.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Nesta semana que passou

por Ricardo Sangiovanni*

Nesta semana que passou, as crianças evangélicas não quiseram fazer o dever de casa sobre cultura africana.

Jair Bolsonaro deu um murro na barriga de Randolfe Rodrigues.

Pastor Lucinho cheirou a bíblia, para mostrar à juventude que a bíblia dá mais prazer do que as drogas.

Marco Feliciano chamou a polícia para prender as meninas se beijando no meio do culto. Disse que oraria pela salvação delas.

O dono da pasta Barilla falou que não quer saber de vender macarrão para viado.

A fixação anal – sem meias palavras: a mania de cu – da Bahia contemporânea virou matéria de um jornal.

E os sádicos de um outro fizeram a dondoca rica trocar a limusine pelo ônibus, e a empregada dela andar por um dia de carro, só para ver como é que é.

E Dilma – essa foi a melhor – Dilma encontrou Dilma Bolada.

Nesta semana que passou, estive preocupado em arranjar uma casa para morar; descolei um trabalho de jurado de concurso literário infanto-juvenil; e o resto do tempo passei desperdiçando minha saúde com um par de serviços que em nada alterarão os desarranjos desse mundo, em troca de trinta dinheiros, nada mais.

Então ocorre que, misturando isso aí tudo, minha cuca ferveu antes que eu pudesse reunir coisa sequer que prestasse em grau de concorrer com as anedotas desse museu de grandes novidades.

Nesta semana que passou, vocês não me levem a mal, meus amigos, mas eu passei.

* * * * *

*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador. 

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Finalmente, Itália!


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Quando comento ser esta a minha primeira visita à Itália, minha amiga e hospedeira em Milão pergunta: você vai ao seu lugar de origem? Digo que não, e ela fica visivelmente decepcionada. Como assim? Qual o nome do lugar? Onde fica? Consultando minhas anotações, encontro o nome, que me foi passado por meu irmão há poucos dias. Fica bem longe daqui, muito mais ao sul. E o meu desapego aos detalhes da história familiar pode ser chocante mesmo.

Uma grande família com nome tipicamente italiano, passional e dramática como deve ser. Desembarcados em Santos no final do século 19, fixaram-se no interior de São Paulo urbano e, misteriosamente, se tornaram protestantes. A memória ancestral, incluindo referências básicas, perdeu-se rapidamente entre imigrantes rudes, que precisavam garantir a sobrevivência. Os relatos orais, tão importantes para a manutenção da memória familiar, foram poucos e inespecíficos, até onde consigo me lembrar.

Mas lembro dos sábados na casa de Franca, cheia de gente que falava alto, brigava e chorava à toa, e onde as mulheres passavam o dia todo na cozinha, preparando montes de comida, que era consumida imediatamente, à medida que as travessas iam sendo colocadas sobre a grande mesa de madeira. Comilanças intermináveis, com cheiros e sabores para mim sempre deliciosos.

A escassez de informações tem a vantagem de abrir espaço para a fantasia. Não sei dizer como começou, mas a partir de um certo momento, passei a imaginar alguém batendo à porta, ou chamando por telefone, para comunicar que eu era herdeira de uma fortuna em dinheiro e bens, e que precisava viajar à Itália para tomar posse do que me havia sido legado por algum parente que tivesse conseguido escapar da pobreza. Para ser uma fantasia completa, eu seria a única herdeira. Ou que algum mafioso tivesse se compadecido de ter eliminado a família toda que sobrou por lá e decidira procurar no Brasil alguma descendente que gostasse de viajar e escrever, para lhe deixar uma boa parte da grana dos cassinos e bingos, ou talvez alguma funerária de fachada. Até hoje, nada. Mas, se non è vero, seria ben trovato.

