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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Essa doida


texto e imagem Júnia Puglia

De passagem pelo Rio, o apartamento que nos acolhe fica na Domingos Ferreira, linda e curta rua paralela à orla em Copacabana, cheia de árvores, restaurantes, bares e do inconfundível ar ultracarioca impregnado em cada partícula do mitológico bairro. Caminhando lado a lado, meu filho e eu somos surpreendidos por uma moça que, vindo em sentido contrário, o chama pelo nome, ao passar por nós. Ela se explica. É aquela menininha de grandes olhos escuros e pestanudos, do apartamento vizinho, quando meu filho e ela tinham uns três anos, frequentavam a mesma escola maternal e aprendiam juntos a nadar na piscina do parquinho, em Brasília. Fazia muito que não a víamos, mas ela nos reconheceu e nos presenteou com um encontro inesperado e delicioso, os três em pé na calçada repassando afetos e memórias.

A saia que comprei há pouco, e deixei para ser encurtada às pressas, está à minha espera no ateliê da Odinéa, conforme instruções da vendedora da loja. Na enorme galeria comercial, misturam-se cubículos de treino de muay thai com lojas de moda cigana, de roupas esportivas e de praia, óticas, joalherias, sex shops, costureiras, agências de viagens e o que mais se puder pensar. Seis mulheres se espremem numa sala sem janelas, uma delas com sotaque hispânico, cada qual com sua máquina de costura. Conversam animadas, tagarelas como suas máquinas, chupando balas, contando casos e rindo muito, enquanto eu provo a saia e me marcam o novo comprimento. À falta de troco, o senhor velhinho que espera à porta se oferece para resolver o problema. Entrego-lhe o dinheiro e ele desaparece no corredor. Em menos de dois minutos, volta, todo feliz, com o dinheiro trocado.

Esse furdunço que é Copacabana nem sempre me atraiu. Talvez por ser barulhenta demais, bagunçada demais, com gente demais, gringos demais, apartamentos demais, cachorros demais, carros demais, tudo demais. Porém, quanto mais o tempo passa, mais essa confusão urbana me fascina. O mar e o calçadão ondulado sugerindo férias permanentes e, logo ali ao lado, a favela e o asfalto juntos, como irmãos siameses que jamais se verão frente a frente. E em cada centímetro quadrado desse mosaico alucinado, o DNA do que somos como gente e como país. Não há o que não caiba aqui dentro. É o que sinto.

Copacabana, sua doida, você nem me nota. Eu venho pouco aqui e fico na minha, andando nas ruas e te aprendendo como posso. Amanhã vou devolver para a aridez do cerrado os pulmões encharcados da umidade atlântica que você tão generosa e democraticamente distribui. Lá, além da estiagem sazonal, temperatura ascendente, em ano de eleição presidencial com uma campanha política pela qual ninguém dava muita coisa. Vamos que vamos. Obrigada e até qualquer hora.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Um cabra valente demais

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

(Episódio 16)


por Fernanda Pompeu      ilustração Fernando Carvall

Em 2005, fui com meus pais e uma irmã até Fortaleza. Uma viagem de sonho, pois eu não conhecia o Ceará. Toda a minha família paterna (os Pompeus) é de lá. Passei a infância carioca ouvindo minha avó, Afonsina, cantar em versos e prosas as belezas de Fortaleza e seu verde mar.

Numa das tardes de uma semana de deleite e cultura, resolvemos visitar o Museu do Ceará. Ao entrarmos demos de cara com o Memorial Frei Tito, criado em 2002. Senti alegria (e orgulho) ao compreender a homenagem da cidade a uma das tantas vítimas da ditadura militar.

Tito de Alencar Lima nasceu em Fortaleza no ano de 1945. Morou no Recife, Belo Horizonte, São Paulo. Morreu na França em agosto de 1974. Aos quase 29 anos, ele se enforcou com uma corda. Entre o nascimento e a morte, Tito teve manhãs entusiasmadas como ativista da Juventude Estudantil Católica (JEC), tardes pias na Ordem dos Dominicanos, noites intelectuais no curso de Filosofia da USP.

Tito também participou do Congresso da UNE em Ibiúna - aquele em que a polícia prendeu todo mundo. Mas sua vida entraria em rota para o desastre no momento em foi arrastado do Convento dos Dominicanos de Perdizes, São Paulo. A operação foi comandada pelo delgado Sérgio Paranhos Fleury - o temido e temerário chefe do Dops de São Paulo.

Frei Tito e outros dominicanos foram acusados de dar guarida a Carlos Marighella - o líder da ALN - Aliança Libertadora Nacional. No mesmo dia em que assassinaram Marighella, o cearense foi levado para sessões infindáveis e infames de tortura. Queriam saber um pouco do que ele sabia e muitíssimo do que ele ignorava.

