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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Tragédia de erros

Morei em Niterói aos quatorze anos de idade. A cidade era então capital do estado do Rio de Janeiro. Portanto estamos falando de muito tempo atrás. Precisamente 1970. Pois bem, nessa época eu era apaixonada por teatro. Queria subir no palco de qualquer maneira.

O Teatro Municipal de Niterói havia organizado um curso para pretendentes a atores. Foi muito bom, pois me fez desistir da coisa toda. Durante o curso ficou evidente minha falta de talento. Do mínimo talento. Na avaliação final, o professor gentilmente explicou que me faltavam: postura no palco, boa dicção, soltura do espírito.

Engraçado que essa passagem da minha vida se encontrava no quarto dos fundos da memória. A faísca que fez ela saltar para a sala de visitas foi o incêndio medonho da Boate Kiss na gaúcha Santa Maria. Esse que matou 235 garotos e garotas na casa dos vinte.

Antes que a leitora ou leitor conclua que estou variando, explico. Uma tarde a caminho do curso no Teatro Municipal dei de cara com uma moça de rosto desfigurado. Na minha lembrança, faltava-lhe o nariz. O resto era uma máscara esculpida pelo fogo. Senti um choque de altos volts.

Ao chegar no Teatro comentei o que havia visto. O professor, o mesmo que revelaria a minha falta de talento, disse que provavelmente a moça seria uma vítima do incêndio do circo, ocorrido nove anos antes. Acrescentou que centenas de pessoas ficaram deformadas pelas queimaduras.

A história do incêndio é esta: 17 de dezembro de 1961. Um domingo de verão escaldante que atraiu perto de três mil pessoas para a matinê do Gran Circo Norte-Americano (que de gringo só tinha o nome). Não precisa dizer que a maioria dos espectadores eram crianças.

Num número de trapézio, de repente, o fogo surgiu debaixo da lona e numa velocidade furiosa subiu, subiu. Pânico! Como não havia saídas de emergência (surpresa?) e a lona era de material altamente inflamável (surpresa?), o Gran Circo se transformou numa ratoeira incandescente.

Total oficial: 503 mortos e centenas de sobreviventes mutilados. A comoção tomou conta do país. Dizem que o então presidente João Goulart, ao visitar as pessoas queimadas no hospital Antonio Pedro, foi para um canto e chorou. Fica a dúvida: foram lágrimas de compaixão ou de vergonha pela incúria de quem devia fiscalizar?

O que sei é que o rosto da moça de Niterói atrapalhou meu sono por muitas noites. Depois, é claro, escapuliu para o baú sem fundo das recordações. Lá ficou por 42 anos. Ressurgiu na manhã do último domingo quando conectei a internet.

Vale a pergunta. Na hora que passar a comoção pelas vítimas de Santa Maria e mais uma vez a memória se recolher, quantos anos essas imagens de horror levarão para despertar novamente? Oxalá que jamais.


fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Plínio Marcos e os Pagodeiros da Pauliceia

 “Um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre” (Plínio Marcos)

Preservar a cultura brasileira que brota espontânea, autêntica e livre, escondida e marginalizada pela indústria cultural é trabalho árduo. É batalha para pessoas que acreditam no poder da arte popular como instrumento de emancipação social e política. É compromisso para aqueles que desafiam regras, imposições, censura e perseguições, mas não arrefecem até que a beleza contida em versos, melodias, traços e cores prevaleçam. Quem compra essa briga, quem encara esse desafio é, de fato, herói. Proibido, maldito. Herói maldito. Abram alas para o maior de todos os heróis malditos: Plínio Marcos, dramaturgo, ator, escritor, diretor, jornalista, palhaço. Defensor incansável da cultura popular. Sambista.

Plínio Marcos foi o dramaturgo que mais incomodou a ditadura militar. Sua linguagem do submundo, das “quebradas do mundaréu”, dava voz a marginais e marginalizados. Autor de clássicos que passaram décadas proibidos pela censura, como Barrela e Navalha na Carne, tinha um texto duro e expunha, de forma latente, a realidade de uma camada social que não existe aos olhos de quem não quer vê-la. Ao expô-la, colocando-a dentro dos palcos, incomodava. Em tempos onde a mão de um censor pesava mais que a caneta do artista, incomodar significava ser proibido. Maldito.

Mas a paixão pelo samba e a necessidade de apresentar ao público histórias e músicas de compositores desconhecidos, provenientes das Escolas de Samba da capital paulista – anônimos, gênios de pouca popularidade –, não podia ser calada. E Plínio Marcos cantou e contou as histórias “dessa gente que só berra da geral sem nunca influir no resultado”.

Acompanhado pelos Pagodeiros da Pauliceia, promoveu espetáculos em teatros de São Paulo. Destas apresentações, nasceram dois espetáculos, que posteriormente foram registradas em LPs: Balbina de Iansã, em 1971, e Humor Grosso e Maldito das Quebradas do Mundaréu, em 1973 (este último, relançado em CD em 2012, pela Warner Music). Os sambistas ainda atuariam em outra peça, Jesus Homem, em 1981.

“Não posso aceitar o mundo sem a participação cultural de um povo onde me criei. Não posso aceitar o mundo sem berimbau, caipirinha, bumba meu boi, sem feijoada, sem farofa, sem macumba” (Plínio Marcos)

Apaixonado pela produção realizada pelos sambistas da terra da garoa, Plínio Marcos batalhou intensamente pela valorização destes artistas populares. Isto não o impediu, entretanto, de valorizar os batuqueiros cariocas. Em 1964, teve censurada, poucos meses após o golpe militar, a peça Nossa gente, nossa música, que reunia compositores como Elton Medeiros e Haroldo Costa. Depois, em 1977, escreveria, contando com a ajuda de pesquisa de seu grande amigo José Ramos Tinhorão, a peça Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus amores. Finalmente, em 1988, começou a escrever uma peça em homenagem a Francisco Alves, o Chico Viola, mas não deu continuidade ao projeto.

Apesar deste flerte com o samba carioca, eram os compositores da Pauliceia que o cativavam. Eram aqueles anônimos, legítimos poetas do povo, que Plínio Marcos buscava exaltar. Hoje, apesar do esforço do “herói maldito” do Brasil, a maioria dos brasileiros segue desconhecendo estes sambistas.

Quem são os Pagodeiros da Pauliceia?

Geraldo Filme. Natural de São João da Boa Vista, veio para São Paulo ainda na infância, indo residir no bairro da Barra Funda, reduto de samba da capital paulista. Participou ativamente do carnaval paulistano, tendo composto sambas para cordões e Escolas de Samba como Paulistano da Glória, Unidos do Peruche e Vai-Vai.

Geraldão da Barra Funda, como era conhecido nas rodas de samba, frequentou o Largo da Banana, os festejos de sambistas em Pirapora do Bom Jesus e as rodas de tiririca – prima paulista da capoeira baiana e da batucada carioca.

Em 1980, lançou seu único disco solo, Geraldo Filme, pela gravadora Eldorado. Dois anos depois, ao lado de Clementina de Jesus e Tia Doca, lançou O Canto dos Escravos. Com Plínio Marcos, participou dos espetáculos Balbina de Iansã e Humor Grosso e Maldito das Quebradas do Mundaréu.


Zeca da Casa Verde. José Francisco da Silva, classificado por Plínio Marcos como um dos mais inspirados melodistas de São Paulo, nasceu, viveu e morreu na capital paulista. Integrou a Ala de Compositores de Escolas de Samba como Camisa Verde e Branco, Morro da Casa Verde e Rosas de Ouro, onde marcou época, sendo considerado um dos maiores baluartes da agremiação.

Zeca da Casa Verde traz a herança dos sambas rurais, das congadas, onde seu pai, Zé Maquininha, era rei. O compositor participou das três peças em que Plínio Marcos apresentou os sambistas de São Paulo: Balbina de Iansã, Humor Grosso e Maldito das Quebradas do Mundaréu e Jesus Homem.


