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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Impropriedades

por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Qualquer pessoa que tenha um lugar de moradia para chamar de seu sabe como é: a quantidade de tralha com que entupimos nossas casas é chocante. A gente meio que finge que não vê, mas, cada vez que temos que fazer mudança e somos obrigados a encarar a realidade, constatamos, resignados, nossa capacidade de acumular coisas, independentemente da utilidade ou aplicabilidade dos trens empilhados e empaçocados em armários, estantes, gavetas ou qualquer fresta por onde passe mais que uma folha de papel. Somos acumuladores contumazes, inclusive de coisas que, se algum dia tiveram um papel a cumprir na nossa vida, como revistas, livros e CDs, atualmente desfrutam de um empoeirado sono eterno. Fora badulaques de tudo que é jeito. E um detalhe importante é que esta questão independe da metragem de que dispomos. Em quase todas as casas, por menores e mais modestas que sejam, há tralha suficiente para ocupar outra área equivalente.

O fato é que gostamos da ideia de ter, não só coisas, objetos, mas também pessoas e memórias. Ou seja, o sentimento de posse se estende àqueles por quem temos afeto e às lembranças daquilo que valorizamos na nossa experiência de vida. Daí a quantidade de fotos das pessoas queridas e dos lugares e situações que cultivamos na memória afetiva e gostamos de ter por perto, numa interminável reedição dos sentimentos que significam, mesmo guardadas em caixas ou computadores, e jamais organizadas.

Diz o dito popular, sábio como sempre, que caixão não tem gaveta. Tudo o que tiver sido importante para nós durante a nossa trajetória de vida vai ficar aqui quando já não estivermos. O máximo que levaremos conosco são as roupas que cobrirão a nudez em que todos aqui desembarcamos. Nem mesmo as pessoas que amamos poderão nos acompanhar na derradeira viagem. Já sabemos, mas não custa lembrar.

É bem por isto que tenho pensado muito em desencanar das tranqueiras, eventualmente me desfazer delas, e me dedicar a correr atrás de impropriedades, não na forma como as definem os dicionários (ou talvez sim, em certa medida), mas na maneira de ter e tratar as pessoas e coisas que me cercam e compõem o meu patrimônio imaterial. A propósito, esta expressão é um achado precioso, uma bela ideia, ao juntar duas saborosas palavras, que tinham tudo para ser inconciliáveis. Aliás, as palavras, paus para toda obra, pedregulhos e diamantes ao mesmo tempo, proporcionam fartas colheitas imateriais de bonitezas e feiúras para todos os gostos.

Os assuntos já se misturaram, mas eu estou gostando muito desse rumo e dessa prosa.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Em nome do filho

1964 + 50 
Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Episódios quinzenais toda quinta-feira.

(episódio 20)

por Fernanda Pompeu     ilustração Fernando Carvall

Enquanto os foliões cariocas pulavam nas ruas a alegria do carnaval de 1974, reciclando mais uma vez homens vestidos de mulheres, pierrôs e colombinas, dois jovens  Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho  eram presos por agentes do DOI-CODI do Rio de Janeiro. O fato ocorreu em Copacabana, onde Fernando e Eduardo haviam marcado um encontro.

Os dois eram militantes da APML (Ação Popular Marxista Leninista). Era uma entre várias micro-organizações que tentavam enfrentar a ditadura militar instaurada dez anos antes daquele carnaval de 1974. Se atrás de uma bola vem sempre uma mãe. Atrás de um filho preso também. Foi assim que Elzita, mãe de Fernando, e Risoleta, mãe de Eduardo deram início à épica procura por seus filhos.

As duas tentaram de tudo. Falaram com carcereiros, bispos, militares. Estiveram frente a frente com o general Golbery do Couto, o todo poderoso chefe do Gabinete Civil da Presidência da República. Ele as ouviu em silêncio e em silêncio permaneceu. Informações posteriores comprovariam que Fernando e Eduardo tinham sido mortos sob torturas. De maneira bem frequente naqueles anos, seus corpos desapareceram.

Em entrevista a Patrícia Negrão, no livro "Brasileiras Guerreiras da Paz", publicado em 2006, Elzita Santa Cruz Oliveira diz: "Depois que perdi a esperança de encontrar Fernando, só me restou falar, para que um fato tão triste não caísse no esquecimento". Antes da prisão do filho, Elzita já havia vivido o sufoco da prisão da filha Rosalina.

Por Rosalina Santa Cruz, ela também bateu portas de quartéis. Desafiou o arbítrio e o totalitarismo dos homens de farda: "Eu sentia medo. Mas por um filho, vou até para dentro do fogo". A mãe acabou encontrando a filha, solta um ano depois de presa. Mas com Fernando a história seria mais triste. Sem pistas, sem corpo. Apenas matéria incendiando a memória.

Fernando, nascido no Recife, em 1948, foi preso a primeira vez ao participar de uma manifestação estudantil contra os acordos MEC-Usaid. Refrescando os fatos: esse acordo era pura subserviência aos Estados Unidos. Indicava privatização do ensino, entre outras injustiças. Foi aí que Filosofia e Latim foram retiradas da grade do ensino fundamental. Por ser menor de idade, o rapaz permaneceu pouco tempo detido.

Mas em 1974, o carnaval foi outro. Havia ordens de desmantelar o maior número possível de organizações opositoras à ditadura. Ordem de torturar e matar os militantes. E, é claro, desaparecer com seus corpos. Como se nunca nada tivesse acontecido. Como se fosse super natural matar Fernando, deixando o filho Felipe, então com dois anos, órfão.