Desde que cheguei aqui, não me sai da cabeça uma canção gravada por Gigliola Cinquetti, que foi um hit quando eu tinha uns doze anos, “Non ho l’età”, “não tenho idade para te amar, para sair sozinha com você...”, do filme “Dio, comme ti amo!”, esta também uma canção que fez um enorme sucesso à época em que a música italiana tocava muito no rádio. O filme contava a eterna história da mocinha pobre e ingênua, apaixonada pelo filho playboy do patrão milionário. Açucarou-me alguma tarde de domingo encantada. Mas, pelo que vejo in loco, não faltam galãs de cinema entre os taxistas, garçons e carabinieri.

Decidi ver apenas pequenas amostras desta vez. Cinco dias entre Milão e Verona, sem coragem de encarar Veneza sozinha. Na primeira, fiquei tão impactada com passeios a pé pelo miolo da cidade e com as visitas a uma pinacoteca, um museu e duas igrejas, que gastei nisto todo o tempo que tinha ali. Perguntei-me muitas vezes o que teria sido da arte ocidental sem o catolicismo, e vice-versa.

Em Verona, bela cidade totalmente entregue ao magnetismo do mito de Romeu e Julieta, a lua cheia sobre a arena romana só confirma que o amor é lindo mesmo, apesar das hordas de chineses, russos e brasileiros que ocupam todo o espaço.

A visita às raízes propriamente ditas não foi dessa vez, mas promete. Exige preparo emocional, disposição e dedicação. Ou nada disso. Desembarcar lá e pronto. Veremos.

* * * * *

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Falta tudo, inclusive médicos



O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, falou ao NR sobre alguns aspectos do Mais Médicos, programa federal que pretende levar profissionais da medicina aos rincões do país

por Moriti Neto*

“Onde há profissional médico, ele se torna um catalisador de desenvolvimento para o município, não só em saúde”, diz o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, em entrevista concedida por email a este Nota de Rodapé.

Desde 8 de julho, Padilha roda o País para explicar e defender o programa emergencial Mais Médicos, que pretende levar profissionais de saúde para regiões onde não existem médicos na atenção básica. Mais de dois meses depois do lançamento da iniciativa, sob uma chuva de críticas das entidades médicas, o virtual candidato ao governo do Estado de São Paulo pelo PT em 2014, segue firme no debate.

Neste momento, a questão da segurança jurídica é mais visível do que os embates ideológicos sobre os médicos estrangeiros, especialmente com o acordo para a vinda de 4 mil cubanos até o final deste ano. Durante a semana passada, o Mais Médicos recebeu parecer favorável da Advocacia Geral da União (AGU) para que os Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) emitam o registro provisório dos médicos estrangeiros – somente com esse registro, eles poderão atuar no programa.

A questão é que muitos CRMs se recusam a emitir os registros, sob diversas alegações. Uma delas é de que haveria “exercício ilegal da medicina” quando o médico intercambista atua sem a revalidação do diploma adquirido fora do País.

O Conselho Federal de Medicina (CFM), após alguns embates judiciais, orientou que todas as autorizações de trabalho fossem concedidas pelos CRMs. “Nós temos segurança jurídica. O Governo Federal obteve decisões favoráveis em 17 das 29 ações de CRMs de 26 unidades federativas e em dois mandados de segurança no Supremo Tribunal Federal. Até agora, os CRMs de Roraima e do Maranhão foram os únicos que não entraram na Justiça questionando o programa”, diz o ministro.

Num País de grandes dimensões territoriais e populacionais, com apenas 1,8 médico por mil habitantes, índice bastante inferior, por exemplo, aos vizinhos Argentina (3,2 por mil) e Uruguai (3,7 por mil), o ministro ainda acredita no bom senso dos CRMs. “Estou certo que os CRMs terão bom senso com a questão, pois existem milhares de brasileiros dependendo apenas de detalhes para terem atendimento médico”, ressalta.

Foi a ausência de médicos na atenção básica que estimulou o Ministério da Saúde (MS), primeiro, a abrir editais para profissionais brasileiros no programa. Somente no caso de não preenchimento das vagas, são chamados os estrangeiros.