Foi numa dessas sessões que Tito ouviu do torturador, capitão Albernaz: "Se você não falar, será quebrado por dentro. Agora, se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia". E tome choque elétrico, pau-de-arara, xingamentos.

Por fim, frei Tito foi libertado e banido do país, com mais 69 presos políticos, em uma troca pelo embaixador suíço sequestrado Giovanni Enrico Bucher. A partir daí, Tito andou pelo Chile, Itália e França. Mas principalmente caminhou por seus sonhos e medos. Pelas lembranças dos ideais e da cadeira-do-dragão.

Pessoas que conviveram com ele nos seus últimos anos de vida relatam seu sofrimento psicológico profundo. Ele "via" o delegado Fleury e o capitão Albernaz o perseguindo a todo momento. Até que tudo terminou no bosque, na árvore, na corda.

Saímos do Museu do Ceará a tempo de aproveitar o pôr-do-sol na Praia de Iracema. A prefeitura de Fortaleza montava um megapalco para um show de música. Entre a areia, a brisa e os operários andávamos. Silenciosos.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Lettera 22


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

Aquela pequena maravilha pertencia ao mundo dos adultos. Seu ruído me chamava. Era um tlec tlec tlec blim tlec tlec tlec tlec tlec blim que me fazia imaginar como eu seria poderosa quando pudesse usá-la. Eu sabia que era uma máquina de escrever, que cada tlec tlec correspondia a uma tecla de letra e o plim era quando chegava na margem direita do papel e a gente tinha que empurrar a alavanca à esquerda, que fazia o papel subir um pouco e abria espaço para uma nova linha. Nenhum brinquedo jamais me provocou tanto fascínio, o que eventualmente me levou a aproveitar os momentos em que ela estava ao alcance das minhas mãos e sem ninguém mais por perto.

Era com enorme prazer clandestino que eu pegava uma folha de papel, introduzia-a no cilindro com uma das mãos, enquanto o girava com a outra. O papel entrava, às vezes meio de lado, ou com a ponta dobrada; fui aprendendo a ajeitá-lo e a dominar os truques daquele aparelho genial, onde eu podia brincar com as letras e palavras como num quebra-cabeça só meu, sem princípio nem fim. Quando se deram conta, eu já podia bater à máquina com razoável agilidade e precisão, usando os dedos “errados”, pois datilografar era uma arte cheia de métodos e regras. Eu bem que tentei, mas jamais consegui fazer como ensinavam nos cursos.

Depois vieram as máquinas elétricas e, mais recentemente, os computadores. Tudo é possível com a tecnologia digital aplicada a esses teclados modernos. O que vai para as folhas de papel impressas nessas traquitanas são produtos limpos e acabados, pois qualquer ajuste é feito na tela, jamais no papel.

Ontem fui procurar na internet uns documentos oficiais do final da década de setenta. Encontrei folhas de papel digitalizadas, com a aparência e a estética originais. Amoleci por dentro e entrei no clima. Resolvi aplicar uma aparência de máquina de escrever ao relato que eu havia começado a escrever, mas, por incrível que pareça, não consegui reproduzir ao computador as imperfeições sujinhas da minha amada Olivetti Lettera 22 portátil. Um conflito de gerações, provavelmente devido às minhas limitadas habilidades no mundo digital. Vou de itálico.

Morei no Rio por um breve período, entre 1978 e 1980. Vinha de Brasília, que era então um lugar muito tranquilo e silencioso. Uma das minhas primeiras saídas foi para ir ao banco. Instalada em Botafogo, e seguindo instruções precisas, peguei um ônibus para Copacabana, via Túnel Velho. Ao sair do túnel, dei com um barulho intenso e contínuo, um ronco alto, como num galpão industrial. Quando saltei do ônibus (em carioquês), que deve ter sido nas imediações da praça Cardeal Arcoverde, então isolada por tapumes e completamente destroçada pelas obras do metrô, o barulho continuava, como se estivesse me seguindo. E estava. Logo percebi que aquele era o ruído do bairro, uma mistura de tráfego pesado com um mundo de gente fervendo nas ruas de altíssima densidade humana.

Entrei na agência bancária e fui para a fila do caixa. Pouco depois, entrou um sujeito, segurando papéis e dinheiro na ponta dos dedos, vestindo apenas uma sunga e calçando chinelos de dedo. Vinha da praia, obviamente, e me deixou tão atônita que eu duvidei dos meus olhos. Fiquei esperando que o segurança o pusesse porta a fora, mas ele se encaminhou para a fila e esperou tranquilamente a sua vez. Mais chocante ainda. Nunca na vida eu havia pensado que alguém poderia ir ao banco pelado. Era o primeiro dos muitos espantos que o Rio causaria na minha provinciana pessoa.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Beleza pura


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

A notícia mais linda deste fatídico 2014, quiçá da década, veio da Argentina: Estela de Carlotto, líder das Avós da Praça de Maio, pode finalmente conhecer e abraçar seu neto, nascido na prisão, trinta e seis anos atrás. Se alguém ainda duvida da maldade humana, as histórias dos bebês e crianças roubados às suas mães, pais e famílias não deixa fio solto.