Até hoje, neste ano da graça de 2014, famílias inteiras seguem esperando por respostas. Nenhuma alimenta a ilusão de encontrar pais, filhos, irmãos vivos. O que querem é o direito básico da verdade. Não só isso. Querem também divulgar como essas pessoas morreram e quem foram seus assassinos.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Balcão, bebiba, barra, Biro

por Carlos Conte*

O bar do Biro é o melhor que eu conheço. Baiano albino, o Biro tem esse apelido por causa do ex-volante corintiano dos anos 80, o Biro-Biro (que o presidente Mateus certa vez chamou de Lero-Lero...). O Biro me lembra um personagem sertanejo da Rachel de Queiroz chamado José Alexandre, “caboclo hercúleo” que vivia isolado numa fazendinha no Ceará e que pelo fato de falar muito pouco sua voz era sempre rouca, “como a de um bicho que aprendesse a falar”. O Biro também não é de falar muito e está sempre rouco. Algumas pessoas são roucas por natureza e acho que esse é o caso do Biro. Por isso, pra ser escutado no meio do barulho do boteco, ele é obrigado a forçar a voz: “vai uma seLEta?”, ele pergunta, com ênfase na tônica, como se levasse um susto no meio da frase.

Crônica tem um quê de conversa de bar. E tem bares que merecem uma crônica. Já escrevi sobre o Silveirinha, poderia escrever sobre o Valadares, o Biu, o bar do Paulo, o bar do finado Vavá... Esses são os meus bares. Meus bares! Com pronome possessivo e tudo. Desses todos, porém, o Biro é o meu predileto, pois no quesito mais importante que existe quando se julga um bar, o Biro vence.

Variedade de cervejas? Sem dúvida esse quesito é importante, mas o Sagarana não é o meu bar preferido, muito menos o Frangó lá da Freguesia. Petiscos? Claro, são fundamentais (aliás, descobri que tem um bar de happy-hour numa travessa da Paulista que tem rodízio de petiscos, mas nunca fui). Atendimento? Limpeza? Serviço delivery?...

Quando elejo o Biro, não me refiro a nenhum desses quesitos adotados pelos críticos dos Guias e Revistas de São Paulo, até porque o Biro perderia em todos, exceto atendimento, pois simpatia e solicitude são a marca registrada do Biro, auxiliado por seu fiel escudeiro Geladeira (porque ele sempre está atrás do balcão, de pé, parado, como uma geladeira... Apelidos de bar é um tema que daria outra crônica).

Para mim, o principal aspecto quando se avalia um bar é tão subjetivo quanto o conceito de liberdade: cada um sente de um jeito diferente, cada um pode relatar experiências, manifestações reais, efêmeras ou duradouras, mais intensas ou menos, mas é difícil cravar “liberdade é isso”, “felicidade é aquilo”, como para mim é difícil encontrar a melhor palavra que defina essa adoração que tenho pelo bar do Biro.

Tem a ver com acolhimento. Sem dúvida. O Biro é meu refúgio. Eu procuro isso num bar. Nem sempre, é claro. Algumas vezes procuro mulheres. E cada vez mais elas estão indo ao Biro. O Biro é um bar que o Antônio Prata chamaria de “meio intelectual, meio de esquerda”, com seu balcão velho de fórmica, os bancos gastos, um enorme mapa múndi, um barrilzinho de pinga com o distintivo do Corinthians, a mesa de sinuca no fundo (onde as caçapas são tão apertadas que às vezes parece que o jogo não vai acabar nunca), mas o principal são os dois grandes painéis laterais, retratando cavalgadas e paisagens bucólicas. Esses painéis são realmente incríveis, eu não me canso de olhar para eles. A típica coisa brega/autêntica que a galera pira, e eu já me acostumei tanto com aqueles cavalos ali, me olhando, que não imagino como seria o bar sem eles. Até que um dia, dando na telha ou entrando um dinheiro extra, o Biro manda passar uma tinta, faz uma parede com textura ou algo do tipo, mais “moderno”, mais fácil de limpar, e acaba com a graça da galera hipster.

Voltando ao meu critério para preferir o Biro, refiro-me a um estado de bem-estar simples, absolutamente trivial: encostar-me ao balcão, tendo a minha frente uma garrafa de cerveja e um copo americano. Isso é o básico de um bar. O resto é acessório. Isso remonta, sem dúvida, ao primeiro bar da história da humanidade e ao seu primeiro frequentador, que certamente saiu de lá, montando em seu cavalo, satisfeito e surpreso com aquela experiência incrível, tão simples, tão fundamental: sentar-se ao balcão e beber, se possível beliscando um amendoim, mas isso já é secundário. O principal: balcão, bebida, barra. Sem pentelhação, sem encheção de saco, ninguém tagarelando na orelha. Balcão, bebida, barra – com aliteração e tudo! Sem dar satisfação, sem olhar o cardápio, sem ter que xavecar ninguém, sem ter que escolher a roupa antes de sair de casa. Balcão, bebida, barra e foda-se a menina que você tem que paquerar, que você tem que dar em cima, senão algum filho da puta incansável vai levar a melhor nessa história. Balcão, bebida, barra e não preciso me posicionar politicamente, nem falar de trabalho, nem convencer ninguém sobre nada. Balcão, bebida, barra, Biro e foda-se o mundo, amanhã eu volto a me preocupar com ele...