No caso dos cubanos, eles vieram por intermédio de um “acordo de cooperação técnica” da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), ligada à Organização Mundial de Saúde (OMS). “Eles têm grande experiência com medicina familiar e ajudarão a mudar o paradigma do ponto de vista de atenção primária no Brasil e também a cumprir os horários, pois a população sabe que terá o médico todos os dias da semana no município, fazendo visitas, atendendo consultas na unidade de saúde”, garante. Atualmente, há mais de 700 municípios que não possuem nenhum médico. Casos simples, como doenças infectocontagiosas de fácil prevenção, são motivos frequentes de mortes. Essa situação se concentra em periferias de grandes cidades, municípios de interior e nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Nesses lugares, quem, na maioria das vezes, previne e auxilia os pacientes são enfermeiros e agentes comunitários de saúde. O MS aponta que a atenção básica pode resolver 80% dos problemas.

Sobre a “falta de sensibilidade” citada por Padilha em relação ao Mais Médicos, o ministro diz crer que são poucos os médicos brasileiros que agem dessa forma. “Eles [os médicos] têm o direito de não querer sair de onde estão, de querer atender onde têm raízes, mas, se faltam médicos no Brasil, é nosso dever tomar medidas para garantir atendimento à população desassistida. Vamos levar mais médicos, mais infraestrutura, mais vagas de graduação e especialização para localidades que mais precisam”, enfatiza.

Num “trabalho de formiguinha”, o ministro da Saúde prossegue os diálogos com deputados e senadores, mostrando o diagnóstico da falta de médicos, principalmente em municípios de extrema pobreza, para aprovar a lei que institui o programa.

Formado em medicina pela Unicamp, Alexandre Padilha fez residência médica pelo Núcleo de Medicina Avançada da Universidade de São Paulo (USP), em uma comunidade indígena do Povo Zoé, na cidade de Santarém, no Pará: “Salvei muitas vidas na residência. E não sabia falar o dialeto deles, não sei até hoje. Isso não foi obstáculo para atender pacientes. A falta de infraestrutura também não impediu isso”.

*Moriti Neto, jornalista, repórte e editor-assistente do NR

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Meu amigo moçambicano


por Carlos Conte     ilustração Marcelo Martins Ferreira*

Outro dia, enquanto lia o “Conto de Escola”, de Machado de Assis, e discorria sobre o dilema ético da história, um aluno me perguntou se alguma vez já colei ou recebi cola. Dizer o que para crianças de 12 anos? Ainda mais quando se é professor de uma disciplina chamada Orientação de Estudos, cujo objetivo deveria ser ensinar técnicas, ferramentas de estudo, não a cola. Sorri ao me lembrar do provérbio aprendido na adolescência: “Quem não cola não sai da escola”. Nada de “contaminar” os meninos!, pensei. Mas ao mesmo tempo, lembrei-me do Filipe, meu amigo moçambicano da época da faculdade, e resolvi contar-lhes sobre a minha última cola.

Filipe estava terminando o intercâmbio na Faculdade de Economia da USP. Nós nos conhecemos no curso de Estatística do IME, obrigatório para economistas e aspirantes a cientistas sociais, como eu. Sempre o via na fila da monitoria, antes do início das aulas do período noturno, e logo nos identificamos: ambos odiávamos as aulas de Estatística. Eu, na verdade, porque não entendia patavina, e minha primeira reação diante daquilo que não entendo é detestar. Já o Filipe se saía melhor com os números, mas pelo fato de estar cursando simultaneamente cinco disciplinas – as cinco disciplinas do seu último semestre de intercâmbio –, não tinha muito tempo para se dedicar a cada uma delas.

Graças ao Filipe, tirei cinco na primeira prova. Nossas sessões de estudo na cantina, à base de Coca-Cola e esfirra de calabresa, tinham funcionado. Filipe tirou sete. Mas poucos colegas tinham conseguido ficar acima da média, confirmando a má fama dos professores do IME de serem os maiores carrascos do campus. Todos estávamos no mesmo barco – cientistas sociais, economistas. Todos deveríamos passar pela dura provação que era convencer os professores de Estatística de que tínhamos aprendido minimante sua disciplina.