Passados vários dias, ainda sinto no coração, na garganta e nos poros a onda eletrizante gerada pelo acontecimento, celebrado em imagens, memórias, entrevistas, lágrimas e cantorias desaforadas dessas incríveis mulheres. Pouco mais de trinta anos atrás, elas minaram e arruinaram o regime dos vampiros fardados, com a força da sua tenacidade e dos seus gritos de indignação. E não vão ter nem dar sossego, até localizarem tantos filhos e netos quantos lhes forem possíveis. Situação que se repete em várias partes desse nosso mundo farto de famílias destroçadas em nome do inominável.

Por mais que a notícia me emocione, não tenho ideia do que há por trás dela. Até o momento, minha história de ter e criar filhos, com tudo o que possa conter de sustos, medo, insegurança, alegrias, descobertas e sentimentos entranhados, passa bem longe de qualquer tragédia. Aliás, a oportunidade de exercer o papel de mãe é para mim um adicional, um presente da vida, que se tornou essencial, mas poderia não ter acontecido. Muitas mulheres não vivem esta experiência, por escolha ou circunstâncias, enquanto muitas outras o fazem por imposições várias, ou por falta de opção.

Fico tentando imaginar o que Estela sentiu quando sua filha decidiu viver como clandestina, durante a rapinagem de vidas promovida pela mais recente ditadura argentina, e desapareceu do contato com a família. Ou quando, ao buscar saber da filha, descobriu que esta havia sido presa e torturada, grávida. Depois, que o neto menino nasceu na prisão, esteve nos braços da mãe por cinco miseráveis horas e sumiu no mundo fabricado para apagar seu rastro. Ou quando recebeu a notícia do assassinato de sua filha. Não passei por nada disto, mas sei como é amar os filhos e sofrer suas dores do corpo e da alma. Tampouco posso avaliar a dimensão do que se passava dentro dela quando lhe registraram, em fotos e vídeos que correram o mundo, a expressão radiante e os dois fachos de luz que eram aqueles olhos, ao celebrar o neto recuperado.

Posso, isto sim, celebrar com ela, e o faço, com todas as minhas forças.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Desafinando o coro dos contentes

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

 (Episódio 15)


por Fernanda Pompeu    ilustração Fernando Carvall

A frase do título é verso de Torquato Neto (1944-1972). Aquele que, em sua brevíssima vida, desafinou mesmices do redigir. O cara experimentou para valer e pôs a alma para fora. Salve, menino Torquato! O craque da máquina de escrever.

Foi pensando no poeta e letrista piauense que me recordei do carioca Carlos Lamarca (1937-1971). Não que os dois (que eu saiba) tivessem afinidades ideológicas. De certo, o primeiro estaria mais para o caos do que para a sonhada nova ordem do segundo. Mas o que os aproxima, na minha memória, é justamente o desejo - transformado em ação - de desafinar o status quo.

Lamarca, capitão do Exército, poderia ter vivido numa boa no Brasil comandando por seus colegas de farda. No entanto por não concordar com a ditadura, nem com o capitalismo, tramou um assalto de armamentos no quartel de Quitaúna, Osasco, São Paulo. E entrou em cheio na clandestinidade e na luta armada.

Parece evidente que a semelhança entre os dois acaba por aqui. Será? Lamarca optou pelas armas como forma de derrotar os ditadores e entrar para a História. Torquato optou por se matar como forma de pular fora da História. No seu bilhete de suicida, ele escreveu: "Para mim chega!"

O fim dois se deu sob o chumbo da mesma época. O líder guerrilheiro foi assassinado por militares em Brotas de Macaúbas, interior da Bahia, em 1971. Um ano depois, no Rio de Janeiro, Torquato Neto acendeu o gás no banheiro de sua casa.

Lembro bem do começo dos anos 1970. Adolescente, regava mil sonhos, entre eles, o da liberdade de expressão e manifestação. Tudo o que então eu sabia sobre regimes democráticos era narrado pelo meu pai, militante do Partidão e louco pelo socialismo.