Toniquinho Batuqueiro. Nascido em Piracicaba, Antônio Messias de Campos, desde menino, teve contato com manifestações culturais do interior paulista, como o “samba de toco” – praticado com o tambu, instrumento de percussão feito a partir de um tronco de árvore – e o cururu. Em São Paulo, participou das rodas de samba de engraxates na Praça da Sé feitas com os instrumentos de trabalho destes sambistas, batucando com a escovinha na caixa de madeira.

O sambista compôs sambas de enredo e de quadra para a Rosas de Ouro, Unidos do Peruche e Unidos de Vila Maria e, em 1995, fundou a Embaixada do Samba Paulista, tendo sido eleito, no mesmo ano, o primeiro “embaixador”. Em 2009, aos 80 anos de idade, lançou seu primeiro e único disco de carreira, pela série “Memória do Samba Paulista”. Suas belas melodias, carregadas de influência de samba rural, no entanto, já haviam sido registradas nos discos Balbina de Iansã e Nas quebradas do Mundaréu, lançados nos anos 70.


Talismã. Poeta carioca que fez história no samba paulista, Octávio da Silva integrou a Escola de Samba Unidos de Rocha Miranda, na capital fluminense, antes de vir para o Camisa Verde e Branco, em 1967, pelas mãos de Inocêncio Tobias, figura lendária da agremiação da Barra Funda. Além de exímio compositor, era artista plástico e possuía grande habilidade para fazer esculturas em papel machê – os carros alegóricos feitos por ele nos carnavais tiravam sempre nota máxima.

Autor do hino do Camisa Verde e Branco, compôs, também, o samba enredo que é considerado o hino do samba paulista, “A Biografia do Samba”, que levou a agremiação ao título no carnaval de 1969. Integrou, ainda, as Escolas de Samba Rosas de Ouro, Morro da Casa Verde, Mocidade Alegre e Unidos de Vila Maria, tendo contribuído com incontáveis sambas de enredo e de quadra para o Carnaval paulista. Com Plínio Marcos, participou de Balbina de Iansã e Jesus Homem.


Silvio Modesto. Outro carioca que veio para São Paulo fazer samba – ainda nos anos 60 – e não voltou mais, é o único sambista vivo que atuou com Plínio Marcos nos Pagodeiros da Pauliceia e nas peças de teatro. Além de cantar e atuar como ator em Balbina de Iansã, também participou de Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus amores.

Figura de grande importância para o Carnaval de São Paulo e do Rio de Janeiro, compôs vários sambas de enredo, tendo emplacado na avenida mais de 20. Ritmista, acompanhou grandes nomes do samba em apresentações e discos – o sambista estava presente na última gravação ao vivo de Cartola. Em 2005, lançou seu único disco de carreira, Oficina do Samba.


Jangada. Sambista e jornalista, compositor e carnavalesco. Marco Aurélio Guimarães é natural do Rio de Janeiro e veio para São Paulo trabalhar nas redações de jornais. Depois de ter passado por várias Escolas cariocas, como a Unidos de Lucas – da qual foi fundador –, Vila Santa Tereza e Independentes do Zumbi, atuou de maneira enfática no Carnaval paulistano, integrando diversas agremiações e tendo ajudado, inclusive, a criar o primeiro regulamento oficial de um desfile, em 1968.

As melodias magistrais de Jangada foram registradas no álbum Balbina de Iansã. O sambista, um mestre do jornalismo esportivo, também atuou, com Plínio Marcos, no espetáculo Jesus Homem.



Escute o samba "Ditado antigo", de Toniquinho Batuqueiro, com o próprio autor. A gravação é do álbum Nas quebradas do mundaréu.



André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba, a ser publicada sempre na terceira quarta-feira do mês. Ilustração de Kelvin Koubik, colunista do NR, é artista visual e músico de Porto Alegre

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Ainda é domingo

Amanheceu segunda-feira, mas na boca permanece o travo da manhã de domingo. No ônibus, dois rapazes que estão na faixa etária média dos mortos de ontem em Santa Maria conversam sobre o assunto: falam em seguranças que não deixaram a galera sair, que às duas da manhã pensa no ferro, que a muvuca correu para o banheiro achando que era a saída, que na hora do apavoro é cada um por si, que a mulherada deve ter morrido no chão porque cai primeiro, que em países de primeiro mundo...

Acordamos todos comentaristas dessa madrugada sufocante que produziu um case para os peritos em segurança de eventos e combate a incêndios, uma tragédia local, uma comoção nacional e o terceiro incêndio em boate mais mortífero da história do planeta, um ginásio com 231 cadáveres e, de acordo com uma enfermeira-chefe, a expectativa de que mais mortos sairão dos hospitais durante a semana.

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A repórter Ana Flor, que entre 2004 e 2011 trabalhou no jornal Folha de S. Paulo e hoje está na agência Reuters, conseguiu entrar no que restou da boate Kiss no fim da tarde de ontem, junto com dois jornalistas de TV, com permissão de um comandante da polícia militar.

Ela viu garrafas de cerveja sobre as mesas, os ventiladores derretidos pendurados nas paredes, muito ferro retorcido no palco e perto dele, a cobertura do teto praticamente toda devastada, sapatos e tênis pelo chão, tufos e mechas de cabelo por toda parte, e sentiu "um cheiro terrível de queimado".

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No mesmo ônibus em que os garotos comentavam, do seu jeito, o assunto do fim de semana, tocou o celular de uma menina. Era uma música de sertanejo universitário, mas poderia ser de uma banda de axé, ou de um funk carioca, ou de um pagode sentimental, ou de um "ritmo" futurista e agitado desses que os aparelhos já trazem de fábrica no sistema operacional, ou o hino de um time de futebol, ou uma piada daquelas do tipo "não vai atender, não vai atender?".

Pois é muito provável que tenha sido essa trilha sonora alegre e irritante que os bombeiros ouviram entre 2h30 e 5h, enquanto atuaram no combate às chamas e na retirada de um, dois, dez, trinta, 120, 200 corpos de lá de dentro da boate beijo. Foi o relato que nos chegou de Ana e outros repórteres, via Twitter: os aparelhos celulares tocavam e vibravam em meio à fumaça e ao calor, no bolso das vítimas. Dezenas de ligações perdidas na pista de dança fúnebre. Ao checar o aparelho de uma garota morta, um bombeiro descobriu, consternado, quem procurava a filha com tanta insistência: "Mãe".

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Em 30 de dezembro de 2004, em Buenos Aires, 191 pessoas morreram e 1.300 ficaram feridas na boate Cromañón, que pegou fogo a partir de um efeito pirotécnico utilizado pela banda que se apresentava. Oito anos depois, com muita pressão dos familiares das vítimas e fiscalização da imprensa, os culpados foram apontados e presos: o vocalista, o cenógrafo e o empresário da banda, o diretor de fiscalização e controle da cidade, o gerente da boate e seu braço direito além de autoridades responsáveis pela fiscalização das boates da capital argentina.

Ontem à noite, o "Fantástico" mostrou a imprensa séria internacional "intrigada", para não dizer chocada, com o fato de a boate beijo estar com o alvará vencido, permitir o uso de sinalizador em shows, colocar para dentro muito mais gente do que pode comportar e fechar as portas para não deixar as pessoas saírem sem pagar.

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O amigo Marcelo Perna compartilhou no Facebook que um amigo canadense lhe perguntou como funciona, no Brasil, "a questão do seguro, se havia seguro em todos os eventos". E ele: "Eu disse que sim, temos seguro em todos os eventos: segura na mão de Deus e torce pra dar certo!".

Felipe Lenhart, jornalista e cronista, amigo deste NR, permitiu a reprodução do texto originalmente publicado em De olho na Ilha

Centenário

Agora virou um tal de celebrar centenário de gente morta que só.

