos não podem sofrer um arranhãozinho. Cadê o brinco? Porra! Calma. Vamos reconstruir os passos. Cozinha, primeiro.
A loura, só de avental e salto alto, preparando um tagliatelle com ervas finas. Eu, abrindo a primeira garrafa de Casillero del Diablo, Marvin Gaye espalhando a voz pelo dolby estereo: “Get up, get up, now let’s make love tonight”.... Esquece isso, canalha! Não dá. Eu, colado na marquinha do biquini, ajudando a mexer o molho, mordendo sua orelha... O brinco, porra! Nem reparei se ela estava de brinco! Eu, com a mão por dentro do avental, segurando o seio dela, a loura rindo, perguntando se eu queria que o molho desandasse... O molho vai desandar é se eu não achar o brinco e a Natália achar. Natália, Natália, meu amor, por que você aparece em minha cabeça nessas horas? Quer fazer com que eu me sinta culpado? Tá bom, sou culpado, mas juro que esta foi a primeira vez. Este ano. Nada na pia, nada embaixo do escorredor de pratos, nada embaixo da grelha do fogão. E se o brinco caiu no molho e eu comi? Não, eu teria notado, mesmo que fosse uma perolazinha de nada. Você é louco, cara. Como é que traz uma mulher como essa para dentro do recesso do seu lar, templo sagrado onde seus pimpolhos habitam; santuário da sua esposa fiel. Onde é que você estava com a cabeça? No colo da loura, depois do jantar maravilhoso que ela – já meio alta após a garrafa de Casillero – servira só de gravatinha borboleta e guardanapo de linho branco pendurado no braço.
No colo da loura. Ela já sem o guardanapo – mas ainda de gravatinha – a folhear meus gibis eróticos: Valentina, de Crépax; Druuna, de Paolo Eleuteri Serpentieri; O Clic, de Milo Manara. Estou tentando recordar nossos passos para descobrir onde o brinco pode ter caído. Os passos. Marvin Gaye se foi e Astor Piazzolla atacou de Mano a Mano. Passos de tango com a loura só de salto e gravata borboleta, o cabelo preso no alto da nuca, atrás das orelhas, a orelha onde deveria estar o brinco que eu não vi. Porra! Uma hora dessas, a Natália já deve estar na Marginal Pnheiros. Tomara que o trânsito esteja infernal. Sim, ainda é cedo, todo mundo está vindo para o Centro trabalhar. Aliás, eu deveria estar indo para o Centro trabalhar. Sim, as pistas devem estar todas congestionadas na Marginal, espero.
As pistas. Abrir todas as janelas, deixar o ar circular. Natália tem olfato de perdigueiro. Ai, cacete! Deus queira que ela não sinta nenhum cheiro de perfume, eu não estou sentindo. Trocar os lençóis e fronhas, rápido. O brinco. Pode bem Ter caído embaixo da cama ou se perdido nos lençóis. Se perder nos lençóis. A voz macia dizendo: “Vem amor, se perder nos lençóis” Desculpe, Natália, mas não dava pra deixar passar. Sou um pústula, eu sei. Abominável, no mínimo. Eu penitencio: ando de quatro como um cachorro se você quiser, prometo à minha Nossa Senhora, mas me ajude a achar esse brinco maldito.
Aqui no quarto, no canto, tem uma poltrona Le Corbusier, que a Ná usa pra ler e que eu usei para colocar de quatro a gazela dourada. Que vergonha. Mas ela estava linda como uma estátua de Rodin. O brinco pode ter caído ali, no canto, enquanto eu a cavalgava. Não, não está, não caiu. Porra! Seu panaca! Se você se safar dessa, nunca mais, ouviu? A língua da loura na minha orelha. Eu não ouvi nada. Eram só fluidos, fluidos diversos; e o ouro dos pelinhos da coxa daquela valquíria do sexo, tremendo junto com suas pernas, flamando como minúsculos estandartes. Porra! Vou ter um troço. Minha respiração está ofegante e estou coberto de suor. Tenho que achar o brinco; e antes que Natália chegue, tomar um banho, se der tempo. O banheiro! Só pode estar lá! Claro! Eu vi a deusa loura colocando de volta nos dedos os anéis que deixara num canto da pia. Ela bem que pode ter colocado de volta os anéis e esquecido os brincos. Um deles, pelo menos. Ou os dois. Os dois. Eu e ela na jacuzzi que Natália mandou instalar. Isso não se faz. Mas eu fiz. Se eu fosse outro estaria profundamente arrependido; eu quero me arrepender, mas não consigo, como não consigo achar a porra do brinco! Minha esperança é que tenha caído no ralo, ou quem vai escorrer pelo ralo é o meu casamento feliz de oito anos, um casal de crianças lindas, um lar harmonioso e uma esposa que é um tesão, uma fera na cama, a melhor trepada do mundo, criativa, bem-humorada, inteligente, uma mulher de parar o trânsito, na flor dos seus 27 anos; e eu, cretino, trepando dentro de casa com uma loura burra – mas gostosa, reconheço – que não sabe nem onde põe os brincos. Talvez minha Ná já esteja no parque Villa Lobos, que é perto daqui. Deixa eu colocar o telefone de novo na tomada. Pronto. Ouvi um latido. Pronto. Adeus, mundo cruel. O telefone e a campainha tocaram ao mesmo tempo. “Alô”. Tenho que abrir. Seja o que Deus quiser.
“Pedro?”- a voz macia – “Tem mais de duas horas que estou ligando praí e só dá ocupado. Ó , não precisa se preocupar, achei o brinco. Estava na bolsa.” Desliguei e corri para a porta. Natália abriu o seu sorriso maravilhoso de 32 dentes perfeitos. Tive uma ereção
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Thomaz de Molina (Batata)