Filipe, então, deu uma sumida. Começou até a faltar nas aulas, o que não era comum. Não o via mais nos plantões para tirar dúvidas, nem na cantina para estudar. Um dia ele apareceu no samba da Biologia: estava uma pilha de nervos. Nas vésperas da segunda prova, ele acumulava muitas faltas e ainda nem tinha começado a estudar. Compreensível, porque cursava, além dessa, mais quatro disciplinas na Economia e por isso não lhe sobrava tempo. Mas o pior de tudo, confessou-me virando a cerveja, era que não poderia nem pensar em ir mal nesse segundo exame; seu pai o trucidaria! Isso porque não poderia fazer a terceira prova (uma última oportunidade para os que não atingiram a média), que seria aplicada em meados de dezembro, época em que Filipe já deveria estar em Maputo, onde seria padrinho do casamento da irmã. Seu pai já havia inclusive comprado a passagem.

Impossível, mesmo para o bom matemático que era o Filipe, pegar a matéria em poucos dias. Eu vinha me matando há semanas para aquela segunda prova. Pedi-lhe calma. Pensaríamos numa saída. Comprei meia dúzia de fichas de cerveja. Filipe já estava caindo na cachaça. Seria uma tragédia familiar caso tivesse que ficar em São Paulo para fazer a terceira prova! Para sempre seria lembrado como o padrinho relapso, o irmão desnaturado. A solução emergiu do estudante malandro que um dia já fui, mas que ainda vive meio escondido no meu âmago. Cola! Ora, Filipe, uma medida emergencial para uma situação desesperadora. Ninguém vai ficar sabendo, meu chapa. Um dia escreverei uma crônica sobre isso, mas prometo que mudo seu nome.

No dia da prova, fingindo estar resfriado, deixei um rolo de papel higiênico em cima da mesa. À minha direita, duas carteiras ao lado (porque o professor exigia que uma carteira ficasse vazia entre nós), estava Filipe, aparentemente concentrado. Meia hora depois, o sinal: deixei a caneta cair no chão. Filipe desatou a tossir e espirrar (que atuação!), a ponto de ficar vermelho. Educadamente, levantei-me e lhe passei o papel para assoar o nariz. As respostas estavam numa folha amassada dentro do rolo. Com essa cola, punha em risco minha nota, meus créditos, minha vida acadêmica.

Valeu a pena ver a felicidade de Filipe uma semana depois, quando chegou o resultado. Sete e meio! Desce meia dúzia de Brahma! Prometeu-me nunca mais se esquecer do meu ato de generosidade e que, se um dia for a Maputo, me receberia na sua casa e me levaria aos melhores lugares da cidade. Eu, seu amigo brasileiro. Filipe, meu amigo moçambicano. Disse aos meus alunos, para encerrar, que a cola é uma prática condenável, reprovável (e todo esse papo aranha que a gente ouve desde pequeno...), mas que em alguns casos, só em alguns casos!, ela se justifica.


* * * * *

*Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração de Marcelo Martins Ferreira, design e músico, especial para o texto

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Primavera


por Ricardo Sangiovanni*

 Faz tempo que não falo de amor nesta tribuna. E sendo os escritos de amor campeões de audiência deste blog – e de todos os mais que possam haver – , fica de saída comprovada a proposta anti-populista de minha atuação neste espaço.

Mas é que faz tempo mesmo que não falo de amor, nem aqui nem em conversas de mesa de bar ou de beira de cozinha por aí.

Isso – não fui sempre assim – é de uns anos para cá. Já enchi os ouvidos de muita gente que me quer bem com lamentos angustiados e odes românticas, imprecações veementes e declarações derramadas, e sobretudo com uma porção de teorias sobre ser o amor isso ou aquilo ou aquilo outro.

