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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Uma noite no Zicartola


por André Carvalho ilustração Kelvin Koubik "Kino"*

Uma grande fila se formava em frente ao sobrado localizado na Rua da Carioca, 53, no centro do Rio de Janeiro. Todos queriam ver de perto aqueles baluartes, que por muito tempo ficaram escondidos da indústria fonográfica e do público. Naquela noite, o que se ouviria não seria mais o bolero e o samba-canção, ritmos que dominaram as rádios nos anos 50, e tampouco a bossa nova, que ainda ressoava com força naquele ano de 1963. Era tempo de samba, novamente o samba. Cartola e Dona Zica eram os anfitriões. Cada um fazendo o que mais sabia. Ele, cantando suas belas composições, ao som de seu violão. Ela, cozinhando seus saborosos quitutes. A combinação encantava, fascinava e atraía multidões. Tempos de Zicartola.

A roda já estava formada. Manoelzinho da Flauta se aquecia solando um choro de Pixinguinha, acompanhado pelos violões dos irmãos Walter e Waldir e o pandeiro de Jorge dos Cabritos. Enquanto Caçula afinava o cavaquinho, notava-se a satisfação dos presentes. Os músicos formavam o conjunto regional da casa e iriam acompanhar, em poucos instantes, o lendário sambista Zé Keti.

Zé Keti foi o primeiro a se apresentar e trazia em seu rosto um sorriso sincero. Poder viver o samba em sua plenitude, em um espaço onde aqueles bambas eram, novamente, protagonistas, era motivo de celebração. Pouco antes de subir ao palco, travou uma parceria inédita, criando a melodia para os versos de outra figura proeminente do local, Hermínio Bello de Carvalho. Antes de entoar o novo samba - “Pobre não é um / Pobre é mais de cem / Muito mais de mil / Mais de um milhão” -, o sambista da Portela cantou alguns de seus clássicos, como “A voz do morro” e “Mascarada”, acompanhado do regional da casa.

A apresentação do sambista portelense agradava em cheio os presentes. A cerveja era bebida em profusão, sendo servida por quatro copeiras, mulatas de Mangueira vestidas à rigor, em verde e rosa, mesma cor da louça e da decoração da casa. Na plateia, amigos de Zé Keti se acotovelavam nas mesas, espremidas naquele espaço de celebração à música brasileira.

Quitutes caprichados, preparados com carinho pela anfitriã Dona Zica, eram servidos. Pratos como rabada, mocotó, carne seca com abóbora e doces dos mais diversos tipos ganhavam sugestivos nomes no cardápio, cuja ilustração fora criada por Heitor dos Prazeres. Os clientes, então, esbaldavam-se ao pedir o “Filé à Ismael Silva”, o “Doce de coco à Elizeth”, entre outras iguarias.

Dentre as amizades recentes firmadas por Zé Keti estava Carlos Lyra, músico ligado à bossa nova que se encantava com a força da tradição contida nas composições daqueles sambistas. Junto a ele, jovens integrantes do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC–UNE), na ilegalidade por conta do Golpe Militar, faziam daquele espaço, além de uma trincheira cultural, um centro de resistência política.

A nova safra de sambas de Zé Keti trazia outras criações inspiradas. Uma delas causou grande impressão nos presentes. Havia pouco, a ditadura militar instaurara-se no Brasil, gerando um clima de medo e desconfiança. Apesar disso, Zé Keti não se calou. Pediu um sol maior, sendo prontamente atendido pelo cavaco de Caçula, e atacou: “Podem me prender / Podem me bater / Podem até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião / Daqui do morro eu não saio não”. O samba daria origem ao espetáculo “Opinião”, um musical de protesto à Ditadura Militar que juntava ao palco Zé Keti, João do Vale e Nara Leão, e contava com texto de Armando Costa, Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna Filho (integrantes do CPC-UNE), direção de Augusto Boal e direção musical de Dori Caymmi.

Zé Keti atuava como mestre de cerimônia, diretor musical, anfitrião... Cartola gostava de encontrar os amigos, cantar e tocar, mas se incomodava com o tumulto, a falta de tranquilidade e intimidade para ficar quieto tocando o seu violão, compondo suas músicas. Era reservado. Sobrava para seus amigos, como Zé Keti, Hermínio Bello de Carvalho, Sérgio Cabral e Albino Pinheiro, então, a tarefa de organizar e conduzir tudo.

Os versos de “Opinião” ainda ecoavam pelo Zicartola, causando admiração nos presentes – e também preocupação (e se houvesse algum agente da repressão infiltrado ali?) –, quando subiu ao palco o jovem bancário Paulo César, que logo entraria para a história da música brasileira. Havia um porém: Paulo César não era nome de sambista. Inspirados em Mano Décio da Viola, sambista do Império Serrano, então, Zé Keti e Sérgio Cabral decidiram que, a partir daquele dia, aquele jovem de 20 e poucos anos de idade seria o “Paulinho da Viola”, nome que se tornaria grande cartaz na música popular brasileira. Para o número de Paulinho, foram convidados a se apresentar com ele Elton Medeiros, na caixinha de fósforo, Nelson Sargento, ao violão, Jair do Cavaquinho, com suas palhetadas que faziam inveja até mesmo a Jacob do Bandolim, e o tamborim bem ritmado de Anescarzinho do Salgueiro.

