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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Não me nego e faço gosto

por Júnia Puglia*

Quando a palavra radialista ainda nem existia, meu pai manteve um programa de rádio evangélico diário por mais de dez anos, na emissora líder da cidade, que, dizia-se, tinha um enorme alcance em ondas curtas. Acho que era mais que um ufanismo interiorano, porque ele recebia cartas, muitas cartas, dos lugares mais remotos do Brasil.

Algumas vezes, ele nos levava ao estúdio. Como o programa entrava no ar, ao vivo, às sete e meia da manhã, era preciso se levantar cedo para acompanhá-lo. O estúdio comunicava-se com um pequeno auditório, onde às vezes acontecia o programa, quando havia números especiais de música ao vivo ou alguma celebração aberta para o público. Numa placa de bronze ostentada à entrada, lia-se: “aqui se apresentou, na data tal, o tenor italiano Tito Schipa, glória da cena lírica mundial”. Eu achava lindo e muito chique.

Em todo o interior paulista, o horário das cinco às sete da manhã era ocupado por programas de música caipira. Era a hora de os trabalhadores da roça pegarem no batente. A praça próxima à minha casa ficava cheia de bóias-frias, homens e mulheres, que eram recolhidos por caminhões e levados, em pé nas carrocerias abertas, para os canaviais e laranjais. Os da cana iam vestidos dos pés à cabeça, com panos amarrados por todo lado, como proteção contra as longas folhas em formato de facas, que lhes rasgavam as carnes. Tudo muito natural e pré-determinado desde o início dos tempos.

Cada um levava consigo seu energético, o radinho de pilha, que ajudava a empurrar o facão em jornadas intermináveis medidas pela produção. Enquanto esperavam o transporte, os rádios formavam uma cacofonia de duplas caipiras tocando suas modas na longa sequência matinal do programa do Nhô Zélio. Tonico e Tinoco eram os maiorais, mas havia também Tião Carreiro e Pardinho, Alvarenga e Ranchinho, Jararaca e Ratinho e muitos outros. Eu ficava sentada no estúdio, ou quase sempre na cozinha de casa, esperando meu pai entrar no ar, ouvindo aquela música que estava impregnada nos nossos genes, apesar dos narizes torcidos do pessoal que se considerava “da cidade” e lutava vigorosamente para esquecer sua origem rural. Chique mesmo era ser urbano.

Quem chegou agora e adora um sertanejo universitário não tem ideia do que estou falando. Depois de alguns anos de um esquecimento que era visto como um alívio, a música caipira ressuscitou na voz de novas duplas. Já não falava da miséria, do trabalho no campo, da Rosinha, da filharada, choupana, vaquinhas, passarinhos e cavalos xucros. Começou a era do caipira urbano, da música de bordel de beira de estrada, levada na boleia dos caminhões que fizeram o “Brasil grande” nos anos setenta e oitenta, até se fixar definitivamente nas cidades e chegar às metrópoles e ao mundo, aos shows gigantescos e aos negócios bilionários. Atravessou um longo período de romantismo tipo tritura coração e agora está na fase da animação da balada, onde a letra é o que menos importa. Eu mesma já identifiquei algumas das canções atuais tocando em lojas e trens de metrô em lugares insólitos pelas Europas. E tive uma sensação estranhíssima, de total desencontro entre a música e o lugar.

O sertanejo de antes, que evidentemente não morreu, é a música de raiz que mais fundo me bate. Como diz a Inezita Barroso, “sou sertaneja, não me nego e faço gosto, tá escrito no meu rosto, só não enxerga quem não quer”. Mentira. Também sou urbana, mas adoro as modas de viola e a poesia sertaneja feita de terra e cheiro de mato.

Esta avalanche de hoje, conheço muito pouco, porque não me diz nada, mas tem o mérito inegável de ter capturado o grande mercado musical para o produto nacional, espantando o pop estrangeiro de péssima qualidade. Não é pouca coisa, e tem o meu respeito.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Você conseguiu resumir, numa crônica cheia de graça, a história do que há de mais belo na música caipira brasileira, tão condenada pelos "chics urbanos" e tão verdadeira em sua expressão de brasilidade.Curioso é entender como você, tão pequena na época dos caminhões dos boias frias e seus radinhos de pilha,conseguiu reter na lembrança o carinho que o povo batalhador merece. Parabéns.

Anônimo disse...

Esqueci de assinar meu comentário. Não faz mal.Pelos termos vc vai reconhecer e, agora, assino em baixo. Isto porque quero fazer um elogio especial à ilustração do Fernando. Captou perfeitamente a idéia e soube colocá-la no papel. Parabéns, Fernando.
Abraços da Mummy Dircim

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