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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Ainda é domingo

Amanheceu segunda-feira, mas na boca permanece o travo da manhã de domingo. No ônibus, dois rapazes que estão na faixa etária média dos mortos de ontem em Santa Maria conversam sobre o assunto: falam em seguranças que não deixaram a galera sair, que às duas da manhã pensa no ferro, que a muvuca correu para o banheiro achando que era a saída, que na hora do apavoro é cada um por si, que a mulherada deve ter morrido no chão porque cai primeiro, que em países de primeiro mundo...

Acordamos todos comentaristas dessa madrugada sufocante que produziu um case para os peritos em segurança de eventos e combate a incêndios, uma tragédia local, uma comoção nacional e o terceiro incêndio em boate mais mortífero da história do planeta, um ginásio com 231 cadáveres e, de acordo com uma enfermeira-chefe, a expectativa de que mais mortos sairão dos hospitais durante a semana.

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A repórter Ana Flor, que entre 2004 e 2011 trabalhou no jornal Folha de S. Paulo e hoje está na agência Reuters, conseguiu entrar no que restou da boate Kiss no fim da tarde de ontem, junto com dois jornalistas de TV, com permissão de um comandante da polícia militar.

Ela viu garrafas de cerveja sobre as mesas, os ventiladores derretidos pendurados nas paredes, muito ferro retorcido no palco e perto dele, a cobertura do teto praticamente toda devastada, sapatos e tênis pelo chão, tufos e mechas de cabelo por toda parte, e sentiu "um cheiro terrível de queimado".

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No mesmo ônibus em que os garotos comentavam, do seu jeito, o assunto do fim de semana, tocou o celular de uma menina. Era uma música de sertanejo universitário, mas poderia ser de uma banda de axé, ou de um funk carioca, ou de um pagode sentimental, ou de um "ritmo" futurista e agitado desses que os aparelhos já trazem de fábrica no sistema operacional, ou o hino de um time de futebol, ou uma piada daquelas do tipo "não vai atender, não vai atender?".

Pois é muito provável que tenha sido essa trilha sonora alegre e irritante que os bombeiros ouviram entre 2h30 e 5h, enquanto atuaram no combate às chamas e na retirada de um, dois, dez, trinta, 120, 200 corpos de lá de dentro da boate beijo. Foi o relato que nos chegou de Ana e outros repórteres, via Twitter: os aparelhos celulares tocavam e vibravam em meio à fumaça e ao calor, no bolso das vítimas. Dezenas de ligações perdidas na pista de dança fúnebre. Ao checar o aparelho de uma garota morta, um bombeiro descobriu, consternado, quem procurava a filha com tanta insistência: "Mãe".

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Em 30 de dezembro de 2004, em Buenos Aires, 191 pessoas morreram e 1.300 ficaram feridas na boate Cromañón, que pegou fogo a partir de um efeito pirotécnico utilizado pela banda que se apresentava. Oito anos depois, com muita pressão dos familiares das vítimas e fiscalização da imprensa, os culpados foram apontados e presos: o vocalista, o cenógrafo e o empresário da banda, o diretor de fiscalização e controle da cidade, o gerente da boate e seu braço direito além de autoridades responsáveis pela fiscalização das boates da capital argentina.

Ontem à noite, o "Fantástico" mostrou a imprensa séria internacional "intrigada", para não dizer chocada, com o fato de a boate beijo estar com o alvará vencido, permitir o uso de sinalizador em shows, colocar para dentro muito mais gente do que pode comportar e fechar as portas para não deixar as pessoas saírem sem pagar.

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O amigo Marcelo Perna compartilhou no Facebook que um amigo canadense lhe perguntou como funciona, no Brasil, "a questão do seguro, se havia seguro em todos os eventos". E ele: "Eu disse que sim, temos seguro em todos os eventos: segura na mão de Deus e torce pra dar certo!".

Felipe Lenhart, jornalista e cronista, amigo deste NR, permitiu a reprodução do texto originalmente publicado em De olho na Ilha

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