Se alguém perguntar se guardo boas recordações dessa época, direi que sim e que não. A parte negativa é óbvia, pois foi horrível ser jovem debaixo da repressão a ideias e informações. A parte positiva era a crença cega de que haveria um futuro mais bonito e mais desafinado.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

domingo, 10 de agosto de 2014

As crianças migrantes centro-americanas estão no limbo


Ao cruzar a fronteira entre os Estados Unidos e o México, aproximadamente 60 mil crianças provenientes da América Central foram detidas desde outubro de 2013 até junho desse ano. Essa situação reacendeu o debate sobre as políticas migratórias dos Estados Unidos, onde 11 milhões de migrantes indocumentados são altamente vulneráveis ao abuso dos seus direitos básicos que são garantidos pelas leis do país e pela legislação internacional.


por Aleksander Aguilar*

Já são 60 mil em menos de um ano. Uma grande quantidade de crianças de idades tão tenras quanto cinco anos. Elas viajam a partir de atravessadores (coyotes) até quatro mil km em lanchas, a pé, clandestinamente em trens de carga e ônibus, passando fome e enfrentando assédio, violência, assaltos, e inclusive o risco de sequestro de máfias narcotraficantes que os infligem cirurgias clandestinas de extração de seus órgãos para a venda.

Não estamos falando, pese que a intensidade do relato assim o faça soar, de algum roteiro hollywoodiano de imaginação fértil. Tampouco de distantes rincões na Síria ou em Gaza e dos refugiados de suas atuais guerras. Enquanto assiste-se estarrecido a absurda violência de Israel sobre a Palestina, o Brasil e grande parte do planeta ainda percebe pouco e ignora muito uma outra realidade, regional, dramática e nefanda, que se dá no nosso continente. Ela se inicia bem ali, logo acima da Venezuela, nesta região latino-americana que infelizmente para a maioria dos brasileiros ainda soa tão exótica quanto a longínqua região do Oriente Médio – a América Central. E conforma um contexto em que se misturam violência social, segurança regional e narcotráfico internacional.

A atual crise das crianças migrantes centro-americanas evidencia não apenas um grave problema migratório, mas revela a avassaladora situação de precariedade socioeconômica em que se encontra a América Central, principalmente nos países do chamado Triangulo Norte do istmo – El Salvador, Guatemala e Honduras. Desde essas nações, que estão entre as mais vulneráveis do continente, essa multidão de crianças atravessa todo o México até encontrar o “muro da vergonha”, que separa a América Latina dos Estados Unidos, onde se encontrarão com um limbo migratório: nem podem permanecer, nem podem serem enviadas de volta.

O drama social é evidente, e revela a desumanidade do nosso sistema internacional estatal – nem os Estados de origens dessas crianças, nem o Estado de destino as desejam. Não há um território que busque a realização dos seus direitos e as crianças migrantes centro-americanos transformaram-se em relegados sociais internacionais.

Uma verdadeira emergência humanitária que tem como uma de suas principais causas o corrente modelo econômico, característico da atual América Central, de dependência crônica das remessas – o dinheiro que os imigrantes, legais ou ilegais, centro-americanos que vivem na América do Norte enviam para os seus parentes nos países de origem – e é responsável, em larga medida, por manter a economia do istmo girando. Nos últimos 20 anos os centro-americanos enviaram aos seus países valores em remessas que alcançam 120 bilhões de dólares. Isso criou na região uma economia de consumo financiada artificialmente, e em que os lucros acabam concentrados nas mãos das oligarquias tradicionalmente dominantes, já que são os ricos que controlam os espaços de bens de consumo. Tal concentração, por sua vez, aumenta a desigualdade social que, como sabemos, também faz aumentar a violência. O desemprego crônico gera a migração massiva e investimentos produtivos são feitos em outros países, mesmo nos da região, melhor estruturados, como Costa Rica e Panamá. Assim exportar pobres se converte num negócio mais lucrativo do que buscar reduzir a imigração com tentativas de construção de uma matriz produtiva sólida.

O fator “maras” centro-americanas

É uma sequência perversa, e que relaciona migração com violência. Mas a situação econômica não totaliza a explicação. A Nicarágua tem uma economia talvez ainda mais vulnerável, mas suas crianças não fazem parte desta crise.

Porque entre essas pontas há o fator “maras”, as famosas gangues centro-americanas, que estão centradas no Triângulo Norte, e não no país Sandinista, que tem números de violência muito menores que os dos seus vizinhos. As gangues, ou no espanhol “pandillas”, é um fenômeno resultante do grande número de famílias fragmentadas, consequência direta das guerras civis que convulsionaram a América Central entre os anos 1960 e 1990, e da degeneração do tecido social familiar e comunitário que a migração produz. Milhares de centro-americanos da diáspora dessas guerras foram deportados pelo governo Bush (pai) a partir dos anos 1990.

Em terreno fértil para a violência, como são os territórios socialmente precários centro-americanos, e sem expectativas de bem-estar via “sistema”, consolidou-se dois grupos poderosos e rivais: a Mara Salvatrucha 13 e Pandilla Barrio 18, hoje consideradas duas das maiores gangues do mundo.