Tudo isso eu encontro lá, talvez você encontre em outro bar, talvez isso não faça o menor sentido pra você, e neste caso eu recomendo o happy-hour-rodízio-de-petiscos da Paulista ou qualquer lugar novo na Vila Madalena onde a gente não consegue nem escutar o próprio pensamento.

Sobre a barra, o Migue, amigo que entende de bar como poucos e que por isso adora o Biro, me contou que foi ela, a barra, que deu origem ao nome “bar”. Ela é essencial. É onde a gente apoia os pés – quer coisa mais importante do que isso? Mas não é todo mundo que tem consciência da importância dessa barra, sem a qual a gente começa a sentir desconfortos terríveis nas pernas e nas costas. Muito dono de bar não sabe disso e simplesmente manda tirar, como se não fosse fazer falta.

Do outro lado do balcão, está o Biro, solícito, honesto, atento (qualidades que lembram o seu Zé, o garçom que fez tanta fama que acabou dando nome ao bar das empanadas chilenas. Que fim ele teve?). Ali está o Biro e toda vez eu tenho vontade de dizer pra ele como eu gosto do seu bar, como para mim é bom estar ali olhando os cavalos, o mapa, o Geladeira, as bolas numeradas correndo pra lá e pra cá, escutando os frequentadores da velha guarda combinando seus churrascos de aniversário, suas caravanas para o litoral... Enquanto isso, amigos de facebook fumam seu cigarro na calçada. Enquanto isso, eu medito, e bebo.

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Agradecida

por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

De tempos em tempos, aparece em alguma revista semanal um longo artigo sobre os avanços da medicina no tratamento de bebês prematuros. Falam sobre como evoluíram o conhecimento sobre o assunto, os equipamentos e a capacidade de fazer sobreviverem prematuros cada vez mais prematuros e menores. As matérias incluem testemunhos de pais, médicos e outros profissionais sobre as complicações e situações-limite, e também sobre a satisfação com os resultados obtidos, pois muitas dessas crianças – mas não todas – superam as dificuldades iniciais e vivem sem qualquer sequela importante.

Se bem que tudo depende das circunstâncias. Acabo de ver uma reportagem na televisão sobre o fato de a prematuridade ter sido alçada ao topo da lista mundial de causas da morte de crianças com até cinco anos de idade, um posto até recentemente ocupado pela pneumonia. Este fato pode ser um reflexo da tendência de tentar salvar bebês cada vez menos amadurecidos, e em condições extremamente precárias, além de trazer embutidas as dificuldades de atendimento em lugares que carecem de recursos médicos, econômicos e educacionais adequados.

Eu nasci prematura, na segunda metade da década de 1950, no interior de São Paulo. Segundo a informação que me chegou, uma bebê bastante frágil, com baixo peso e estranhos sintomas, que ora me parecem uma síndrome respiratória típica, ora “petit mal”, dependendo da ênfase de quem relata. Até onde sabemos, não houve um diagnóstico definitivo.

Com alguns meses iniciais na incubadora, e depois muitas idas e vindas ao hospital, meu primeiro ano foi bem atribulado. Entretanto, dos tais sintomas, não restou nenhuma sequela. Embora tenha demorado um pouco para cumprir as primeiras etapas de desenvolvimento psicomotor, por volta do segundo aniversário eu já era uma menina perfeitamente ajustada ao ritmo da infância considerado normal.

Mas não foi bem assim. Levei muitos anos para perceber que aquela sombra que eu sentia me encobrindo desde que me entendia por gente tinha um nome: dor. O frio interno, a sensação de abandono, aquela ferida que me fazia sangrar por dentro o tempo todo, e que não tinha razão compreensível, atendiam todos pelo nome de dor. Hospital, solidão, luz artificial, tristeza, desconforto, e sabe-se lá que outras experiências parecidas, que hoje considero superadas, deixaram suas marcas.

Fotos de super-prematuros acomodados na palma das mãos dos adultos me dão pânico. Tenho vontade de gritar, de sair correndo. As revistas têm um prazer todo especial em exibi-las nas suas capas. As façanhas médicas fascinam e estimulam mães e pais a buscar, compreensivelmente, que seus bebês vivam, não importando as dificuldades implicadas. Os médicos têm aí oportunidades preciosas de exercer e exibir suas habilidades, técnicas e competências. Felizmente, pelo que tenho lido nos últimos tempos, tem havido uma crescente preocupação com tratamentos e abordagens menos invasivas e agressivas e mais voltadas para proporcionar acolhimento adequado, conforto e bem-estar às criaturinhas que chegam ao mundo antes da hora.

Viver vale a pena, sempre. Eu não preferiria ter aberto mão da experiência vital, mesmo porque aquilo tudo ficou bem lá atrás, mas talvez sobreviver pudesse ter envolvido menos dor e sofrimento. Naquele tempo, acho que isto não teria sido possível, e sei que recebi o melhor que estava ao alcance. Por mais distante no tempo que esteja a minha experiência, é alentador saber que a neonatologia está indo além da garantia da sobrevivência física e tem cada vez mais voltando seus esforços para o alívio do desconforto, tensão e dor dos prematuros. Agradeço de coração, profundamente, qualquer esforço neste sentido.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Uma estrada de Natal a São Paulo


por Nina Madsen   ilustração Marcelo Martins Ferreira*

A história de Seu João foi um desses presentes inesperados que algumas corridas de taxi nos oferecem. Estava em Natal, a caminho do aeroporto para voltar para Brasília. Dirigindo o taxi, um senhor de mais de 60 anos, animado e falante, louco para me contar sua história. Ela foi se desdobrando no decorrer do longo caminho rumo ao novo aeroporto da cidade, noutra cidade – São Gonçalo do Amarante.