A palavra, aliás – centenário – , existiu para mim muito antes de eu imaginar que pudesse significar uma centúria de anos. Era só um nome qualquer de rua, na verdade da avenida de que eu mais gostava quando era pequeno, porque tinha túnel, e eu adorava passar dentro do túnel, pedia a meus pais que desviassem o caminho só para passarmos dentro do túnel, do túnel acanhado que meu olhar de menino acreditava ser imenso e interminável túnel.

Centenário então ficou sendo nome próprio até meus mais ou menos sete anos, até o dia em que, de passagem por outra cidade – Ilhéus, ou Itabuna talvez – demos pela frente com uma engraçada avenida Cinquentenário. Desparafusando o sufixo, caiu-me nas mãos um imprestável numeral cinquenta. Então caí na besteira de repetir a operação com a palavra centenário, e ela nunca mais tornaria a ser só um nome aleatório de alameda.

Mas queria falar mesmo era dessa mania de gastar papel com centenário de famoso morto que o jornalismo brasileiro achou de pegar. Não que se deva deixar de homenagear quem quer que seja; é só que, sendo jornalista, a gente sabe o mórbido que é listar quem são os mortos que farão cem anos no ano corrente, e ficar contando os dias para chegar o aniversário do morto, e então publicar a matéria, carregada nas tintas ou na criatividade duvidosa, não raro aquela feita há séculos e estocada na gaveta, quando não recauchutada da efeméride passada. Pior é saber que todos os nossos infaustos colegas de imprensa farão a mesma coisa, e que por fim se entulhará o noticiário nacional de uma enxurrada de matérias quase todas meio iguais.

Tenho mais pena dos mortos que tiveram a infelicidade de nascer no segundo semestre, que são os que sangram mais tempo nas páginas dos jornais e revistas, nos especiais e reprises de tevê. Pois recordem-se vocês quanto se inventou de assunto sobre Jorge Amado, nascido em agosto, no ano passado. Que dirá de Nelson Rodrigues, também ele agostino, melancolicamente tornado em mais uma das unanimidades burras que ele próprio abominara. Gonzagão (coitado, foi nascer em dezembro!) foi metido em mil e uma prosápias – incluso numa assinada por este velhaco aqui, a qual teria passado muito bem obrigado sem que fosse preciso tocar-lhe no nome. Aplausos ao velho Rubem Braga, homem todavida precavido: escolheu nascer em janeiro, assim pelo menos falam logo de uma vez o que dele tiverem a falar, e deixam-no em paz no restante do ano. Mas o melhor de todos foi Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, que mesmo depois de morto não poderia perder a piada: enquanto os colegas de geração completam cem, ele vai e completa 90; sarro puro.

Fico daqui pensando em quem serão os mortos centenários de daqui a pouco, em quem os de daqui a cem anos. Fico ademais prometendo a mim mesmo que, no jornal que um dia haverei de criar – na vida ou na literatura – , jamais se tratará centenário nenhum por efeméride, e sim a outros e mais democráticos números, como 47, 83, e mesmo o competitivo 99 (ah, com este daremos furo atrás de furo em toda a mídia centenarista!).

Ou então, bem melhor: só homenagearei centenários de grandes homens que o respeitável público não teve a sorte e a honra de conhecer. Como a buonanima de Franceschino, batizado Amedeo Giovanni Sebastiano Sangiovanni – o meu vovô Chico, famoso por erguer-nos nos braços, a mim e a minha irmãzinha, quando corríamos na direção de sua voz exclamando piccolini, de lá do final do corredor escuro da casa fria da rua da Itália, município de Poções – Bahia.

E não escreverei muito; apenas que tenho tanta pena de não ter conversado mais com você, vovô Chico, porque tinha vergonha de não entender direito o italiano misturado com português que você falava – depois, quando aprendi a falar italiano, foi tarde, já não havia mais você para conversar. E que hoje não lhe cultivo como nenhum mito, mas como um homem simples e bom, com quem até hoje sonho de tempos em tempos, mais nos tempos em que a vida se me afigura difícil. E que sinto tanto orgulho por você ter cruzado o oceano e ter vindo viver aqui, até por aqui morrer, e no final da história ter podido te ver ser aplaudido de pé por todos na rua, no cortejo da casa até o cemitério.

Eis então meu viva, vovô Chico, por seu centenário hoje, por você ser uma lembrança boa daquele tempo bonito em que eu não sabia o que centenário queria dizer.


Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador. 

domingo, 27 de janeiro de 2013

O caneco é nosso

Nota de Rodapé levou o prêmio TopBlog 2012. Fomos o mais votado do país na categoria Notícias e Cotidiano como blog Profissional.

Bora comemorar com muito mais qualidade em 2013. Em nome do time todo, agradeço cada um de vocês. Os que votaram, os que divulgaram e, claro, nossos leitores, galera que faz valer cada texto publicado, cada debate levantado.

Parabéns!

Thiago Domenici

(PS: eu queria dedicar esse prêmio ao meu mestre Sérgio de Souza, pessoa com quem aprendi a essência do que é ser jornalista e fazer jornalismo)

Abaixo, o nosso time mais que merecedor dessa conquista!

⟫ Alexandre Luzzi

⟫ Ana Mendes

⟫ André Carvalho

⟫ Caco Bressane

⟫ Carlos Conte

⟫ Fernando Carvall

⟫ Fernanda Pompeu

⟫ Fernando Evangelista

⟫ Fernando Vianna

⟫ Izaías Almada

⟫ Júnia Puglia

⟫ Kelvin Koubik

⟫ Marcos Grinspum Ferraz

⟫ Moriti Neto

⟫ Ricardo Sangiovanni

⟫ Ricardo Viel

⟫ Tomás Chiaverini


Coisa Íntima # Nós

Série Coisa Íntima
Autorretratos por fotógrafos profissionais e amadores.
Participe, saiba + 

“Tirar a própria fotografia é a terceira coisa mais íntima que uma pessoa pode fazer com ela mesma, depois da masturbação e do suicídio”.

Título: Nós
Descrição: fotografia em baixa exposição
Autor: Michelle Costa
Data
: Março de 2011

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Tela paulistana

Não costumo me hospedar nas casas das pessoas. Tenho verdadeiro pânico de importunar, de invadir, de ser inconveniente, o que nem sempre é compreendido. Além disto, depois de muitos anos viajando intensivamente a trabalho, a privacidade dos hotéis passou a ser tão natural pra mim quanto as agendas loucas que eu tinha que cumprir. Natural e necessária, pois o quarto de hotel era meu momento de solidão, de me desconectar do trabalho e das pessoas com quem tinha que conviver do lado de fora, essencial para me renovar e encarar o dia seguinte.

Há exceções, quando sinto que existe intimidade suficiente e que a minha presença não vai alterar tanto a vida de quem mora na casa – o que nem sempre consigo medir, mas então procuro dar mais espaço para o afeto e a amizade. Então, tenho algumas casas por aí, onde me sinto confortável e relaxada e me permito estar uns dias, desde que não passe de uma semana, porque aí já me parece um abuso insuportável.

Uma delas fica no sétimo andar de um edifício na Avenida Paulista, onde o piso vibra com a passagem constante dos trens do metrô e o rugido do trânsito ocupa todo o espaço, enquanto aquele mundo de gente que viaja ou caminha incessantemente vai compondo a crônica urbana mais alucinada que se possa pensar.

Olhando daqui de cima, o céu parece resignado, talvez até mesmo satisfeito, por abrigar este excesso de tudo que é São Paulo. Penso em subir na janela e de mansinho sair voando baixo, vendo de cima o interminável mosaico dos edifícios, casas, ruas, gentes, veículos, aqui e ali um pouquinho de terra e algumas árvores, uns passarinhos, helicópteros, aviões, e concluir que tudo poderia ser ao contrário, pois daria no mesmo avesso do avesso do avesso do avesso.