Muitas escolas públicas de bairros periféricos de Guatemala, El Salvador e Honduras, em lugar de proporcionar segurança e oportunidade para a juventude local, tornam-se espaços de recrutamento das pandillas. Os jovens que se negam são ameaçados e muitos assassinados, e a migração começa por aí – esses cidadãos sem segurança mínima nos seus próprios países são obrigados a sair de casa para não serem obrigados a se unir às gangues, e o caminho natural é a rota ao Norte. As maras dominam bairros inteiros e afetam diretamente a vida dos mais pobres, cobrando extorsão desde a entrada de transporte público em seus territórios até a entrega de jornal nessas áreas que comandam. Essas pandillas estão presentes nos três países e associadas em redes transnacionais. A perseguição de gangues e o recrutamento começaram a se impor como principais motivadores da fuga para os Estados Unidos.

A migração centro-americana hoje é uma catástrofe social para os pobres e um grande negócio para os ricos.

Dinheiro estadunidense resolve?

Os presidentes dos países do Triângulo Norte centro-americano, em reunião com Obama em Washington em julho deste ano, apontam parte da culpa nos Estados Unidos e utilizam a crise para solicitar mais investimento em segurança regional por parte do país, baseado no que foi o Plano Colômbia e na Iniciativa Mérida (para o México) mas há poucos indícios de que norte-americanos se dediquem a ações de mesma dimensão.

Os líderes da América Central argumentam que esses planos – essencialmente polêmicos programas de combate ao narcotráfico de bilhões de dólares financiados pelos Estados Unidos – foram exitosos nas regiões ondem foram implementados, mas empurraram o tráfico internacional para a América Central. Tal sucesso, porém, é tema de grande controvérsia, pois seus resultados positivos são parciais, frágeis e acompanhados de um inaceitavelmente alto custo humano, com dezenas de milhares de mortes associadas, cuja principal lição deveria ser a de não se tornar modelo para coisa alguma.

O governo Obama, na verdade, possui desde 2009 uma iniciativa especifica para a América Central com objetivo semelhante ao Colômbia e Mérida (chamado CARSI, na sigla em inglês), mas os impactos foram mínimos, pois sua alocação de recursos para os centro-americanos até agora foi de 642 milhões de dólares – um valor irrisório quando se pensa nos 90 bilhões de dólares que os Estados Unidos investiram em segurança fronteiriça repressiva nos últimos dez anos.

“Pobreza não garante status de refugiado”

Atualmente, as crianças migrantes centro-americanas que chegam aos muros do “mundo livre” são detidas na patrulha de fronteira dos Estados Unidos e em até 72 horas são deslocadas para albergues onde recebem cuidados médicos e psicológicos e assessoria jurídica. Devem então esperar que seu caso seja julgado por um tribunal, o que pode levar meses.

Essa situação reacendeu o debate sobre as políticas migratórias dos Estados Unidos, onde 11 milhões de migrantes indocumentados são altamente vulneráveis ao abuso dos seus direitos básicos que são garantidos pelas leis do país e pela legislação internacional. Uma significativa reforma migratória nos Estados Unidos é parte da solução, de forma a respeitar famílias, proteger direitos laborais dos migrantes, e garantir o acesso ao processo legal.

Como lembra a internacionalista Juliana Vitorino, nesse cenário, “o governo dos EUA não é isento de culpa, já que foi, ele mesmo, promotor de desestabilizações políticas, ingerências, financiador de guerras civis na América Central, além de ter transplantado e piorado o problema da violência do pós-guerra com a deportação de membros de gangues para El Salvador, Guatemala e Honduras, países onde nasceram esses novos migrantes indesejáveis”.

Entre as razões dessa cumplicidade dos Estados Unidos às condições que forçam a migração centro-americana estão o apoio histórico às ditaduras militares e regimes de violência na região, a promoção de acordos de livre comércio e políticas econômicas que arrasam a agricultura familiar e degradam os serviços públicos, e a adoção de políticas migratórias cada vez mais duras, que separam famílias com acirrada deportação.

Mas enquanto os presidentes centro-americanos buscam receber mais ajuda financeira dos Estados Unidos para manejar a crise, o governo norte-americano demonstra que sua resposta à questão descansa em outras prioridades. A melhor solução para o governo Obama é retirar o problema da sua porta o mais breve possível. E assim a primeira medida do presidente estadunidense diante da crise foi solicitar recursos especiais ao Congresso de 3.700 bilhões de dólares para mitigar a crise, aumentando o número de agentes de fronteira e de juízes migratórios. Obama deixou claro que sua intenção é repatriar as crianças que chegam aos Estados Unidos porque, em suas palavras, “o status de refugiado não é outorgado a alguém apenas porque sua família vive em uma região ruim ou em pobreza”.

A estimativa é de que até o final de 2014 o número de crianças centro-americanas que chegarão à fronteira dos Estados Unidos alcance as 90 mil.