terça-feira, 30 de agosto de 2005

Experiência no presídio

Outro dia fiz uma entrevista com um rapper que está preso. Chama Dexter e a entrevista está no especial sobre Hip Hop da revista Caros Amigos. Fui, confesso, meio apreensivo até o presídio onde ele está – ou estava, já não sei mais – na Penitenciária II de São Vicente, litoral de São Paulo. O que marca o local são os cenários e o sentimento. O dia estava cinza, chuvoso, chato, sem ação, mas lá o baque é forte. Ação e reação. Pessoas sérias, lógico, mas um clima tenso que parece que a qualquer momento algo vai acontecer. Os caras lá, encarcerados, pagando seus erros, uns mais sérios, outros nem tanto. De certo, todos sem rumo, presos as grades, sem camisa, fumando, andando em círculos, imagino, só pensando na liberdade. Fiz meu trabalho, mas não saia da cabeça o pensamento de que esse sistema não recupera ninguém. É ambiente pra piorar o cara que já chega fudido. Num trecho da entrevista, o Dexter, gente fina, batalhador, “guerreiro” como ele próprio se intitula mandou a seguinte frase: “Ao contrário do que se espera do sistema carcerário, que deve ter uma política de recocialização, de correção e de incentivo, ele produz cada vez mais monstros. Infelizmente, o sistema carcerário não recupera ninguém, a recuperação vem do interior.” Tá aí, em duas horas lá cheguei a mesma conclusão.