Aliás, espanando a memória, recordo que esse negócio de amor já amolou muito meu coração nessa vida.

Comecei cedo a me importar com isso, aos nem bem sete anos, com um amor platônico que me consumiu os quatro anos do primário na escola. Era uma coleguinha diante da qual me sentia completamente abestalhado. O máximo que consegui foi que um dia déssemos as mãos – não por investida minha, senão por um sorteio que nos colocou lado a lado em uma caminhada pelo Sete de Setembro, ou era o Dia da Árvore, já não lembro.

Fui salvo de tamanha consumição quando passamos para o ginásio, e a menina mudou de escola. Mas, logo no ano seguinte, arranjei outra musa, que por fim consegui, depois de três anos de tenaz e secreta admiração, namorar por alguns meses. Ela me disse que me amava, e logo depois me deu um mui amoroso fora, e então penei, Deus como sofri, sofri como não gostaria que um dia o filho que ainda não tive sofresse.

Depois experimentei um longo relacionamento com amor meio curto, e uma trinca ou quadra de longos amores com curtos relacionamentos, histórias nas quais ora novamente sofri, ora também fiz sofrer de maneiras que, igualmente, não gostaria que se repetissem. Em comum entre todos, noto agora o fato de terem sempre me consumido as vísceras, em certos casos mesmo tirado-me o ar (não sei como é isso para vocês, mas em mim o amor recusado, reprimido, provoca a sensação real, física mesmo, do sufocamento).

Tudo isso, porém, sem apreço nenhum pela loucura. Quero dizer: nunca achei que o amor devesse ser louco, desmedido, desvairado. Sempre enfrentei tudo fazendo o máximo para que cada confusão passasse logo. Logo cedo, naquelas primeiras experiências, aprendi a repugnar o amor demasiado romântico, e desde então sempre sonhei com uma companhia calma e boa, com quem pudesse estar no máximo de situações com o mínimo de incômodo, de alteração de meu estado natural possível.

Acontece que matutar muito, maturar cedo demais para o amor faz a gente demorar de aprender um negócio essencial para poder viver esse nobre sentimento em paz. É minha opinião, vocês talvez pensem diferente, mas a gente só se apronta para o amor depois que experimenta ser sozinho na vida, depois que se expõe à encruzilhada do Grande Sertão – que é onde aparecem os heróis e os demônios de cada um – , depois que se arrisca a ela e se retorna vivo dela. Porque afinal a pessoa não é o que pensa, não é o que busca, nem é o que quer; a pessoa é o que sobra.

E tendo de mim sobrado algo, bati pé firme de que esse negócio de amor era para ser fácil. Não quero dizer leviano, nem sempiternamente plácido, nem carente de beleza nem de paixão ou musicalidade. Queria que fosse simplesmente bonito e presente, que me fosse espelho ao passo em que me movesse para frente – que fosse, em suma, alegre, íntimo, sonhador e real, e que, no saldo, me trouxesse paz de espírito, porque afinal essa vida já tem coisas demais para consumir a carcaça da gente. Em troca, minha contrapartida seria ficar quieto, calado, deixar de ficar fazendo filosofê e tratar de viver o danado quando ele de novo me aparecesse, para ver se dele aprendia algo.

Deu resultado: não demorou muito e, precisamente hoje, abre-se já a terceira primavera desde que a mulher mais radiante e plena que já tive a sorte de conhecer surgiu em minha vida, com um sorriso branco e uns olhinhos de girassol que amoleceram – jamais amolaram – meu coração.

* * * * *

*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador. Ilustração de Aitana Carrasco

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Outro mundo


por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*

O trem cata-jeca suíço desliza entre cidadezinhas impecáveis, lagos, montanhas, túneis e vacas. A cada três ou cinco minutos, uma rápida parada, para deixar e pegar passageiros das comunidades rurais. Enquanto isso, minhas impressões sobre esse outro mundo vão se organizando. Passamos por muitos pequenos milharais espalhados, que eu não esperava encontrar aqui, tão longe da América Latina. Aliás, nem as plantações de girassóis, onde se pode comprar as majestosas florzonas colhendo-as pessoalmente e deixando o dinheiro num recipiente, pois não tem ninguém para atender.