Fico querendo. Impede-me de alçar voo uma tela de trama miúda, à prova dos dois felinos moradores do apartamento. Sem opção, aceno para os alunos da sala de aula no edifício ao lado e vou dormir, não sem antes tapar muito bem os olhos e os ouvidos.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

De papel ou de carne?

Faz um ano que não leio nenhum livro de ficção. Não me orgulho, mas também não me repreendo. Simplesmente aconteceu. Depois de décadas como leitora quase exclusiva de literatura, passei a mergulhar em biografias, memórias, autoajudas chiques, grandes reportagens.

O fato é que agora prefiro as personagens de carne e osso. Essas, como nós, são incompletas, sextavadas. Ora decididas, ora vacilantes. Ora cheias de coragem, ora cobertas de medo. Essa gente que respira e transpira no interior dos trens de metrôs, ou dentro dos pernósticos Hyundais.

Gente que sonha alto e realiza baixo. Que trai seu amor. Que deixa passar a grande oportunidade. Que detesta os corruptos, mas molha a mão do guarda. Que foge de si mesma. Em suma, gente sem heroísmo.

Mas também capaz de altas ternuras. Capaz de solidariedade. Capaz de trabalhar por uma vida inteira e morrer assim de repente. Morrer sem ter pintado um quadro, escrito uma página, tocado uma flauta, preparado uma moqueca.

Gente que não chega aos pés de uma Emma Bovary, uma Capitu, uma/um Orlando, um Riobaldo, um Fabiano, um Otelo, uma Julieta, um Don Quijote, uma Ana Karenina, uma Lisbeth Salander. Complete a lista de personagens memoráveis.

Não sei porque minha curiosidade se voltou para a caixa da padaria, o atendente da farmácia, o dono da quitanda, o blogueiro de setenta anos, a jornalista sem jornal, a médica que cuida da minha mãe, o marronzinho da avenida.

Talvez seja uma reação a tantos anos bebendo da imaginação de autores bons e ruins. Anos acompanhando narrativas inventadas. Amando, como uma louca, a arte da ficção. Ou talvez por mesquinhez e vingança já que não escrevi o grande romance, que não criei a personagem estupenda.

Pode ser. Pode ser. Sabe-se lá o que passa pela alma e pela cabeça das personagens de carne e osso. Ou talvez, o meu cansaço seja com as categorias, com as fronteiras de gênero, as etiquetas tão ao gosto das academias.

Quiçá eu esteja atrás do misturado, de uma narrativa-água que transborde da gaveta. Que abandone a dualidade fato-invenção, realidade-imaginação. Por conta disso, é cada vez mais difícil definir que diabo de escrita eu faço.

Pois todos os dias com os dedos no teclado: minto ou escrevo a verdade? Imagino ou investigo? Sou honesta ou trapaceio? Ou será que faço tudo isso junto e ao mesmo tempo?

A pergunta é: quem é mais real? A moça que acabou de tocar a campainha aqui de casa para me oferecer a palavra de Deus, ou o Homem-Aranha escalando prédios de papel machê?

fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Atomatados

Cereal fica em Matinais & Cia. Procuras um biscoitinho para tomar com café? Mercearia Doce. Molho de tomate, não duvide: acharás na sessão de Atomatados.

É assim na padaria perto aqui de onde calhou de virmos morar faz pouco tempo. Padaria de gente meio rica, no meio do bairro meio rico onde nos metemos a erguer nosso barraco. De barro – poderia acrescer para render poesia; mas não, ainda bem, não é o caso.

O caso é que a gente que entramos na padaria para comprar o pão de cada dia nem sabemos – ou, se sabemos, nem lembramos – que o caos de bairro onde hoje moramos nasceu bairro-planejado. E privado. Pois a Pituba desta Cidade da Bahia foi um dia desenho de um tal Teodoro Sampaio, memorável engenheiro e pensador baiano, no mapa da gleba de sr. Joventino Silva, que era o dono dessas terras daqui.

Mas a gente que entramos na padaria nem queremos saber desses passados. Afinal lembrar para que, já passou, sr. Joventino já morreu – virou prédio, virou parque – , Teodoro também – virou ponto de ônibus, quando muito avenida lá para os lados de São Paulo, cidade que ajudou a transformar em cidade e que lhe rendeu homenagem – logo quem, um baiano. Pois pouco se lhes dá: eles também não lembramos.

A gente que entramos na padaria queremos é o pão de hoje. Nem que por ele tenhamos que pagar o triplo do preço, que é o custo da crença em que seja pão de qualidade. Nem que tenhamos que ouvir o gerente mulato-branco do estabelecimento bradar com sua patuléia mulato-negra, eles todos numa atrapalhação só, e sermos passados adiante de um para o outro, feito pacote de presunto, até sermos atendidos, e então fecharmos nós a nossa cara para o último da cadeia, que nos atenderá com sua mais ainda fechada cara, da qual por sua vez, tsc tsc, não gostamos nada, porque afinal nós somos o cliente e não queremos saber de cara fechada, que dirá da infame História Universal das Caras Fechadas.

Porque a gente queremos é o pão de hoje. Pão caro e mercadoria quase-podre, tudo nos desce sob a criatividade duvidosa daquelas plaquetinhas milagrosas, que têm o condão de transmutar cereal em mais-que-cereal, biscoito em mais-que-biscoito, molho de tomate em mais-que-molho-de-tomate. A gente quer é sermos diferenciado, a gente pagamos. E o resto que se dane, pois nesse mundo-cão cada um que se valha por si, que passe por cima do que quer que nos cruze o caminho. Importa-nos mais um átimo de alívio, mais ainda se for importado. A gente queremos mais é viver feito átomos.

Atomatados.

Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador. 

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

1 ano do Pinheirinho e os danos irreparáveis

Mais de 1550 auxílios moradia. 1042 ações individuais e outras coletivas movidas contra o Governo do Estado de São Paulo, Policia Militar, Justiça Paulista, Prefeitura de São José dos Campos e a massa falida da empresa Selecta, que tem como sócio o megaespeculador Naji Nahas. Esses são apenas alguns entre os aspectos objetivos do saldo negativo do poder público em relação à desastrosa reintegração de posse do Pinheirinho, que completa 1 ano neste 22 de janeiro.

Em São José, é inevitável a sensação de aumento do desequilíbrio socioeconômico e um grande receio de que o poder público tenha “chegado ao fundo do poço”, como diz o defensor público Jairo Salvador, um dos que defende os ex-moradores do terreno de quase 1 milhão de metros quadrados.

Claro que essa situação tem a ver com as 9,6 mil pessoas, aproximadamente 1700 famílias, desalojadas após a operação policial que mais se assemelhou a uma iniciativa de guerra.

Atualmente, existem ações movidas pela Defensoria Pública que miram, fora as denúncias de prejuízos morais e materiais que cada família teve, os diversos prejuízos causados ao município que vão desde impactos econômicos até danos urbanísticos.

Somente a administração de Eduardo Cury (PSDB), prefeito joseense até 31 de dezembro do ano passado, gastou cerca de R$ 14 milhões em recursos públicos com o caso. Para abrigar as famílias, que passaram por quatro abrigos municipais em 50 dias, foram RS 5 milhões. A lista inclui a reforma de 15 prédios públicos, refeições e o auxílio moradia, no valor de R$ 500/mês para cada grupo familiar. O último item será renovado pela segunda vez e engordará a quantia, totalizando 18 meses de parcelas e invadindo a gestão de Carlinhos Almeida (PT), eleito em outubro passado.

Vale salientar que isso não inclui os gastos do Governo do Estado, que desembolsa parte do auxílio moradia e mobilizou dois mil policias militares para a ação de reintegração.

Dano maior

Contudo, o mais preocupante é que os irreparáveis estragos humanitários à comunidade expulsa e o ônus aos cofres públicos foram resultado de uma intensa mobilização de instrumentos estatais, colocando esferas de poder diversas, estadual e municipal, executiva e judiciária, a serviço de interesses particulares.