sábado, 27 de agosto de 2005

Mensagem a Garcia

A vida é feita de instantes. A frase não é original, mas faz sentido. Domingo à noite, terminado o encontro no Salão de Idéias da Bienal, ao lado de Antônio De Franceschi e Eric Nepomuceno, que resultou em uma conversa agradável, acho que boa para o público, eu estava saindo, quando a jovem me abordou: - O senhor trabalhou com meu avô! Na Última Hora! Olhei para ela. Morena bonita, olhos brilhantes, jeito encabulado. Tanta gente trabalhou naquele jornal extinto, hoje lembrado em manuais da história da imprensa. Primeira fase de minha vida dentro desta cidade. - E quem era seu avô? - Celso Jardim. Então, li o seu crachá: Beatriz Jardim. Fiquei olhando para ela e me lembrei que o Celso se dirigia aos repórteres como: meu jovem. Ele devia ser dez anos mais velho do que eu. Chefe de reportagem, sempre bem vestido, impecável, terno e gravata, os cabelos (começavam a rarear) lisos bem penteados. No primeiro dia, implicou com minha camisa lilás, esporte, um de meus orgulhos em Araraquara. Devia ser horrenda, mas era o que eu tinha para ser diferente, num tempo em que camisas coloridas eram vetadas aos homens. Devíamos nos contentar com preto, branco, azul-marinho, verde escuro, cinza. Anos 50, anos dourados? Antes mesmo de me dar uma "mensagem a Garcia", Celso recomendou: "Não me venha com essa camisa. Nunca mais venha sem paletó e gravata." Ante meu olhar amedrontado (o mundo me fazia medo), ele explicou: "Outro dia, um repórter foi entrevistar o cardeal Motta que se recusou a receber jornalista sem gravata." Olhei em torno, todos engravatados. Naquele dia, comprei outra camisa Volta ao Mundo, de náilon, lavava uma, usava a segunda, no dia seguinte, invertia. O problema daquelas camisas é que não podíamos suar, ficava um desconforto enorme. Celso Jardim me deu o primeiro emprego, me deu força, eu que cheguei a São Paulo sem saber o que fazer e caí naquele jornal por acaso, fiquei por desfastio. Fui escolhido, não escolhi. Celso era educado, mas duro. A primeira matéria que entreguei, foi lida, ele me chamou, trocou parágrafos de lugar. "Comece acenando com o que aconteceu. Coloque uma informação forte, desenvolva e deixe um gancho para o final, assim você prende." No dia seguinte, outra matéria. "Corte palavras desnecessárias. Concentre no assunto. O que não tiver a ver com a matéria, dispense. Economize. Espaço em jornal é caro. Escreva muito em poucas frases. Tem um escritor americano que aconselha: se falar de uma faca em um conto, a faca vai ter de fazer parte da ação. Se não fizer, dispense, estará desviando a atenção, prometendo uma coisa que não vai se cumprir." Depois, soube, o escritor era o Hemingway. Às vezes, entregava um recorte. "Leia, dê seqüência a este assunto." Tinha de saber como transformar aquela notícia curta em reportagem. "Se conseguir uma manchete, vou te considerar jornalista." Manchetes. Todos queriam dar, eram nossas medalhas. "E onde vou encontrar esse homem?", indagava, se havia um nome citado. Então, vinha