Embora o lugar esteja completamente vazio, a mesa redonda que escolhemos num café não está disponível. Daqui a poucos minutos, os trabalhadores das obras próximas (há construções por todo lado) vão chegar para o trago da tarde, e aquele é o canto deles, nos avisa o proprietário, muito compenetrado. Somos trasladadas a outra mesa, com copos, bebidas e duas crianças pequenas.

O passeio nos arredores do grande lago cercado de mata nativa no auge do verde, tão apreciado nesta bela tarde de fim de verão, inclui a passagem por churrasqueiras públicas, onde se ouve música de tudo quanto é lugar, enquanto famílias assam linguiças e espetinhos de carne. A Europa multi-cultural é um fato, apesar dos muitos narizes torcidos. À beira da água, patos e cisnes vêm dar um dedo de prosa com os humanos e encantar as crianças. No meio do mato, um banheiro público numa cabana de madeira dá uma impressão de rusticidade que se desfaz rapidamente. Por dentro, é ultra-moderno, confortável e imaculado.

Subimos a um restaurante panorâmico onde a vista dos lagos e seus ancoradouros lotados, montanhas verdes e pequenos núcleos urbanos dá um susto bom, acompanhado da sensação de ordem estética, como numa pintura acadêmica. Afinal, estamos na Suíça. O grande salão envidraçado está lotado de gente e do ruído das conversas animadas em grandes grupos de velhos, famílias com crianças e amigos, celebrando a tarde ensolarada e o verão, que se despede.

Para esta brasileira convicta, isto aqui parece mesmo um outro mundo, com seu silêncio, sua rigidez e sua competência organizativa, um lugar onde sempre se espera que tudo funcione, com um propósito definido, regularidade e horário. Será que eles realmente acreditam que a vida pode ser assim controlada? Tenho a impressão de que um acontecimento espontâneo pode desconcertá-los de tal forma, que é melhor não. Mas tem seus lugares cheios e barulhentos, felizmente.

* * * * *

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Instagram


por Izaías Almada*

Como nossa saudável imprensa está sempre mais preocupada em desmoralizar o governo Dilma e o Partido dos Trabalhadores, ignorando criminosamente alguns feitos sociais e econômicos que engrandecem o país, é natural que – sem esse seu tema recorrente e predileto – se debruce sobre o que de mais efêmero e boçal se passa pelos neurônios de algumas celebridades. Coisas como o “tanquinho” do ator tal, o “corpaço” da modelo tal, o salário do CEO de alguma multinacional, quem é a nova namorada do Neymar e por aí afora...

A mais nova dessas idiotices ficou por conta dos jornais de terça feira dia 17 de setembro de 2013, sobre o enterro – após o velório de praxe – em que o playboy milionário (coisa mais antiga e ultrapassada) Chiquinho Scarpa anuncia o enterro de seu carro, um Bentley Continental, avaliado em um milhão de reais, nos jardins da sua mansão.

Os médicos brasileiros que boicotam o programa “Mais Médicos” do governo federal devem estar morrendo de inveja do Chiquinho e, com certeza, gostariam muito de tê-lo como paciente. Os torquemadas de plantão, que querem ver alguns dos réus da AP 470 queimando como bruxas medievais em praças públicas, babam – quem sabe – por não privarem da intimidade de tão augusta celebridade, que é capaz de queimar um milhão de reais.

