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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 15 de março de 2012

lições


Imagine o Rio de Janeiro em 1965. Isso mesmo, quarenta e sete anos atrás. Vamos lá: tinha a bossa nova com seus barquinhos e bolinhas de sabão. Tinha o povo em pé e feliz na Geral do Maracanã. Tinha a barca cantareira fazendo-se de ponte entre o Rio e Niterói. Tinha o vendedor de mate gelado nas areias escaldantes de Copacabana.

Tinha, e ainda tem, o jogo do bicho. Sempre popular, com toda gente fazendo a sua fezinha. Lembro da Alzira, empregada doméstica, que a vida inteira apostou num bicho só, o jacaré. Entrava ano, saía ano. E numa véspera de Carnaval o jacaré deu uma bolada para ela. Lembro dos dentes da Alzira rindo de felicidade.

Para mim, então uma garotinha, o mundo soava suave e promissor. O mar era o céu. A floresta da Tijuca, uma Amazônia inteira. É claro, havia sofrimento: o governo militar, a igreja conservadora, o machismo ainda enaltecido, o racismo debaixo dos panos, a pobreza nos subúrbios, a miséria nas favelas.

Porém para a maioria das crianças, a parte ruim mesmo era a Escola. Autoritária e burra. Já sei, não posso e não devo generalizar. No entanto a minha escola, o Grupo Escolar Soares Pereira, era um matadouro de iniciativas. O prédio era até bonito. Um casarão tijucano, no estilo neocolonial luso-brasileiro. Em frente dele tinha uma praça, a Xavier de Brito.

Essa praça foi importante, pois da janela da minha sala de aula eu a namorava com uma paixão tremenda. Tudo nela - as árvores, os pássaros nos galhos, o imponente chafariz de bronze, a gangorra - era o avesso da minha escola. Antípoda dos corredores proibidos, da fila dos alunos na merenda, do mau humor das professoras, do meu dissabor de aprender pela decoreba.

Filha de pais ateus, eu era obrigada a assistir às aulas de religião. Era Jesus Cristo para cá, Judas Iscariotes para lá e no meio uma tal de Madalena Arrependida. Histórias confusas em aulas mais incompreensíveis do que se fossem de javanês. E vinha a ameaça da catequista: "Quem não crê em Deus está à beira de um abismo". Batata! Eu ia e voltava da escola, temendo que de repente a rua se abrisse me matando.

Também teve a vez da grande humilhação. A professora pegou meu caderno com letras garranchadas e páginas amassadas. Na sequência, ela o comparou com o caderno do Ernani, desgraçadamente com letras perfeitas e páginas impecáveis. Na frente de toda a turma, exclamou: "Uma menina com um caderno mais porco do que o de um menino"!?!

Deixei a Soares Pereira em prantos. Eu era mais porca do que um menino! Pior, mais porca do que o antipático Ernani! Lembro que corri para a Xavier de Brito esperando que as árvores, os pássaros nos galhos, o imponente chafariz de bronze, a gangorra me dessem consolo. Não deram.

Mas a espantosa lição, aquela que calou mais profundo na minha consciência de nove anos, estava por vir. Antes tenho que contar da merenda servida na Soares Pereira. Invariável em dois: ou uma caneca de mingau, ou uma caneca de sagu. Gosmentos. Naquela época, as crianças mais pobres eram as que sempre estavam na fila da merenda. Eu quase nunca.

Pois numa manhã qualquer, a bedel dona Iracema, de quem nunca vi um sorriso, entrou na sala de aula com um bloquinho em punho. Perguntou quem merendaria naquele dia. Estranhei. Nunca ninguém havia feito essa pergunta. Aliás, excetuando a tabuada e o bê-a-bá, ninguém perguntava nada para a gente. Me bateu uma dúvida se levantava o dedo ou não. Mas ao lembrar do mingau e do sagu fiquei quieta.

No recreio, assisti à cena: a merenda dessa manhã tinha cachorro quente! Saborosa salsicha com saboroso molho no saboroso pão! Mas só para aqueles que tinham dito sim ao mingau e ao sagu de todo dia. Entendi na hora: não havia para todo mundo.

Também compreendi que omitir informações, enganar, manipular eram estratégias para a vitória de um objetivo. Elas não estavam nas cartilhas escolares. Mas estavam, pujantes, na vida.

fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

12 comentários:

Prof. Parisotto disse...

Sublime. Como sempre.

Anônimo disse...

Divino, mais sorte teve eu que não lembro das professoras e muito menos dos colegas da classe, tentando lembrar agora vejo minha professora do joelho para baixo, quando chamado para ler a cartilha vovô viu a uva,caminhava igual um sentenciado a cadeira da morte, beijos ...

Anônimo disse...

Aiai, Fernanda, que triste era a escola. Mas eu adorava a merenda, que era sopa, sempre.

Júnia

Lígia disse...

Querida,
Você sabe, sou apaixonada por você!
Você é minha inspiração, acredito que ainda chego lá...
Todas as quintas já fico na expectativa, esperando seus lindos textos...
Esse me veio tantas lembranças da Paraíba,Pitimbu,da minha escola...

Anônimo disse...

great fê, como sempre.
bjs
ma

dyvaleska disse...

outro dia desses postei uma foto minha aos 7 anos, feita no colégio, onde minha cara mostrava nitidamente meu desapreço pela instituição, tbm fui humilhada tendo meu caderno comparado com outro e a merenda era semelhante. Parece que estudamos na mesma escola. A minha ficava em Santa Catarina.
bjs darya

Anônimo disse...

fernanda querida, obrigada mais uma vez por escrever. suas histórias falam ao meu coração.
beijos, inês

Marisa Ferraz disse...

Sua escrita desfila em minha mente como um filme, tão rica que é!
Quantas lembranças...

Anônimo disse...

Ótima!
Otávio Martins, ou Ana Mineira

Anônimo disse...

Fernanda, adore, seu intimismo, eu gosto de esse estilo seu de dizer, e lembrar as coisas.
Você e uma mulher cheia de beleza e rica de palavras e lembranças amei, rei. Ainda nao sou do Brasil temos muitas coisas em comum em la cultura.

abraços,
da Republica Dominicana !!!!
Kelva

Regina disse...

Fernanda, maravilhosa cronica. infâncias idênticas. Eu aqui em Sampa, numa escola de lata, sofria bulling por parte das profesoras porque minha mãe não ficava de conversê no portão da escola nem eu levava maçã pra elas ( em casa só comíamos maçã quando alguem ficava doente). Eu e Américo e Jordão, dois portuguinhas que tinhasm as mãos calejadas de trabalhar na chacara deles. O episódio do caderno cheio de orelhas se repetiu comigo. Fui antiexemplo pra Claudia, o cocô da classe e do bairro, a que morava na melhor casa do bairro. o parâmetro era esse, social total. ô dureza.

Anônimo disse...

Do seu baú de lembranças surgem tesouros que sua generosa escrita faz vibrar dentro de cada uma, de cada um. Seu texto, um abre-te-sésamo para o coração do leitor. Bisou Régine

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