Com o surrado discurso do dever de proteção à propriedade privada – em detrimento do direito à moradia e sem mencionar que o proprietário do terreno é um devedor milionário de impostos – os governantes de plantão armaram a estratégia de guerra.

Isso, para empurrar o “inimigo” de um local onde o que predominava era a organização e transferi-lo à miséria e incerteza.

A ação foi militar, só que o “inimigo” era civil, o que evidencia, mais uma vez, além da questão econômica, a ideológica. A “vitoriosa” operação policial reprimiu, humilhou, destruiu moralmente. Assim, dispersou a população mobilizada que lutava pelo direito básico de ter um teto. Pessoas que hoje, em boa parte, dizem um sonoro “não quero mais saber de organização”.

Impressionante o poder de homens como Naji Nahas e outros que o cercam. A capacidade de grupos como o dele em movimentar dinheiro é proporcional ao poder de deslocar a incrível força política-judiciária-policial que dizimou casas e sonhos de milhares naquele 22 de janeiro de 2012.

E as linhas se desenham a cada período em que se retorna a São José dos Campos para a busca de novas informações. E a figura tem face cruel. A tecnologia do terror usada contra populações carentes incluiu desocupar o terreno e empurrar a comunidade até lugares onde haja necessidade de instalação de infraestrutura que beneficie grupos específicos. Investigações não andam. Equipes da Polícia Civil que apuram as responsabilidades são trocadas periodicamente. Ações judiciais se arrastam.

Enquanto isso, pessoas seguem enfrentando obstáculos terríveis. Sem casa própria, algumas dividem pequenas residências, em dois, três grupos familiares, já que a parcela do auxílio moradia não é suficiente para pagar aluguel numa cidade de alto custo de vida. Outras rumaram a municípios vizinhos. Há registros de 20 famílias morando em área de risco interditada pela Prefeitura que, aliás, segundo a Defensoria, as teria levado até ali.

Um ano depois, portanto, o que se vê do Pinheirinho são perspectivas distantes à ex-comunidade. Muito além da solução definitiva para a falta de casas, o que os ainda mobilizados aguardam é a justiça que restabeleceria laços de um sonho coletivo que foi desmoralizado. De forma triste, são observados, em geral, seres humanos desorientados, reféns de um poder que faz desacreditar nas instituições. E que terão que se dedicar não a viver, mas a reconstruir existências.

Em tempo: hoje às 18h, está previsto um grande ato em frente ao terreno do Pinheirinho. A manifestação exigirá desapropriação imediata do local, construção de moradias, reparação de danos e punição aos responsáveis pela operação estatal.

Moriti Neto, jornalista, mantém a coluna mensal Escarafunchar

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A síndrome Safatle/Dutra (I)

O deputado José Genoíno ao declarar em Brasília na última semana, um dia antes da sua posse legal e garantida pela Constituição, que o atual jornalismo brasileiro se transformou em nova forma de tortura dos cidadãos, escancarou para o país a sua divergência com o governo quanto à necessidade de uma reforma da Lei de Meios no Brasil.

Não que o tenha feito com essa intenção, o que posso garantir por conhecer o deputado, mas foi o desabafo de um brasileiro que se sente perseguido e injustiçado pela forma com a qual a imprensa e o judiciário trataram a questão do “mensalão” (que ainda não se provou, é bom que se diga) e que mostra claramente a diferença entre os que lutam toda a vida, como dizia Bertolt Brecht, e os que lutam por pouco tempo, em particular aqueles que se deixam levar pelo canto da sereia do poder.

O episódio é emblemático para a agenda política de 2013, ano em que o xadrez eleitoral mexerá suas peças com muito cuidado por parte do governo e – para não fugir ao figurino – incivilizadamente por parte da oposição. A atitude da presidente Dilma, adiando a discussão sobre a Lei de Meios, poderá sair cara ao governo, pois evidencia uma estratégia, se é que se pode chamar assim, no mínimo incoerente para um governo que fala e age democraticamente, promove distribuição de riqueza, é verdade, mas que a distribui desproporcionalmente, considerando-se o número de contemplados, quando despeja milhões e milhões de reais a mais para o maior inimigo da democracia brasileira no momento, a imprensa venal e o oligopólio de seis famílias em que se sustenta.

A tese do “controle remoto”, tão ao gosto da presidente Dilma Roussef, é uma falácia que depõe contra a sua sensibilidade e inteligência. Uma metáfora recorrente e de gosto e constatação duvidosas, que se contrapõe a realidade, pois poderemos mudar de canal, emissora de rádio ou jornal e a má qualidade do que se vê e lê, bem como a manipulação da informação, será sempre a mesma. E nessa manipulação no terreno da política, nos últimos dez anos, a vítima tem sido invariavelmente o governo, em particular o ex-presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores.

Para não voltar muito no tempo, basta que olhemos as recentes e indefectíveis retrospectivas das revistas semanais, dos jornalões e dos canais de televisão do ano que findou e lá estará estampada entre outras e sem o menor pudor esta pérola: o ano em que se começou a combater a corrupção no Brasil. Dá para levar a sério? A quem querem enganar? Quem começou combater a corrupção, o STF? De qual corrupção está se falando? A do Banestado... lembram-se? A da lista de Furnas, onde até o assassinato de uma modelo tenta-se encobrir? Da Privataria tucana? Da CPMI Veja/Cachoeira, que não ouviu a bandidagem? E as concorrências para obras do metrô na cidade de São Paulo, a Alston e a corrupção investigadas na Europa? O Rouboanel e inúmeros outros casos de corrupção comprovada contra o patrimônio público em vários estados da federação que nem sequer são lembrados pela mídia, envolvendo do DEM, O PSDB, o PPS, etc?... A propósito, aguardo com ansiedade o novo livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr.

Chega a ser indecente, para dizer-se o menos, essa tentativa de parte da oposição brasileira em querer tapar o sol com a peneira, esquecendo-se da corrupção em que está atolada até o pescoço e que já ultrapassou há tempos qualquer limite de irresponsabilidade, e querer imputá-la aos seus principais adversários. Tudo sob o exercício do jornalismo irresponsável e de mão única, selvagem e mentiroso, esse que a presidente procura defender sob argumentos pouco sólidos.

Imoral não é a posse do deputado José Genoíno, como querem alguns, inclusive em nichos de esquerda. Imoral é atacar a democracia pelas costas, desrespeitar a constituição e vender o Brasil por trinta dinheiros, tentando se criar um clima de violência e insegurança.
E assim entramos em 2013. Dúvidas, esperanças, temores. Cada ano novo se inicia da mesma maneira para qualquer um de nós. Aos mais velhos resta a amargura de ver que pouca coisa muda no terreno das esperanças, que aumentam as dúvidas e – dependendo do otimismo ou do pessimismo de cada um – revigoram-se os temores.

O mundo continua a digerir a crise econômica iniciada em 2008, com o governo de muitos dos principais países ricos ainda às escuras e às apalpadelas, buscando apagar o incêndio, mas sem saber se não sobram brasas adormecidas que o possam reacender sob pequenos ventos a surgir não se sabe bem de onde. A propósito, recomendo a leitura do artigo do economista Paul Krugman e se encontra traduzido no portal Carta Maior.

O estrago causado pelo neoliberalismo econômico com as suas teses de estado mínimo e mercado máximo, os prejuízos causados a milhões de trabalhadores na Europa, nos EUA, parte da Ásia e África, o salve-se quem puder geral, mesmo com o surpreendente desempenho da América Latina nesse novo cenário nos últimos anos, configuram o traçado de uma nova geopolítica de atenção, com viés de sinal amarelo, deixando a humanidade em suspense e ansiosa para o que poderá acontecer nesse 2013 que se inicia.