Seu João foi dirigindo e me contando que por ali nascera e vivera a infância. Naqueles tempos, a distância era ainda maior, não em chão, senão em horas e dificuldades de percurso. A cidade de sua infância era um vilarejo feito na areia e por ela João caminhava todos os dias, descalço, fazendo o caminho de casa para a escola, da escola para casa. A caminhada, tão longa quanto nosso trajeto de carro até o aeroporto, era ato de resistência e insistência – aquela mesma teimosia da qual já falei por aqui.

Pois Seu João era teimoso nisso de ir à escola. E teimoso também na ideia de fazer crescer seu mundo. De modo que aos dezessete anos, decidiu subir em um ônibus e tentar a vida em São Paulo, terra prometida de então, numa época em que a seca e a falta d’água eram chagas nordestinas exclusivas.

Disse que preparou a marmita na lata de leite e se foi. Logo no início da travessia, Seu João foi reconhecido por um primo distante que não via há muitos anos. Contou da sua corajosa aventura e recebeu do parente o endereço de seu irmão, que morava em São Paulo, e uma foto, para que ele pudesse ser identificado como família.

E seguiu viagem, certo de que em não mais que sete horas estaria na grande cidade. E eis que aquelas sete horas começaram a se multiplicar em dias – três no total – e João, faminto, sem tostão que fosse para enganar o vazio do corpo. Quando chegou a São Paulo, foi em busca da casa do parente. Quem abriu a porta foi a mulher do primo, que nem de longe conhecia Seu João. Mas ao olhar a foto do marido mais novo, deixou entrar o garoto, dando-lhe logo de comer. Ele me contou com detalhes o banquete de pão com manteiga e carne com que apaziguou sua fome. E como em seguida saiu para passear pela cidade, deparando-se com um cartaz de Precisa-se de cobrador, em frente à parada de ônibus. Apresentou-se. O motorista pediu que fizesse umas somas – ele era bom de matemática – e o contratou.

E Seu João assim se instalou em São Paulo. Casou-se, teve filhos e foi fazendo por lá a vida. Quando pôde, voltou para sua terra de origem. Seus filhos, hoje adultos, nunca precisaram caminhar descalços em chão de areia para ir à escola.

Seu João não me contou das desventuras que viveu por lá pelo sudeste. Não me contou das discriminações, do preconceito, do ódio. Não precisou. Eu imaginei mesmo assim.

A história dele era a de sua satisfação e de seu orgulho com a vida vivida. Orgulho que logo virou meu também, orgulho por tabela, orgulho por emoção. De ver gente assim, que acredita na vida em qualquer circunstância. Gente que sabe caminhar seu caminho, que entende que entre Natal e São Paulo é uma terra só (sempre bom lembrar...), toda pronta para ser desbravada. Por mais que nos digam o contrário.

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Nina Madsen escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Integra o colegiado de gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o CFEMEA, e colabora com a Universidade Livre Feminista. Aventura-se pelo avesso do mundo quinzenalmente, na coluna Crônicas do desmundo. *Desmundo aqui faz referência ao romance de Ana Miranda, uma lindeza literária que nos conduz pelas fronteiras entre o real e o onírico. Marcelo Martins Ferreira, ilustrador, design e músico, especial para o texto

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Recortado


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

O tempo roda e a gente, que mora longe, vai se esquecendo de que aqui nesta cidade aconteceu aquela tragédia. Num dia como outro qualquer, uma terça-feira, se não me engano, alguém entrou correndo no escritório falando que um avião de passageiros havia se chocado contra um enorme edifício de escritórios em Nova York. Ligamos a televisão da sala de reuniões e assistimos ao vivo, entre incrédulos e apavorados, o choque do segundo avião contra o segundo prédio, num episódio que já dispensa qualquer outro comentário ou descrição.

Um memorial foi construído no local exato do acontecido. Dois enormes tanques de água quadrados e idênticos, tendo ao fundo e ao centro outro quadrado menor, escuro e profundo, para dentro do qual jorra incessantemente a água, que parece brotar nas bordas e desce pelas paredes verticais. Nas bordas externas, ao longo de toda a volta deles, estão gravados, ou melhor, recortados em chapas metálicas, os nomes de todos os que foram ali imolados aos deuses e deusas que infestam e infelicitam o nosso mundo. Meu coração, apertado e acelerado ao mesmo tempo, passou o recibo da emoção de estar ali e do impacto causado por esse simbolismo genial, que tem água em movimento e o abismo sugando tudo.

Num contraponto virtuoso, igualmente capaz de tirar o fôlego, as colagens de Henri Matisse expostas no MoMA dialogam com o que de melhor pode haver dentro do peito de qualquer criatura viva. Experimente com a série “Véspera de Natal”, aí mesmo, na tela do seu computador.

Estranha e fascinante cidade, um enclave de tolerância e diversidade numa das portas de entrada de um jovem país puritano e obstinado em seu propósito de dominar o mundo. Caminhar por suas calçadas planas, impecáveis e intermináveis é toda uma experiência. Neste quesito, o destaque da semana foi a mulher elegante, que fazia uma pausa para escrever algo no teclado do celular, trazendo pela coleira um grande porco com ares cosmopolitas, como deve ser. Ambos muito compenetrados.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Obrigado ao menino do mato

Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas - é de poesia que estão falando.