a frase: "Mensagem a Garcia, meu jovem." Um repórter veterano, Hélio Siqueira (onde andará?), estrela de UH, imbatível em matérias sensacionalistas, me deu a mão: "Garcia era um general. Um soldado recebeu uma ordem de entregar uma mensagem a ele. Ninguém sabia onde Garcia estava, mas o soldado entregou a mensagem. O Celso quer te dizer que o repórter tem de ser curioso, investigativo, detetivesco, intrometido, sem medo.Mensagem a Garcia significa: execute a missão impossível." A enciclopédia me ensinou que houve cinco Garcias. No Equador, na Venezuela, na República Dominicana, no Chile e na Argentina. Qual era a do Celso? Um chefe irônico, gozador (o termo hoje é zoar), não perdoava ninguém. Mas incentivava, principalmente o bando de garotos que entrou no jornal naquele março de 1957. Eramos dez, admitidos ao mesmo tempo, todos deram certo. Ele obrigava a encarar desafios. Depois de um tempo, já o jornalista aclimatado, Celso lia a matéria, porque lia tudo, antes de passar ao secretário do jornal que a colocaria nas páginas. Chamava o redator. Quando a gente chegava, ele rasgava o texto e recomendava: "Faça de novo. Bem-feito. Você é melhor do que isso." Rasgava duas, três vezes, se preciso. E nos sentávamos, dispostos a fazê-lo engolir o papel rasgado. De cada vez, o prazo diminuía, o jornal tinha horários rígidos. Assim, aprendemos a escrever rapidamente, sinteticamente, usando o essencial. Um dia, fui atrás de produtores de café que deveriam opinar sobre um assunto qualquer. Ninguém quis falar. Voltei. "Não tem matéria." E ele: "Por quê?" Cansado de andar, suando a camisa Volta ao Mundo incomodando, justifiquei: "Ninguém quis falar." Celso, zombeteiro. Detestávamos aquele riso zombeteiro, sem perceber que ele estava desafiando. "Não te passou pela cabeça que a matéria é essa? Por que não falaram? O que escondem? Qual a jogada? A tramóia? A intenção? Uma reportagem mostra o porquê, decifra o mistério, esclarece." Quando partíamos para uma missão difícil, ele advertia, no que era secundado pelo Samuel Wainer, o dono da UH. "Se não conseguir a matéria, mande sua credencial de volta pelo fotógrafo, nem precisa aparecer mais aqui." Assim era o Celso, que formou ao menos uma geração na Última Hora, a UH. Tinha a paciência de ensinar, perdia a paciência, mas comandava sua equipe "jovem". Ainda existem tais editores? Que gostam de ensinar? Aquele homem, que morreu há anos, me formou, aparou arestas. Ele chegou a ver o início de minha carreira literária, ficou contente com meus primeiros livros. Então, se compreende a minha emoção, 45 anos depois, no Salão de Idéias, ao deparar com Beatriz, a neta dele, ligando os elos, eliminando o tempo, me fazendo ver a dívida que tive com um jornalista que me moldou. O nó ficou na garganta, pouco falei com Beatriz. Ao ler este meu texto, ela compreenderá como o homem de 65 anos que tinha acabado de falar sobre livros, ao chegar a porta e encontrá-la, se tornou, por segundos, o jovem de 20 anos que, auxiliado pelo jornalismo, chegou à literatura.