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Aleksander Aguilar é jornalista, doutorando em Ciência Política e editor do projeto-blog O ISTMO - rede de analistas de temas centro-americanos, especial para o Nota de Rodapé

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Noves fora


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

E a matemática? Um dos grandes tormentos da minha vida escolar, um mistério incompreensível, inacessível, inútil, amaldiçoado e odiado até não poder mais. Responsável por broncas monumentais e um sentimento de fracasso que me dava vontade de sumir e reaparecer quando nunca mais na vida precisasse engolir goela abaixo as fórmulas, equações e cálculos – ficavam sempre entalados. Quando nunca mais tivesse que fazer uma maldita prova e tirar zero ou algum mísero valor próximo dele.

Como eu sumir era um projeto complexo demais, fiz com que ela sumisse, largando o finado segundo grau incompleto. Fora da escola e tendo que lidar com a vida prática, comecei a perceber que aquela porcaria fazia algum sentido e, mais inesperado ainda, que eu era muito boa de contas, tanto de cabeça quanto no papel. Realizar cálculos que meus colegas de trabalho nem tentavam passou a ser muito divertido e desafiador. Sim, eu mesma, para meu próprio espanto.

Aos poucos, foi me entrando uma pena por ter tido na escola uma abordagem tão burra, não só à matemática como às ciências exatas em geral, que me impediu de perceber, lá atrás, a beleza, a abstração e a poesia contidas no raciocínio lógico e as correlações profundas entre aquelas fórmulas torturantes e a vida cotidiana, em todas as áreas. Noves fora, ficou o vazio do ensino encarado e exercido sem qualquer compromisso com a sensibilidade. E não por culpa dos professores e professoras, mas da visão que predominava sobre as motivações e objetivos do ensino formal. Que, diga-se de passagem, se perpetua até hoje, com raras exceções.

Daí, me veio o Jorge Mautner, num show na semana passada, com um papo sobre haver evidências científicas de que os neurônios são pura emoção, e a matemática está cheia dela. Para completar, ontem, ouvi de uma amiga, já entrada na sétima década de uma vida toda dedicada ao humanismo e à arte: se eu fosse mais jovem, estudaria matemática. Bateu fundo.

Não que eu esteja pensando em escrever um poema em prosa sobre a equação de segundo grau ou o teorema de Pitágoras – meu fim de linha – mas que é fascinante ver a precisão e a lógica por trás de frases, melodias e versos, tanto quanto encontrar a poesia nos arcos das colunas dos edifícios da Praça dos Três Poderes, e no próprio traçado da praça, isso é mesmo. Fascinante e emocionante.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

As patinadoras


por Ricardo Sangiovanni*

Já ia dando a meia-noite, e a moça do caixa do supermercado não conseguia de jeito nenhum fazer passarem pelo leitor de códigos de barras os dois últimos produtos de minha cesta de compras. "Agora ela vai chamar a patinadora para trocá-los", torci infantilmente.

Torci inutilmente: pois há anos já que não se ouvem mais nos supermercados daqui o tilintar das rodinhas presas às pernas compridas daquelas mocinhas; nem se lhes vê mais o movimento gracioso dos braços e mãos ao deslizar, cujo charme guardo em minha recordação de menino.

Lamento, mas, na falta das patinadoras, perde o leitor dominical. Duplamente. Primeiro, porque faltará, ao cronista mundano que porventura eleja por tema "o supermercado", matéria poética para preencher o espaço da crônica.

Segundo porque, na falta do quelque chose das meninas, o mesmo cronista terá de preencher o mesmo espaço com algum outro e mais aborrecido assunto.

Pois bem: sem as patinadoras, perde o mundo em geral, em beleza; e os supermercados em particular, em presteza. (No caso, em vez da patinadora, a moça do caixa gritou, com cansaço ou ódio talvez na voz, um barrigudo "Luís", que levou uma eternidade para retornar com os produtos trocados).

E sem beleza nem presteza, o cidadão comum se irrita, e atenta mais facilmente para o fato de que não está ali plantado naquele diabo de supermercado por gosto, senão por melancólica necessidade. Emerge-lhe cristalina a convicção de que não há lugar mais insalubre para se estar à quase-meia-noite do que um supermercado, com seus víveres de duvidosa qualidade, suas filas abomináveis.

E por falar em fila, o cidadão comum, quando ocorre de ele ser também o cronista, aproveita para denunciar que grandes supermercados desta cidade estão ignominiosamente acabando com suas demoradíssimas filas únicas para compras de poucos volumes - atendidas por dois ou três parcos caixas -, substituindo-as por duas ou três demoradíssimas filas menores - em frente aos mesmos dois ou três malditos parcos caixas!

E assim termina a crônica, que era para ser leve, mas, por culpa dos supermercados, virou essa maçada. Já que nos tiraram a beleza das patinadoras, ao menos, pela presteza, botem mais caixas, seus sovinas.