Manoel de Barros, o meu poeta preferido, foi-se neste dia 13 de novembro aos 97 anos na garupa de um bem-te-vi-cartola, a voar as miudezas e rir as ignoranças da gente toda. O menino do mato usou palavras de ave para escrever. E fez isso como ninguém. Como ninguém voou fora da asa.

O poeta nasceu em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, em 1916, onde passou a infância. Rodou e em 1949 voltou ao Pantanal para tomar conta de uma fazenda que herdou do pai. Viveu em Nova York, Paris, Itália e Portugal. Aos 97 anos tem mais de 20 livros publicados e é considerado um dos poetas da língua portuguesa mais originais de todos os tempos. E o mais lido do Brasil.

Meu amigo Renato Pompeu, que também nos deixou esse ano, quando escreveu do lançamento da poesia completa de Manoel de Barros, há alguns anos, pontuou: "“Rosas de maio”, nome de canção gravada nos anos 1940 pelo grande Carlos Galhardo, é a frase que me ocorre para saudar o grande lançamento do mês: a “Poesia completa”, de mais de 490 páginas, do grande Manoel de Barros, volume lançado pela Leya, com capa dura e magníficas ilustrações coloridas." Um livro essencial.

Rosa de Maio
Carlos Galhardo

Rosa de Maio
É meu desejo
Mandar-te um beijo

Nesta canção...
Rosa de Maio...
Deste poema

Tu és o tema
E a inspiração
Rosa de Maio...

Já não consigo
Guardar comigo
Tanta paixão!
Rosa de Maio
Por qualquer preço
Eu te ofereço
Meu coração!

Obrigado poeta!

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Algumas poesias de Manoel de Barros

O livro sobre nada

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.

O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

O fazedor de amanhecer

Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.

Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Prefácio

Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas.

Os deslimites da palavra

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas

* * * * * * *

Thiago Domenici, editor e coordenador do NR

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Uma final épica em Minas Gerais

por Pedro Mox*

No ano da Copa no Brasil, a final da Copa do Brasil promete parar novamente o país, colocando frente a frente Cruzeiro e Atlético-MG. Os motivos não são poucos. O primeiro é o fato de se tratar de um clássico. É apenas a segunda vez que dois times de uma mesma cidade se enfrentam na decisão da competição – a primeira foi em 2006, quando o Flamengo se sagrou campeão sobre o Vasco ganhando as duas partidas (2-0 e 0-1).

A forma pela qual o encontro foi desenhado também é especial: até 35 minutos do segundo tempo das semifinais, Flamengo e Santos decidiriam a competição. Foi quanto Willian anotou o tento cruzeirense; quatro minutos depois Luan fez o derradeiro e milagroso gol atleticano, concretizando a final mineira. Olhos de todos os cantos apontaram para Minas Gerais, a terra do futebol na atualidade – o que não é mero acaso.

Em 2013 a Libertadores e o Brasileiro ficaram por lá. Este ano ambas equipes mantiveram a base, coisa ainda não tão natural em nosso país, e boa parte dos que entrarão em campo nesta final já levantaram algum troféu com seu clube. A manutenção dos treinadores também merece destaque: Marcelo Oliveira fez belo trabalho à frente do Coritiba, foi demitido do Vasco em apenas dez partidas e hoje caminha para seu terceiro ano de Cruzeiro. No Atlético, após a permanência de Cuca entre 2011 e 2013, Levir Culpi teve o apoio necessário após a turbulenta eliminação da Libertadores (que causou a queda de Paulo Autuori).

A pré-temporada igualmente merece atenção: como o campeonato mineiro é enxuto (quem chega à final entra em campo 15 vezes), o tempo de preparação das equipes é maior. Paulistas e cariocas, por exemplo, fazem 19 jogos – o que, além de prejudicar o calendário, proporciona uma série enfadonha de partidas, como a modorrenta primeira fase do estadual de São Paulo.

Cruzeiro e Atlético são acostumados a decidir o estadual, já o fizeram em 19 campeonatos. Vantagem para a Raposa, que faturou 12 destes canecos. Em 2014, entretanto, o placar não saiu do 0-0, fazendo com que o Cruzeiro fosse campeão por ter a melhor campanha. Ano passado o Galo levou a melhor, ganhando no Independência por 3-0 e perdendo no Mineirão por 2-1. Em competições nacionais, todavia, é a primeira vez que o duelo acontece em uma final. Aliás, é somente a terceira vez que a dupla mineira se encontra em fases decisivas de torneios nacionais. O último encontro foi em 1999, pelas quartas de final do Brasileirão; duas vitórias do Galo (4-2 e 2-3) no Mineirão sobre o Cruzeiro então treinado por Levir Culpi, atual comandante alvinegro. Antes, pelo Brasileiro de 1986, dois empates (0-0 e 1-1), também pelas quartas, levaram o Atlético à semifinal.

Nos cinco clássicos promovidos em 2014, foram três empates sem gols no estadual e duas vitórias atleticanas no Brasileiro, 2-1 no Independência e 2-3 no Mineirão. O fator casa foi explorado pelos presidentes, e os dois duelos terão torcida visitante. É legítimo realizarem-se uma partida em cada campo, mas o que eu gostaria de ver é um Mineirão lotado, com 30 mil para cada lado, tal qual o clássico que lá assisti há alguns anos. É triste, muito triste, ser isso for coisa do passado, sobretudo pela nossa incapacidade de lidar e combater a violência no futebol. Resta torcer para que haja o mínimo de confusões possível, e que Belo horizonte nos brinde com mais um espetáculo futebolístico à altura que equipes e torcedores merecem. Com um cafezinho com pão de queijo para acompanhar.