O estado de saúde de dois grandes líderes, Nelson Mandela e Hugo Chávez, não trazem bons augúrios, bem como a possibilidade de nova intifada na Palestina. Por aqui, teremos que agüentar a direita relinchar pelas páginas dos jornais, câmeras de televisão e microfones de rádios, destilando o seu veneno de falsa democracia e exercendo (ou impondo) o seu direito de crítica sem resposta, num dignificante exemplo de como entende e pratica da democracia.

Imoral não é a posse do deputado José Genoíno, como querem alguns, inclusive em nichos de esquerda. Imoral é atacar a democracia pelas costas, desrespeitar a constituição e vender o Brasil por trinta dinheiros, tentando se criar um clima de violência e insegurança. Exigir a autocrítica e a renúncia de homens como Genoíno e Dirceu pode, a princípio, parecer um ato de sabedoria política, mas no fundo implica em aceitar a condenação imposta por um julgamento de exceção, por um tribunal de atitudes parafascistas. E com o fascismo, todo cuidado é pouco! Venha ele de onde vier...

Izaías Almada, escritor e dramaturgo, mantém a coluna mensal Pensando Alto

domingo, 20 de janeiro de 2013

Coisa Íntima # Turismo dentro do próprio organismo

Série Coisa Íntima
Autorretratos por fotógrafos profissionais e amadores.
Participe, saiba + 

“Tirar a própria fotografia é a terceira coisa mais íntima que uma pessoa pode fazer com ela mesma, depois da masturbação e do suicídio”.
[clique na imagem para ampliar]

Título: "Turismo dentro do próprio organismo", verso da poesia de Troy Rossilho
Descrição: Uma curitibana visitando o Rio de Janeiro, explorando a si mesma em seus passeios pela cidade. Lagoa Rodrigo de Freitas - Rio de Janeiro.
Autor: Larissa Nowak
Data
: 24/04/2008

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Preto no branco


Sabe quando seus olhos ou ouvidos batem em algo que salta da página, ecoa na cabeça e fica atormentando o juízo? Aconteceu comigo há algumas semanas, quando li um comentário de duas linhas na geleia geral do Facebook. Transcrevo: “Por anos lecionei só na Pós. Este ano, voltei à graduação da UERJ. O resultado das cotas para negros é tão maravilhoso, que me emociono toda semana.” O autor do comentário era Luiz Eduardo Soares, antropólogo, escritor, dramaturgo e gestor público com importante atuação em todas essas áreas.

Sei bem o quanto o assunto das cotas é polêmico e incompreendido – seja intencionalmente ou não. Ainda são escassos os brancos renomados que se posicionam a favor. Portanto, ao me deparar com um acadêmico reconhecido tomando a iniciativa de se expressar de forma clara e emocionada sobre o tema, senti que podia render. Tomei a liberdade de lhe pedir uma entrevista, no que fui pronta e generosamente atendida. As respostas de Luiz Eduardo são assim, preto no branco, mas de uma nitidez profunda e cálida. Espero que contribuam para irmos esmiuçando essa tal questão racial, que ainda requer muita conversa e reflexão. Vamos a elas.

Nota de Rodapé – Por que você acha necessário que sejam estabelecidas cotas de acesso ao ensino superior público baseadas em critérios raciais?
Luiz Eduardo Soares –
Pesquisa importante do IPEA, concluída no início da década passada, mostrou que um jovem branco de 18 anos tinha, em média, mais 2,3 anos de escolaridade do que um jovem negro, da mesma idade. Demonstrou ainda mais: o pai desse jovem branco, 30 anos antes, tinha mais 2,3 anos de escolaridade do que o pai do jovem negro. Além disso, comprovou que o avô desse jovem branco tinha, 60 anos antes, mais 2,4 anos de escolaridade do que o avô do jovem negro. O mais extraordinário não é o fato da trágica, brutal, vergonhosa desigualdade, mas a permanência no tempo. Uma permanência quase absolutamente invariável, contrastando com o verdadeiro tsunami de transformações que marcou a história brasileira no século XX. Enquanto o Brasil mudou intensa, veloz e profundamente, na política, na cultura, na economia, nas relações sociais, nas organizações familiares e até nos padrões de religiosidade, o racismo estrutural manteve-se congelado, intocado, inteiramente protegido por uma blindagem potente, intransponível, impermeável aos terremotos sociológicos, aos golpes, às transições políticas, às alterações constitucionais, às mobilizações cívicas, aos projetos educacionais, à expansão da mídia. Portanto, o século XX demonstrou à sociedade brasileira que, assim como na economia não basta fazer crescer o bolo para que todos se beneficiem, por uma espécie de efeito natural do desenvolvimento, também na urgente e prioritária questão do racismo não adianta esperar que a redução de desigualdades econômicas e a distribuição de renda dissolvam as barreiras erigidas pela cor da pele. O racismo é um preconceito que tem patas pesadas, bases sólidas, plantadas como pilares na raiz de nossa história colonial e escravagista, que oprimiu e devastou populações indígenas e comunidades negras. Está errado o diagnóstico que atribui o preconceito às diferenças de classe, afirmando que o negro é discriminado por ser pobre, não por ser negro. Errado. Análises sociológicas de Carlos Hasenbalg, Nelson Vale e Silva, Ricardo Henriques, entre outros, já demonstraram à exaustão que, embora a discriminação dos pobres seja real e dramática, não se confunde nem explica a discriminação contra os homens negros e as mulheres negras. Conclusão: ou o Brasil, como nação, intervém nesse quadro para mudá-lo, enfrentando o racismo – e para enfrentá-lo é preciso, primeiro, reconhecer sua existência –, ou as gerações se sucederão continuando a respirar o ar infecto dessa monstruosidade repugnante, a meu ver a maior de todas: o preconceito de raça, étnico ou de cor. Não esperemos que as migalhas – benefícios residuais – caiam da mesa em que a boa consciência nacional celebra suas virtudes, fartando-se no banquete de sua idolatria solipsista e narcísica, embriagando-se com a retórica inebriante da democracia racial ou com o mantra narcótico da mestiçagem. É preciso agir de imediato, recorrendo-se aos mecanismos disponíveis, ou seja, adotando-se políticas públicas pragmáticas de efeitos tópicos e imediatos. As cotas incluem-se nesse repertório de ações públicas que não constituem soluções, propriamente, mas mitigações e redução de danos. Nem por isso as cotas devem ser subestimadas em seu alcance, em suas consequências positivas. Mesmo não resolvendo os problemas, as cotas para ingresso nas universidades começam a virar o jogo por meio da incorporação de filhos da população negra às elites dirigentes, nas diversas áreas profissionais e políticas. A médio e longo prazos, far-se-ão ouvir vozes distintas, expressando perspectivas diferentes e verdadeiramente comprometidas com a luta antirracista. Estaremos, então, no umbral de grandes transformações democratizantes.