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Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador. Arte de Cínthya Verri

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Discoteca de músico: Flora Poppovic


por Marcos Grinspum Ferraz    Ilustração de Victor Zalma*

A convidada deste mês do Discoteca de Músico, Flora Poppovic, é a voz feminina do Pitanga em Pé de Amora, grupo paulistano que reúne cinco jovens músicos muito talentosos e que deve lançar este ano seu segundo disco. Como a banda não tem bateria, é a Flora também quem dá o pulso em boa parte das canções, tocando os instrumentos de percussão que aprendeu a “batucar” desde cedo.

crédito: Camila Passos
Foi justamente essa faceta percussionista da Flora que conheci primeiro, antes de saber que ela tinha também uma bela voz. Pois desde a adolescência até poucos anos atrás, por cerca de uma década, ela foi integrante do Batuntã, outro grupo destacado da cena paulistana e que é bastante focado nos instrumentos de percussão. Hoje ela é também professora de percussão no Instituto Brincante e no Brincantinho (braço infantil do espaço criado por Antonio Nóbrega), atividade que concilia com os ensaios e shows do Pitanga.

Pois bem. Depois de Tim Bernardes, Rashid, Bruna Caram e Gabriel Basile, a Flora é a quinta entrevistada da série “Discoteca de Músico”, que mensalmente traz um artista respondendo às mesmas cinco questões, sobre discos e videoclipes que marcaram seus caminhos na música e na vida. Discos e vídeos antigos ou atuais, já que parto aqui da constatação de que música boa não para nunca de ser produzida.

A ideia da série é ter, no fim do processo, uma espécie de discoteca/videoteca virtual feita pelos músicos – de variadas idades e adeptos de diferentes estilos –, voltada para o público que quer conhecer mais os artistas ou mesmo que busca sugestões do que ver e ouvir.

Um disco brasileiro que marcou sua formação musical

“Antônio Brasileiro”, do Tom Jobim. Bom, minha mãe é daquelas que quando gosta de um disco dá play de novo assim que ele acaba. E esse foi um dos que a gente escutou milhares de vezes no repeat! Eu decorei todas as músicas e queria muito ser a Maria Luiza, filha do Tom que canta com ele em duas faixas. Mais tarde, quando comecei a tocar percussão e conhecer um pouco sobre o universo da cultura popular brasileira, me encantei mais ainda com esse disco que trazia samba, bossa nova, jazz, baião, maracatu, peças instrumentais maravilhosas e até poema musicado do Manuel Bandeira. Hoje eu ainda ouço muito ele, e me sinto numa viagem passando por paisagens diferentes... Esse disco me traz paz.

Um disco gringo que marcou sua formação musical

“Kind of Blue”, do Miles Davis. Eu demorei muito para ouvir discos gringos. Fui conhecer melhor só aos 18 anos, quando fui apresentada ao “Kind of Blue”. E mudou minha vida! Eu estava numa fase de muita música instrumental, ouvindo choro pra caramba, e esse disco caiu como uma bomba! Era sublime! Era calmo e revolto, melancólico e me deixava feliz... Anos depois, quando entrei na Groove Escola de Música para estudar, esse disco era muito usado nas aulas, seja para cantar a linha de baixo, fazer exercícios com baqueta, e a impossível tarefa de cantar os solos em “All Blues”. Me apaixonei ainda mais! Era como se eu estivesse conhecendo de novo o cd, e até hoje ainda sinto que tem muita coisa "escondida" nele pra descobrir! Esse disco é música pura!

Um disco lançado nos últimos anos que te marcou profundamente

“Vem Ver”, Vanessa Moreno e Fi Maróstica, lançado em 2013. Em primeiro lugar, esse disco me marcou por ser extremamente corajoso: é o primeiro disco solo da carreira de dois jovens muito talentosos e é um duo de baixo e voz. Baixo e voz? Sim. E é impressionante como os dois se viram muito bem nessa corda bamba. A Vanessa com suas lindas interpretações nos leva a lugares de extrema ternura e a outros de malandragem pura. Faz coro com muitas vozes... Enfim, faz o que ela quiser! É uma danada! E o Fi é um baixista de fino trato, toca todos os baixos possíveis, batuca pra caramba e ainda enfeita com vozes de fundo em algumas faixas. O CD conta também com percussão, percussão corporal e vocal, e participações de Chico Pinheiro, Rafael Altério, Sergio Santos entre outros. Os arranjos são bonitos, criativos e a maioria das músicas desconhecidas. É um disco inspirador!

Um videoclipe que marcou sua formação

Stomp Out Loud- Kitchen, Stomp. O Stomp sempre foi uma referência pra mim!! A música está completamente integrada ao movimento, e sempre em instrumentos que não são instrumentos. Ele une música, pesquisa de timbres e humor, ou seja: diversão garantida. Por muito tempo o Stomp foi norteador de pesquisa para o Batuntã, grupo que eu fiz parte dos 14 aos 24 anos. Esse DVD inteiro me fascina, mas o vídeo que eu mais gosto é esse da cozinha, filmado todo num plano só, sem cortes, onde as coisas e a música vão acontecendo. Legumes cortados, panelas sujas, chefe mal-humorado, tudo vira som!!!