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*Pedro Mox, jornalista e fotógrafo, especial para o NR

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Pensando em mim

por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

Minhas andanças são o meu combustível. Se a atividade de cronista é alimentada pela capacidade de observar e traduzir o cotidiano, as coisas, pessoas e situações que nos cercam e nos acompanham, para mim há um elemento adicional indispensável, que é a possibilidade de viajar e me sentir desatada, solta nas ruas de algum outro lugar. Não sei que bicho é este, se algum vírus ou mutação genética. O que sei é que preciso de vez em quando me perder em longas peregrinações urbanas, caminhar sem rumo certo, olhando, sentindo, ouvindo e degustando os lugares, as gentes, odores e temperos alheios ao meu dia-a-dia candango, tão conhecido e tão entranhado.

A solidão nas viagens é cheia de sutilezas. Ela permite sintonizar olhos e ouvidos no alheio, naquilo que se oferece a cada passo dessas pernas forasteiras. Aqui, como em muitos lugares neste nosso século 21, as pessoas andam falando em seus celulares. Quando paradas ou sentadas, os olhos ficam grudados nas telas brilhantes. Muitas usam fones de ouvido enquanto conversam, gesticulam e argumentam em todas as línguas possíveis, como se estivessem no sofá da sala, dando a impressão de que algum truque de ilusionismo as impede de perceber o entorno de pessoas participando involuntariamente da discussão sobre o alegado assédio moral da chefe ou o comportamento descontrolado do filho adolescente. Mais intrigante ainda quando se nota que a privacidade e o tom baixo da conversa são traços marcantes da cultura local. Alguém deve estar se ocupando de analisar a humanidade depois do advento da telefonia móvel.

Porém, uma coisa é estar eventualmente sozinha, ou mesmo morar sozinha, tendência em alta neste nosso tempo de organização familiar em arquipélagos. Outra, bem diferente, é viver na privação do afeto e dos vínculos emocionais, que são a verdadeira essência da condição humana. Como os espelhos em que precisamos conferir nossa aparência todo dia, várias vezes por dia, cada vez que passamos diante de algum deles, as pessoas com quem trocamos afeto nos confirmam quem somos, e, em primeira e última instância, que viver vale a pena.

O sol tem sido generoso comigo nestes dias de outono frio do Norte. Um detalhe essencial, pois sem ele eu começo a definhar rapidamente. Além disto, como dito à perfeição pelo Dorival Caymmi,

“A estrela Dalva me acompanha
Iluminando o meu caminho
Eu sei que não estou sozinho
Pois tem alguém que está pensando em mim.”

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Se

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Episódios quinzenais toda quinta-feira. 

(Episódio 19)


por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall

Quando vi meu pai morto, faz um ano, pensei para me consolar: ele teve uma vida imensa. Conheceu o fracasso, mas também o sucesso. Tentou, errou, tentou novamente. Foi homem capaz de uma consistente história de amor de vida inteira com a minha mãe. Acreditou no comunismo dos quinze aos oitenta e três anos de idade. Deu muito azar em várias situações, mas, no balanço das perdas e ganhos, ele foi um sujeito de sorte.

Ao ler trechos das biografias dos mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar, percebo o quanto a maioria era jovem. Gente que nem havia encostado nos trinta. Olho para as fotografias e me ponho a imaginar o que eles seriam hoje. Certamente, velhinhos e velhinhas interessantes. Talvez, alguns até desinteressantes. Não importa. Teriam décadas inteiras para viver suas histórias.

Por exemplo, me detenho no rosto de Stuart Edgar Angel Jones, o Tuti. Um rapaz findo aos 25 anos. Não por conta do vírus Ebola ou por desastre de carro. Ele foi torturado até a morte dentro do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, no Rio de Janeiro. Amarram-no a uma viatura, com a boca colada ao cano de escapamento. Daí deram voltas no pátio. A viatura acelerava e freava. Tuti com a pele esfolada, tossia forte.

Essa cena foi testemunhada - e depois relatada a Zuzu Angel, mãe de Stuart - por um outro preso, o Alex Polari de Alverga. Fim da história? Não. Até hoje, novembro de 2014, os restos mortais do rapaz não foram encontrados. Há dois relatos diferentes: o primeiro diz que seu corpo foi jogado de um helicóptero em alto-mar. O segundo, ele teria sido enterrado como indigente em algum cemitério carioca. Grandes chances para ser o Cemitério de Inhaúma, aquele que Lima Barreto (1881-1922) eternizou no estupendo conto Os Enterros de Inhaúma.

Procuro mais informações e descubro que antes de ingressar no MR-8 - um dos pequenos grupos que optaram pela luta armada para enfrentar a ditadura - Stuart Angel havia sido um desportista, tendo ganho o bicampeonato de remo pelo Flamengo. Também tivera vida de estudante de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Dois mais dois igual a quatro, tento imaginar o que Stuart teria feito se não tivesse a vida interrompida naquele maio de 1971. Medalhista de Olímpiada? Economista de banco? Professor de educação física? Vendedor de secos e molhados? Qualquer coisa poderia ter acontecido na vida dele, do mesmo jeito que qualquer coisa acontece nas nossas.

Na data de sua prisão, ele era casado com Sônia Moraes Jones. Uma moça também militante, também torturada e morta em 1973. Também desaparecida. Também cheia de possibilidades. Será que eles estariam juntos até hoje? Será que teriam filhos? Quem sabe agora teriam netos? Nenhum dos dois viveu para contar o futuro deles para nós.