NR – Não seria mais justo deixar que o mérito/desempenho desse conta da questão do acesso?
LES –
Onde está o mérito? Quem é mais capaz? Quem é mais dedicado? Quem reúne talento, dotes naturais, disciplina aprendida, disposição de trabalho, persistência, conhecimentos acumulados? Talvez os que puderam acumular mais conhecimentos até o vestibular não sejam os mesmos que disponham de mais talento, dotes, disciplina, disposição e persistência. Afinal, as condições com que contaram para a formação escolar foram muito diferentes: a qualidade das escolas foi diferente, a qualidade de vida em casa, no transporte, assim como terão sido distintas as chances de acesso aos livros e ao material didático pertinente. Uma nota 7 para quem cumpriu sua trajetória social e escolar driblando inúmeros percalços e obstáculos traduz um desempenho global inferior a uma nota 7,5 ou 8, conferida a quem percorreu seu itinerário escolar e social com todos os estímulos, apoios e facilidades? Quem alcançou melhor rendimento, considerando-se as condições com as quais cada um contou? Esta consideração não é indulgente ou paternalista, apenas expressa um pressuposto intrínseco ao argumento que valoriza o mérito: a equidade. Não há como entender o significado do mérito sem admitir a equidade como princípio matricial de juízo e fundamento do valor. A projeção do argumento relativo ao mérito recobre dois planos: o passado, traduzido no desempenho que as provas retratam, e o futuro, definido como provável desdobramento do passado. Se é assim, a indagação sobre o desempenho deve com mais razão levar em conta as condições com as quais contaram os candidatos em suas histórias de vida, uma vez que as expectativas a respeito de rendimento futuro não podem ser apenas derivadas do passado, como seu desdobramento natural e contínuo, porque, na universidade, a equidade será garantida – ou melhor, as iniquidades serão reduzidas, todos recebendo o mesmo ensino. O passado de dificuldades sofre uma refração e, projetando-se para o futuro, submete-se a uma inflexão de sinal positivo, inclinando para cima a curva de desempenho provável. Eis as notas 7 e 8 encontrando-se no horizonte prospectivo. E é exatamente isso que tem acontecido, segundo as pesquisas já realizadas e de acordo com minha própria observação cotidiana.

NR – De que maneira a sociedade brasileira como um todo pode se beneficiar desta política?
LES – Uma sociedade livre de racismo é uma coletividade muito melhor dos pontos de vista mais diversos. Ares mais dignos, menos hipócritas e desrespeitosos, farão bem a todos.

NR – Qual tem sido a sua experiência sobre o assunto, como professor?
LES – Tenho o privilégio de ser professor da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) há mais de duas décadas. Acompanhei de perto todo o processo de aprovação e implementação da política de cotas. Hoje, me emociono todos os dias de aula, quando encontro um número enorme de alunos da melhor qualidade que vieram das áreas mais pobres, das famílias mais pobres e que atravessaram as barreiras do racismo para chegar à universidade. Dedicam-se aos estudos com paixão, orgulham-se de participar da universidade e a valorizam. O clima na UERJ mudou para melhor. O padrão intelectual elevou-se. O resultado é visível e indiscutível. Emociona.

foto: divulgação
LUIZ EDUARDO SOARES

Formou-se em Literatura, na PUC-RJ, e construiu sua carreira combinando produção literária e dramatúrgica com docência, obras acadêmicas e gestão pública. Escreveu, com Domingos de Oliveira e Márcia Zanelato, a peça “Confronto” e a adaptação para o teatro de seu livro “Tudo ou Nada”, que será encenada no começo de 2013, com direção de Marcus Faustini.

É mestre em Antropologia, doutor em ciência política com pós-doutorado em filosofia política. Foi secretário nacional de segurança pública (2003) e coordenador de segurança, justiça e cidadania do Estado do RJ (1999/março 2000). Colaborou com o governo municipal de Porto Alegre, de março a dezembro de 2001, como consultor responsável pela formulação de uma política municipal de segurança. De 2007 a 2009, foi secretário municipal de valorização da vida e prevenção da violência de Nova Iguaçu (RJ). Em 2000, foi pesquisador visitante do Vera Institute of Justice de Nova York e da Columbia University.

Tem vinte livros publicados, entre eles o romance Experimento de Avelar, premiado pela Associação de Críticos Brasileiros em 1996, e Meu Casaco de General, finalista do Prêmio Jabuti em 2000. Foi professor da UNICAMP e do IUPERJ, além de visiting scholar em Harvard, University of Virginia, University of Pittsburgh e Columbia University. É professor da UERJ e coordena o curso à distância de gestão e políticas em segurança pública, na Universidade Estácio de Sá. http://www.luizeduardosoares.com

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Bebedouros de frescor

Deve ser inevitável que toda aventura, empreitada, trilha, empresa, época, anoiteça. Afinal, irremediavelmente e por todos os dias do mundo, o sol se põe. Sem falar que haverá a hora da nossa morte, amém!

Meus olhos, que completaram cinquenta e sete anos de janela, observaram alguns padrões de entusiasmo, consolidação e, não querendo aguar a festa, de declínio. Também notaram que a institucionalização ergue muros onde antes havia terrenos baldios.

Faz mais de trinta anos participei de um grupo feminista deveras especial. Se chamava SOS Mulher e tinha como missão combater a violência doméstica sofrida pelas mulheres. Éramos um bando de gente jovem, destemida, esfomeada de vida.

A formalidade do SOS era próxima de zero. Não era ONG, não era governo, não era uma política pública. Era tão somente um grupo de pessoas com o sonho de eliminar olhos roxos, dentes quebrados, almas partidas das vítimas de maridos e namorados violentos.

Depois vieram as delegacias especializadas de mulheres, as secretarias, os conselhos. Num certo sentido, o Estado encampou a luta contra a violência de gênero. Vide a lei Maria da Penha. É claro que tudo isso é muito bom e absolutamente necessário.

Mas - defeito colateral - a institucionalização dos assuntos das mulheres fechou as portas para grupos feministas mais libertários e inovadores. Hoje, todo e qualquer projeto de ação passa necessariamente por sistemas de controle e escaninhos burocráticos.

Outra experiência similar vivi no Senac São Paulo. Na década de 1990, participei das primeiras turmas de cursos de vídeo. Eles eram chamados de "cursos livres", e nós docentes tínhamos carta branca para propor metodologias.

Lembro que um curso não era igual ao outro. Inventávamos sem parar. Usávamos e abusávamos da intuição. Ensinávamos de "ouvido". Pois no fundo erámos também aprendizes. Funcionou! Havia entusiasmo! Um parâmetro difícil de constar em relatórios.

Poucos anos depois, baixou o braço forte. Os cursos foram formatados e formalizados. Perderam a liberdade. Entrou a política de "diplomar". E óbvio chegou o MEC com suas regras e seu controle. De novo, nada disso é ruim. Mas aqueles corredores e salas explodindo em ideias desapareceram.

Será que é sempre assim? Boas iniciativas levam à institucionalização? Esta leva a um engessamento? Ou será que tudo isso é bobagem de meus olhos pré-sessentões? Alguém aí me empresta um colírio?

fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Do rés-do-chão para o Olimpo



Confesso que soube do teu aniversário de 100 anos, comemorado sábado, por um jornal paulista, Rubem Braga. Não acho que gostarias de uma festa com música alta, canapés gordurosos, mulheres siliconadas e uísque de procedência duvidosa para celebrar o teu centenário de nascimento - nem talvez caderno especial, suplemento grampeado ou edição extraordinária. Defendo, porém, que merecias mais que uma matéria que comparou a tua efeméride retumbante com a dos 90 anos do teu amigo Sérgio Porto, que caíra no dia anterior, sexta-feira.

 Escreveu lá o repórter que tu, Braga, estás ganhando reedições, que pesquisadores preparam para breve o lançamento de volumes de inéditos teus, que uma exposição em Vitória vai relembrar a tua vida errante e a tua obra inesquecível. Para o Stanislau, nem livro, nem brinde, nem novidades, nem lambe-lambe pendurado na parede do museu.

Ora, esse confronto de cuidados com o legado de vocês, feito assim, com frieza jornalística e nenhum brilho literário, bem sabes, é expediente de paulista, que volta e meia encontra um jeito de expor a sua solidão sem tamanho e a sua felicidade nunca plena agarrando-se ao contorcionismo dos números e açulando rixas caducas. No Rio, tenho certeza, os jornais devem ter sido mais generosos com vocês.

***

Todavia, alguém de bom senso lá da sucursal carioca do jornal paulista foi à Barão da Torre investigar o estado de conservação do teu jardim suspenso, projetado pelo Burle Max e agora sob os cuidados do teu filho Roberto, que vive com a mulher na cobertura invejável. E escuta só que notícia boa: o menino tem metido a mão na terra e laborado como gente grande, e as plantas, as árvores, os passarinhos, o verde das folhas e o colorido das flores estão vivíssimos, como quando os deixaste.