quinta-feira, 25 de agosto de 2005

Tá certo, mas nem tanto

Tá certo! Concordo que o bicho tá pegando no Planalto Central, que é muito estranho esse tal Marcos Valério fazer tantas negociatas escusas com o PT e, ao mesmo tempo, estar intrincado com outros partidos do tipo PSDB. Seria lobista esse Marcos Valério? Concordo que o José Dirceu esteja com a corda no pescoço, que o ex-secretário do PT, Silvio Pereira, cagou ao aceitar o Land Rover, modelo Defender, lindo carro, dos meus mais distantes objetos de desejo. E o Delúbio Soares, seria o tesoureiro do PT mesmo? Cá pra nós, o seu depoimento na CPMI foi dos mais covardes da história desse país. Não respondeu nada, ria, e ponto final. E o Roberto Jefferson do "mensalão"? Acusado de participar de um esquema de corrupção nos Correios virou herói, um "Macunaíma" às avessas - até no programa do Jô Soares esteve, celebrado como se nenhum erro tivesse cometido, aplaudido, cantou e a platéia ficou triste no final: "ahhhhh". O ladrão das vielas, becos e periferias não têm perdão. O ladrão engravatado tem; fala bem, engana, faz rir, afinal, a tragicomédia brasileira é isso mesmo, pizza pra todo mundo.
A reação em cadeia não termina aí. De uma denúncia surge outra, outra e outra. Aí apareceu a ex-secretária de Marcos Valério, Fernanda Karina, fez lá seu papel e virou celebridade. Diz querer 2 milhões para posar nua na Playboy, que desmentiu a história e pra não ficar chupando dedo Fernanda garantiu umas poses estranhas na Revista da Folha do dia 31 de julho. Silvio Lach, em artigo publicado no Jornal do Brasil é que tem a razão: "Isso é uma inversão de valores. Não é a revista que tem que gozar com a gente é a gente que tem que gozar com a revista".
A panela fervendo foi escaldando um a um - Dirceu, Delúbio, Silvio Pereira, Genoino, Waldemar Costa Neto e afins como o homem da cueca dos 100 mil dólares, curiosamente assessor do irmão do ex-presidente do PT, José Genoino.
Tá certo! A história é cabeluda. Corrupção parece ter. Nesse ponto, todos, dos mais céticos e ferrenhos petistas ao mais direitista e reacionário, concordam. Sem ingenuidades se sabe que esse tema é crônico. Bem sabe o leitor que a quantidade de informações que a mídia grande nos faz engolir é absurdamente impossível de assimilar. Teríamos que ficar 24 horas por dia assistindo televisão, lendo os jornais, plugados na grande rede e ainda assim não seria o suficiente. Se não dá, nos resta formar opinião com o pouco que conseguimos ler e assistir. Agora, nesse vendaval algumas coisas são intrigantes: o posicionamento da mídia e o comportamento de alguns políticos.
A grande mídia age de forma assustadoramente parcial. Jornais como o Estadão, Folha de S. Paulo e revistas como a Veja são, de longe, anti-Lula e denuncistas baratas. Ter posição não é ruim, o ruim é ter posição velada e usar do denuncismo maldoso, sem apuração, manchetando primeiras páginas como se fosse o supra-sumo. Como fez a revista Veja que colocou declaração de José Dirceu sem ouvi-lo. Estranhamente nada que se refira ao ministro da Fazenda, Antonio Palloci, é publicado. Parece claro - veja bem, parece - que ele é preservado por seguir o modelo que tanto interessa às elites brasileiras.
Tá certo! É estranho afirmarem que o Lula não sabe de nada. Agora, o mais sacana é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso posar de santinho. Ele privatizou o país! Entregou de bandeja uma das maiores mineradoras do mundo - a Vale do Rio Doce, só pra citar um dos casos. E os deputados do PFL na televisão? Jorge Bornhausen e o vice-governador de São Paulo, Cláudio Lembo, pagando de éticos, dizendo que "é o pior estado de corrupção que o país já viveu". Quem era o vice-presidente no governo FHC? Não era do PFL? E o ACM não é do PFL? Quem não lembra do escândalo do Painel do Senado?
Concatenar as idéias é algo complicado, caro leitor, por isso, a atenção deve ser total, pois nessas horas de crise os corvos aparecem aos montes. Discernir entre uma notícia e outra, uma manchete e outra, uma declaração e outra é exercício mental árduo. O fato é: não acreditem em tudo o que lêem. Não julguem antes de obter informações detalhadas e, se possível, comprovadas. A imprensa tem o poder de moldar a opinião pública, tem o poder de derrubar presidentes, entronizar ou decapitar o moral de pessoas.
Um adendo: na última Festa Literária Internacional de Parati (Flip), numa mesa-redonda composta pelo rapper carioca MV Bill, pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares e pelo cronista Arnaldo Jabor se deu um exemplo de como é o pensamento das elites. Figura conhecida no país, famoso, respeitado e formador de opinião, Jabor declarou à platéia que o vaiava após ter elogiado o período FHC: "Vocês são uns ignorantes. Vão estudar!". Emendou ainda sob vaias: "Se não fosse o Palocci, vocês estariam batendo panela nas ruas, com fome, que nem na Argentina".
O que pensar disso? Como pôde comparar o governo neoliberal iniciado por Carlos Menem que terminou com o panelaço na era de De La Rua com o atual cenário brasileiro? Não passar fome é o que esse país tenta há anos com inúmeros projetos sociais que nunca dão certo. É injusto ele fazer essa comparação. Sua opinião ao menos foi sincera, coisa que nunca foi diante das telas. Se todos os veículos de mídia fossem legítimos e honestos em suas posições, a história seria outra. Jabor ainda finalizou: "Mas podem vaiar, isso é bom, significa que vocês pelo menos têm opinião". É assim que pensam as elites e os donos da mídia. Não importa se privatizar o Brasil é ruim, o que importa é o jogo capitalista, de poder, de interesses pessoais, o jogo da grana mais alta, da mala mais cheia. O povão é preterido sempre, infelizmente.
Cá estou numa crise interna e folheando os jornais, vendo o noticiário, lendo o que dá e outra dúvida surgiu: por que a mídia grande não fez estardalhaço sobre a história do banqueiro Daniel Dantas, dono do Opportunity, que injetou 150 milhões de reais nas contas das empresas de Marcos Valério? Não posso crer que é somente pelo fato de ele ser dos maiores anunciantes das empresas de telefonia na mídia. Seria teoria da conspiração demais, não é mesmo?
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