Aliás, eles não tiveram foi tempo. Porque na casa dos vinte anos, a gente ainda nem tem um passado muito grande. Temos, em geral, a cabeça cheia de sonhos futuros. Eu por exemplo, em 1971, achava que seria médica. Acabei estudando cinema e me tornando escritora - entenda-se, alguém que escreve por prazer de escrever.

Mesmo quando narro uma história dolorida como essa, há a delícia de contar.

Stuart e Sônia foram apenas dois entre os muitos jovens que a ditadura militar torturou, matou e sumiu com os corpos. Também fizeram isso com pessoas mais velhas. Os torturadores e seus mandantes não faziam cerimônia. Eram todo-poderosos. E, até os dias atuais, esses senhores da morte estão livres e soltos por aí. Não digo leves. Pois não acredito que sejam.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

A prosa centenária de Carolina Maria de Jesus

por Ana Paula Santos, especial para o NR

 “Estou escrevendo e pretendo escrever, continuar a escrever. Agora que eu estou encaixada dentro do meu ideal que é escrever”
Carolina de Jesus

Dois mil e quatorze é um ano especial na história da literatura brasileira. Para a tradição literária negra, um marco garante ao ano corrente a imortalidade na memória coletiva de um povo. Há cem anos, completados em março, nasceu em Minas Gerais, a escritora Carolina Maria de Jesus. Dona de uma escrita sensível e poética, Carolina narrou na obra Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada (1960), as mazelas do cotidiano dos primeiros moradores de favela do Canindé em São Paulo. A autora, mãe de três filhos, além de escrever, trabalhava como doméstica e catadora de lixo. É neste contexto que nascem os seus escritos, transmitindo com voracidade as relações imbricadas das desigualdades de raça e classe e o peso de quem está na base que sustenta as estruturas de poder. Em uma escrita negra, feminina, favelada e em primeira pessoa, a obra da autora facilmente se enquadraria nas características do período realista da literatura brasileira. Mas Carolina jamais frequentou os círculos tradicionais dos escritores da época.

Quarto de Despejo sua primeira e mais famosa obra, vendeu mais de 50 mil exemplares no Brasil e no exterior, tornou-se best-seller na Europa sendo traduzido para 13 idiomas. A escritora ainda publicou mais quatro livros: Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de fome (1963), Provérbios (1963) e o Diário de Bitita (1982, póstumo). Carolina Maria de Jesus quebrou paradigmas no século 20 ao apresentar uma prática literária divergente com o padrão eurocêntrico comum a literatura brasileira.

Ela seguia os passos de outra preta, que talvez jamais ouvira falar, a maranhense Maria Firmina dos Reis. Firmina lançou em 1848 o romance Úrsula. Estas mulheres, por muita competência, conseguiram o extraordinário: romperam a barreira falocêntrica e racista do mercado editorial brasileiro, descortinaram o caminho para que outras negras, em seguida, imortalizassem na linguagem escrita a tradição literária preta, tão viva na tradição oral. Esmeralda Ribeiro, Conceição Evaristo, Cidinha da Silva (colunista do Nota de Rodapé) e Cristiane Sobral são algumas de muitas escritoras negras descendentes de Carolina.

“Carolina Maria de Jesus imprimiu uma rasura no cânone com seus escurecimentos necessários, sua escrita periférica em um tempo em que o ponto de vista dos excluídos não costumava ser apresentado no universo das letras. Sua visão particular reflete sobre questões de gênero, sobre a identidade negra, sobre a política, para citar alguns dos temas, em um tempo em que o próprio ambiente onde morava, a favela do Canindé, dificilmente era retratado além das páginas policiais”, disse certa vez a escritora Cristiane Sobral.

Seu legado inspirou estudos e grupos de pesquisas como o Etnicidades no Instituto de letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Literafro da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Coletivo Carolinas ao vento, Centenária e Atemporal entre outras iniciativas que promovem reflexões sobre a escritora.

Carolina Maria de Jesus faleceu em 14 de agosto de 1977. Conforme cita em uma de suas obras: “não tenho força física, mas minhas palavras ferem mais do que espada”.

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Ana Paula Santos é soteropolitana, jornalista, radialista, produtora, apresentadora e repórter com formação em televisão. Colabora com o Jornal Brasil de Fato e edita o Blog Literatura Subversiva.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Um Brasil dividido?

por Celso Vicenzi*

Quem deu a vitória para Dilma Rousseff foram os estados do Sudeste e Sul, principalmente, com 49% do total de votos que a elegeram. Se acrescentarmos os votos do Centro-Oeste, sobe para 54,9%. Dilma obteve no Nordeste 37% (quase o mesmo no Sudeste, 36,5%). O Norte deu à candidata mais 8,1% dos votos. Fácil concluir que cada voto, não importa a região, contribuiu para o resultado. Então, por que os principais veículos de comunicação (em TV, rádio, jornal, revista e internet) insistem na tese de um país dividido? A divisão por estados distorce a realidade. Mais do que isso, contribui fortemente para instigar ódio de classes e ódio regional, sobretudo contra os nordestinos.