Um videoclipe lançado nos últimos anos que te marcou profundamente

The Writting's On the Wall, Ok Go. Esse clipe é demais! Muito criativo, muito bem feito. Ele é todo filmado sem cortes, e numa sala gigante cheia de coisas que te enganam e vão mudando conforme a câmera muda. É um jogo de perspectiva. A gente é surpreendido o tempo todo!




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Marcos Grinspum Ferraz, jornalista e saxofonista da banda Trupe Chá de Boldo mantém a coluna mensal Verbo Sonoro, sobre cultura, música e afins. llustração de Victor Zalma, especial para a série

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Não me nego e faço gosto

por Júnia Puglia*

Quando a palavra radialista ainda nem existia, meu pai manteve um programa de rádio evangélico diário por mais de dez anos, na emissora líder da cidade, que, dizia-se, tinha um enorme alcance em ondas curtas. Acho que era mais que um ufanismo interiorano, porque ele recebia cartas, muitas cartas, dos lugares mais remotos do Brasil.

Algumas vezes, ele nos levava ao estúdio. Como o programa entrava no ar, ao vivo, às sete e meia da manhã, era preciso se levantar cedo para acompanhá-lo. O estúdio comunicava-se com um pequeno auditório, onde às vezes acontecia o programa, quando havia números especiais de música ao vivo ou alguma celebração aberta para o público. Numa placa de bronze ostentada à entrada, lia-se: “aqui se apresentou, na data tal, o tenor italiano Tito Schipa, glória da cena lírica mundial”. Eu achava lindo e muito chique.

Em todo o interior paulista, o horário das cinco às sete da manhã era ocupado por programas de música caipira. Era a hora de os trabalhadores da roça pegarem no batente. A praça próxima à minha casa ficava cheia de bóias-frias, homens e mulheres, que eram recolhidos por caminhões e levados, em pé nas carrocerias abertas, para os canaviais e laranjais. Os da cana iam vestidos dos pés à cabeça, com panos amarrados por todo lado, como proteção contra as longas folhas em formato de facas, que lhes rasgavam as carnes. Tudo muito natural e pré-determinado desde o início dos tempos.

Cada um levava consigo seu energético, o radinho de pilha, que ajudava a empurrar o facão em jornadas intermináveis medidas pela produção. Enquanto esperavam o transporte, os rádios formavam uma cacofonia de duplas caipiras tocando suas modas na longa sequência matinal do programa do Nhô Zélio. Tonico e Tinoco eram os maiorais, mas havia também Tião Carreiro e Pardinho, Alvarenga e Ranchinho, Jararaca e Ratinho e muitos outros. Eu ficava sentada no estúdio, ou quase sempre na cozinha de casa, esperando meu pai entrar no ar, ouvindo aquela música que estava impregnada nos nossos genes, apesar dos narizes torcidos do pessoal que se considerava “da cidade” e lutava vigorosamente para esquecer sua origem rural. Chique mesmo era ser urbano.

Quem chegou agora e adora um sertanejo universitário não tem ideia do que estou falando. Depois de alguns anos de um esquecimento que era visto como um alívio, a música caipira ressuscitou na voz de novas duplas. Já não falava da miséria, do trabalho no campo, da Rosinha, da filharada, choupana, vaquinhas, passarinhos e cavalos xucros. Começou a era do caipira urbano, da música de bordel de beira de estrada, levada na boleia dos caminhões que fizeram o “Brasil grande” nos anos setenta e oitenta, até se fixar definitivamente nas cidades e chegar às metrópoles e ao mundo, aos shows gigantescos e aos negócios bilionários. Atravessou um longo período de romantismo tipo tritura coração e agora está na fase da animação da balada, onde a letra é o que menos importa. Eu mesma já identifiquei algumas das canções atuais tocando em lojas e trens de metrô em lugares insólitos pelas Europas. E tive uma sensação estranhíssima, de total desencontro entre a música e o lugar.

O sertanejo de antes, que evidentemente não morreu, é a música de raiz que mais fundo me bate. Como diz a Inezita Barroso, “sou sertaneja, não me nego e faço gosto, tá escrito no meu rosto, só não enxerga quem não quer”. Mentira. Também sou urbana, mas adoro as modas de viola e a poesia sertaneja feita de terra e cheiro de mato.

Esta avalanche de hoje, conheço muito pouco, porque não me diz nada, mas tem o mérito inegável de ter capturado o grande mercado musical para o produto nacional, espantando o pop estrangeiro de péssima qualidade. Não é pouca coisa, e tem o meu respeito.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo.
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