De lá de cima não se tem mais a vista para a praia de Ipanema e para a Praça General Osório, pois prédios enormes foram erguidos ali em volta, e é preciso reconhecer que a morte do teu vizinho Millôr Fernandes agravou ainda mais a aridez do entorno. No entanto estão lá a jabuticabeira, a pitangueira, a goiabeira e até a rede na qual te deitavas para olhar o Rio e sentir saudades de Cachoeiro do Itapemirim.

Arrisco dizer que se o jornal tivesse tratado só do pomar e só da horta, sem os mexericos de um ganha isso, outro não ganha nada, teria oferecido aos leitores um registro muito mais simpático e digno da tua memória.

***

Olhando a semana que passou em retrospecto, me lamento por não ter percebido, aqui de Florianópolis, a aproximação do teu aniversário, e ter deixado que uma reportagem ingrata de jornal me pusesse a par do assunto. Pistas não faltaram, e eu só as reconheço agora.

Imagine que descobri no Centro da cidade um sujeito que esmola livros. Ele fica sentado numa curva de escadaria, sobre um pedaço de papelão coberto por romances baratos, e escreveu assim numa tira: “Aceito doações”. Pois na terça-feira eu passei os olhos sobre as mercadorias dele, voltando do almoço, e havia coletânea tua à venda, mas eu não percebi a tua presença.

Na quinta de manhã, no ônibus a caminho do trabalho, ouvi a música: era clássica, ou erudita, com violino, harpa, contrabaixo, tuba e fagote, tensa, nervosa, irrequieta. Ninguém portava radinho. E então fez-se a crônica, e eu imaginei que, sem saber, estávamos todos ali dentro rumando para um fim trágico, com a trilha sonora adequada, à lá tristes heróis gregos! Por isso, até o momento em que desembarquei, tossi em protesto ao ranger dos violinos, como aprendi contigo, que padecia de acessos de pigarro no teatro tão logo a primeira nota da orquestra fosse exigida pela batuta do maestro. Mas eu não percebi a tua presença.

No sábado do teu aniversário, só fui me dedicar à leitura depois de completar as tarefas da casa. E ouve essa: já faz uns meses que eu ando pondo em prática umas iniciativas de agricultor, e encasquetei, como resolução de ano-novo, que devo juntar às ervas que cultivo na sacada – alecrim cheiroso, salsinha selvagem e manjericão perfumado – um vaso grande, para plantar alface. E foi depois de pensar mais uma vez nas dificuldades desse projeto que eu peguei o jornal, e lá estava o teu jardim suspenso em fotos coloridas, vivíssimo, riquíssimo, onde de tudo dava e tudo nascia, menos dinheiro. E eu não percebera a tua presença.

No domingo, o mesmo jornal da véspera se redimiu da ranhetice e recuperou uma crônica tua, de 1952, sobre o joelho de uma amiga. Escreveste: “Há homens que não são atentos aos joelhos, nem reparam como eles mudam de personalidade quando a perna se estende e se dobra, ou melhor, como a personalidade de cada um depende de sua mudança nesse jogo”. Nada mais perspicaz. Mas o melhor estava no fim: não ficavas reparando muito no joelho, para que a amiga não pensasse que estavas de olho era na coxa. Eu gelei. Por sofrer de fotofobia, eu deveria usar óculos escuros, principalmente na praia, mas jamais consegui: me tortura a ideia de que as mulheres achem que, enquanto converso com elas, estou na verdade admirando coxas e seios, espertamente. E por elas eu deixo que o sol castigue os meus olhos...

És mestre até nas excentricidades e nos pudores, velho Braga! E eu te admiro ainda mais por isso.

Um forte abraço desse teu leitor.

Felipe Lenhart, jornalista e cronista, amigo deste NR, permitiu a reprodução do texto-homenagem a Rubem Braga originalmente publicado em De olho na Ilha

O espião Cervantes e os 408 anos de Dom Quixote

fac-símile da 1º edição
Miguel de Cervantes, muito antes de publicar a primeira edição de Dom Quixote há exatos 408 anos em Madrid, servia a monarquia espanhola como soldado. Antes de ser resgatado em 1580, passou cinco anos preso na Argélia depois de ser capturado por piratas berberes.

Depois disso, o futuro escritor virou espião em Oram, uma cidade ao norte de onde ficara preso. A história da literatura está repleta de casos de “escritores e espiões”: Francisco de Quevedo, John le Carré, Graham Greene, Rabelais, Voltaire, Daniel Defoe. Todos foram espiões.

No caso de Cervantes ele descobriu que não tinha jeito para a atividade secreta e caiu na literatura. "Não sou muito bom para o palácio porque tenho vergonha e não sei lisonjear", disse na voz de um personagem certa vez.

Aos curiosos vale ver a leitura da obra feita por intenautas numa parceria da Real Academia Espanhola e do YouTube. Essa dica já foi divulgada aqui neste NR (confira).

Thiago Domenici, jornalista

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Pensamentos incomuns

Abaixo, você lê três abordagens de uma mesma história. Uma brincadeira que surgiu por acaso entre três amigos em outubro do ano passado. A versão original é de Thiago Domenici, a segunda de Fernando Evangelista e a terceira de Ricardo Viel, todos colunistas deste NR. E você, caro leitor e leitora, que tal fazer a sua versão nos comentários dessa postagem?

1.
Subiu no telhado pela escada lateral.
O Sol, sem esforço, iluminava seu rosto, deitada, suave, respiração compassada.
Nada era mais importante do que aqueles pensamentos incomuns.
Ninguém, absolutamente, poderia sentir, imaginar, o que era só de Nina.
Ninguém nasce sabendo que o amor é uma lei da vida.
"Quando ele chega queima como o sol a bater no rosto".
Então era assim.
A descoberta transbordou num poema de olhar, de sentir.
Desceu do telhado pela escada lateral.
Agora a Lua, sem esforço, iluminava seu rosto corado, em pé, suave, respiração descompassada.
Ah, pensou ela, benditos pensamentos incomuns.
(Thiago Domenici)

2.
Chegou ao telhado por uma escada lateral.
O sol iluminava seu rosto. Deitou. Nenhum barulho, nenhuma buzina.
Do terraço de um prédio de 14 andares, ela ouvia, apenas, sua própria respiração, calma, compassada.
Não havia medo.
Não havia nada, apenas alguns pensamentos incomuns.
Ninguém, absolutamente ninguém, poderia sentir, imaginar, o que era só de Nina.  Ninguém nasce sabendo que o amor é lei da vida.
"Quando ele chega, queima como o sol a bater no rosto", ela pensou.
Era assim, sempre foi assim.
A descoberta poderia ter virado poema, uma canção, uma boa história para contar. Mas para que? Para quem?
Apesar daquele sol que a acolhia, como um colo de mãe, ela não via sentido numa vida sem ele.
Nina foi até o parapeito e repetiu a pergunta: para que? Para quem?
Então se lançou no ar.
(Fernando Evangelista)

3.
Não havia telhado. "Como subir?", pensou.
O sol castigava seu corpo nu, suado, que exalava um cheiro que não parecia seu.
Queria lançar-se, colocar fim a tudo aquilo. Mas como, se o telhado que antes estava ali havia desaparecido?
Curioso não é perguntar-se porque alguém se mata, mas porque alguém decide não se matar.
Quem colocara aquela questão? Não parecia ser um pensamento seu.
Ninguém, absolutamente, poderia sentir, imaginar, o que era só de Nina.
Nada era mais importante do que aqueles pensamentos incomuns.
O telefone tocou. Era ele. Duvidou se atenderia. E viu a lua aparecer, tão improvável...
Existisse telhado e eu não teria visto isso, pensou.
O telefone continuava a gritar...
(Ricardo Viel)

[imagem de artista Kyle T. Webste, do blog The Daily Figure]
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