Atribui-se ao primeiro-ministro britânico, falecido em 1881, Benjamin Disraeli, a célebre frase: “Há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras descabeladas, e estatísticas.” A mídia brasileira usou a terceira forma de mentira para pintar o mapa do país de azul e vermelho e obter uma conclusão irreal. Nele, assinalava os estados em que a candidatura de Aécio foi vencedora e onde Dilma havia vencido. Não haveria problema em mostrar essa informação, se fosse seguida de outras, como, por exemplo, os municípios em que uma candidatura ou outra foi vencedora. Neste caso, o mapa já estaria mais diluído em sua justaposição de cores. Mas deveria ser acrescido, necessariamente, de um terceiro mapa: o que mostrasse a mistura dos votos e, portanto, das cores. Quem fez isso foi o mestrando em História Econômica pela Unicamp (SP), Thomas Conti. Seu mapa, reproduzido em vários portais, muda completamente a forma de olhar para o resultado da eleição. (www.jornalggn.com.br/noticia/o-mapa-das-eleicoes-por-thomas-conti).

O papel do jornalismo não é apenas mostrar dados. É, sobretudo, contextualizá-los. Saber interpretar fatos ou números é o que diferencia jornalistas competentes de mal preparados ou mal intencionados. Infelizmente, temos lido, ouvido e visto cada vez mais jornalistas, comentaristas e colunistas na grande mídia que são apenas produtores de sofismas, ou seja, “raciocínios ou argumentos aparentemente lógicos, mas que são falsos e enganosos”.

É por isso que boa parte do discurso de ódio presente nas redes sociais tem na mídia o seu principal combustível. Porque a desinformação gera distorção, que gera preconceito, que gera discurso de ódio. Se Aécio tivesse vencido por um voto, todos os que destilam nas redes sociais grosserias e sentimentos anticivilizatórios e desumanizadores estariam comemorando a “vitória da democracia”. Evidente que a maior parte dos eleitores e eleitoras do candidato derrotado do PSDB não se enquadra nesse perfil. Mas, certamente, poderiam refletir sobre o que os leva a fazer companhia, na hora do voto, a pessoas tão desqualificadas para viver em sociedade.

Mas, se não há a divisão maniqueísta entre “o Brasil que produz” e o “Brasil atrasado”, entre o Brasil de azul e o Brasil de vermelho, há, sim, sinais expressivos de cisões no país. Diferenças que também não podem ser pintadas apenas de azul e vermelho, "nós ou eles", porque igualmente não representam a diversidade de opiniões e as motivações que levam o eleitor e a eleitora a optarem por uma candidatura.

Há cada vez mais brasileiros que se aliam a duas formas diferentes de pensar o país e que se expressam mais vigorosamente nas redes sociais. A dos brasileiros que querem um país menos desigual e a dos que se negam a abrir mão de privilégios. A dos brasileiros que preferem um Estado forte para fazer políticas públicas e outros que preferem que o mercado se encarregue de fazer justiça social. A dos brasileiros que desejam fazer avançar os Direitos Humanos e a dos que propõem tratar questões sociais à bala, com mais repressão. Aqueles que concordam em oferecer mais oportunidades para os negros e brasileiros que se acostumaram a vê-los como mão de obra barata. Os cidadãos e cidadãs que lutam por uma sociedade menos patriarcal e machista e os brasileiros e brasileiras que se mantêm omisso(a)s, sem falar na parcela expressiva que continua a tratar as mulheres sem igualdade, com discriminação e preconceito.

Há um esboço de divisão que não é geográfica, mas de projetos políticos. Há muitos brasileiros que são solidários à manutenção de uma diplomacia externa que una a América Latina, que dialogue com a África, com culturas não ocidentais, ou seja, com todos os povos, e há outros que gostariam de ver o Brasil alinhado às posições do governo norte-americano e das principais potências europeias, que, não raro, têm optado por uma diplomacia muito mais beligerante em relação a alguns países.

Tudo indica que há um aprofundamento das discórdias e a construção desse fosso tem na mídia boa parcela de responsabilidade, pela falta de um debate mais plural, que acolha opiniões destoantes do senso comum e da linha editorial imposta pelos donos dos veículos de comunicação. Por isso, há brasileiros que lutam por mais informação e conhecimento, que defendem a regulamentação da mídia, e há outros que não se sensibilizam para isso e ainda confundem a democratização dos meios de comunicação com censura. Há brasileiros que apoiam políticas públicas que propiciem educação de qualidade, em todos os níveis, para que haja uma ascensão social das classes menos favorecidas, inclusive com ações afirmativas, a exemplo das cotas, enquanto outra parcela de brasileiros acredita que as oportunidades já são iguais e vê como injustiça a criação desses mecanismos compensatórios. Há sinais de uma divisão quando parte da população manifesta orgulho pelas mudanças sociais que têm sido implementadas e igualmente outra parcela de brasileiros tratam esses avanços com desprezo, como esmolas para vagabundos.

Há brasileiros que anseiam por um país que se reconheça em todas as suas diferenças culturais e regionais e se orgulhe delas, e outros que exibem, potencializados pelas redes sociais, muros de preconceito, ódio e discriminação. Enfim, há divisões que, mais do que geográficas, são políticas e ideológicas. Na mais disputada eleição presidencial dos últimos tempos, apareceram fissuras que ameaçam a consolidação de um país democrático, que respeite o resultado das urnas e a vontade soberana expressa pelos brasileiros em cada voto. Terá que haver um enorme esforço para promover o diálogo – e nisso, novamente, a mídia tem um papel fundamental –, para estancar os discursos de uma aberta pregação golpista e as manifestações de rancor e raiva. A democracia é o sistema que legitima a igualdade política e social. Isso precisa ser melhor debatido e praticado entre os brasileiros e brasileiras.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.
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