Enquanto se apresentavam, Hermínio Bello de Carvalho tomava uma cachacinha com Clementina de Jesus na cozinha. Entre uma dose e outra, o jornalista Lúcio Rangel apareceu, apresentando ao compositor e produtor musical uma das grandes estrelas da música brasileira do começo do século, que amargava, há anos, um triste ostracismo, Aracy Côrtes. Hermínio olhou para os lados, viu aquelas duas mulheres talentosas e desconhecidas da nova geração, mirou a roda de samba, formada por aqueles sambistas de Escolas de Samba, cada vez mais desalojados de seus próprios terreiros, e pensou: “E se eu reunisse esse time em um palco? Acho que isso dá samba!” (pouco tempo depois, Hermínio Bello escreveria o espetáculo “Rosa de Ouro”, musical que reunia as duas cantoras veteranas, além de Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nelson Sargento, Anescarzinho do Salgueiro e Jair do Cavaquinho).

Após os músicos “da casa” se apresentarem, era hora do Divino Cartola mostrar toda a beleza de seu repertório. Dona Zica, então, tinha que acordar seu companheiro, que não gostava de bagunça, madrugada e sereno – seu negócio era a boemia vespertina. De chinelo, contrariado e emburrado, ele cantava alguns sambas, antes de voltar a fazer o que mais gostava naquele horário: dormir.

Depois da apresentação do anfitrião Cartola, Hermínio Bello de Carvalho assumiria o posto de mestre de cerimônias para apresentar o último ato da noite. Era chegada a hora de homenagear os grandes nomes da música popular brasileira com a “Ordem da Cartola Dourada”, honraria idealizada pelo jovem poeta. Naquela noite, a celebração seria destinada a Ciro Monteiro. Satisfeito, feliz, realizado, o sambista que fez história na Era de Ouro do Rádio recebia o reconhecimento por sua destacada obra.

Ciro Monteiro estava emocionado, feliz em poder cantar seus grandes sucessos para aquela plateia, que ouvia tudo compenetrada, absorvendo cada instante, cada acorde, cada síncope, cada divisão: “Baiana que entra na roda só fica parada / Não canta, não samba, não bole, nem nada / Não sabe deixar a mocidade louca...”. Grandes clássicos do samba, como “Falsa baiana”, de Geraldo Pereira, eram cantados por ele e acompanhados por todos. Uma grande animação pairava no ar.

Se dependesse do anfitrião Cartola, no entanto, o samba não demoraria muito para acabar. Irremediavelmente, ele fazia com que a casa fechasse às 23h, levando o público a buscar outras alternativas de diversão nas redondezas, como a Gafieira Estudantina.

O saldo final das noites era pouco dinheiro, muita conta pendurada (“parecia uma mangueira cheia de galho, de tanta pendura que tinha”, dizia Dona Zica), e a certeza de que o casal não nascera para ser empresários da noite. Cartola era sambista e Dona Zica, quituteira. O Zicartola não duraria muito, encerrando suas atividades em 1965.

Neste curto tempo de existência, o restaurante foi palco da consagração definitiva de Cartola e do reconhecimento de gênios como Nelson Cavaquinho e Zé Keti (até então lembrados apenas no meio musical, entre compositores e sambistas de Escolas de Samba), além de ter dado o pontapé inicial na carreira de Paulinho da Viola, uma das mais sólidas entre os sambistas de todos os tempos.

O Zicartola foi um templo do samba, um espaço onde se reunia a fina flor da música popular, entre veteranos compositores de Escolas de Samba e jovens sambistas, que iniciavam ali trajetórias musicais de grande relevância. Em tempos em que se destacava no meio musical a bossa nova, o bolero, o samba-canção e até mesmo a novidade do rock, graças a Cartola e Dona Zica, os sambistas reencontraram um lar, um espaço para cantar, compor, tocar samba, celebrar a arte que brotava espontânea entre aqueles compositores populares. No Zicartola, o samba voltava a triunfar.









1 - Cicatriz (Zé Keti – Hermínio Bello de Carvalho) – Zé Keti (1967)
2 – Opinião (Zé Keti) – Zé Keti (1996)
3 –Falsa baiana (Geraldo Pereira) – Ciro Monteiro (1944)
4 – Pout-porri Rosa de Ouro I (Vários compositores) –Conjunto Rosa de Ouro (1965)
5 – Pout-porri Rosa de Ouro II (Vários compositores) –Conjunto Rosa de Ouro (1967)
6 – Coração vulgar (Paulinho da Viola) – Conjunto A Voz do Morro (1965)
7 – Sorri (Zé Keti – Elton Medeiros) - Conjunto A Voz do Morro (1965)
8 – Cuidado (Nelson Sargento - Marreta) – Conjunto A Voz do Morro (1966)
9 – Tive sim (Cartola) – Cartola (1974)
10 – O sol nascerá (Cartola – Elton Medeiros) – Cartola (1974)
11 – Pode sorrir (Nelson Cavaquinho – Guilherme de Brito) – Nelson Cavaquinho (1973)

*André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba. Ilustração de Kelvin Koubik, "Kino", colunista do NR, artista visual, grafiteiro e músico de Porto Alegre

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