Todos já ouvimos dizer que quem queima dinheiro é insano. Ouso acrescentar que insana é a sociedade que se alimenta de tanta idiotice. Por falar nisso, recomendo aos que ainda não viram o mais novo filme de Sofia Coppola (“Bling Ring”), que põe a nu o paraíso chamado Estados Unidos da América. Esse mesmo paraíso idolatrado por certa classe média brasileira, agora proprietária, como o ministro Barbosão, de imóveis em Miami, gente que acaba de criar um novo slogan do viralatismo: “me espiona que eu gosto”...

*escritor e dramaturgo, Izaías Almada mantém a coluna mensal Pensando Alto.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Boas lembranças de Roberto Manera

por Thiago Domenici*

Aprendi que é fundamental homenagear os nossos mestres, amigos e pessoas que queremos bem, que nos dão energia positiva sem pedir paga. A vida é um sopro, já dizia Oscar Niemeyer. Penso que achar formas e tempos de registrar pessoas memoráveis, sejam públicas ou não, é mais do que um dever; é uma forma de eternizar aquilo que tem significado para nós, que toca a gente e pode, por consequência, chegar a outras pessoas.

Roberto Manera, desconhecido para a maioria dos que vão ler esse texto, é uma dessas figuras que merecem minha lembrança com carinho. Havia tempos, precisamente desde 2008, que eu não sabia de seu paradeiro. Uma notícia aqui e ali dava conta de que teria se mudado para a região Sul, em Florianópolis. Tentei contato de algumas maneiras, mas sem sucesso. Eu e Natalia, minha esposa, e amigos, como Rodrigo Menitto, sempre falávamos dele com muito carinho, no sentido de preocupação pela sua saúde e pela vontade de estar perto dele. Não deu.

Acho que seu objetivo era mesmo se isolar, perder contato com mundo, com as pessoas. Quando um bando de gente saiu de Caros Amigos em 2008, incluindo eu, o Maneirita, como eu o chamava, nos deu muito apoio e ficou ao nosso lado. Mostrava pra gente, do seu jeito, que não estávamos fazendo nada de errado, muito ao contrário, seguíamos o curso natural dos acontecimentos.

Já naquele período, ele lutava meio marotamente, como quem não se importa, e acho que não se importava mesmo, contra as agruras de uma diabetes que o debilitou muito e que foi o motivo de seu falecimento. Mas não se rendia, pelo menos não publicamente. Desde as mais inusitadas, saborosas e engraçadas, era um grande contador de histórias. O papo com Manera nunca era banal. Sempre se aproveitava algo, sempre tinha alguma informação ou lição, de vida e de jornalismo.

"nosso ofício tem de ser sério, mas não pode deixar de ser prazeroso, e que o prazer pode vicejar além da redação, em torno de uma mesa de sinuca, de futebol de botão ou de bar. Qualquer lugar em que se possa pensar”.

Com Natalia, por exemplo, teve um episódio que a marcou muito. Era seu primeiro emprego em jornalismo, vindo de uma faculdade de Letras. Insegura, caindo num universo com muita gente experiente e sem nenhuma formação na área, mas com desejo de fazer parte e aprender, certa vez, num evento social ela sentiu segurança para contar a Manera uma ideia que não conseguira compartilhar com ninguém até então. “Ele passava uma segurança, por isso tomei coragem e falei”. A ideia era crua, sobre fascículos sobre mulheres, mas sem saber exatamente o foco a ser dado. No papo, Manera incentivava e questionava para que ela desenvolvesse a ideia, mas sempre de um jeito muito amável e cuidadoso. “Uma firmeza acolhedora. Aquele papo de igual pra igual que dá confiança para alguém que está no começo de carreira.”

Quando de sua apresentação em uma reunião de pauta, o Serjão, um dos criadores e o editor da revista, disse a todos que Manera era um dos “grandes jornalistas” do país. Os dois eram muito amigos. Foi Manera que apresentou Serjão a Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica. Foram parceiros de Globo Rural, da editora Abril, onde se conheceram na década de 1970, se não me engano, época em que a revista chegou a ser a mensal de maior circulação no país. Lá tinha gente como José Hamilton Ribeiro, José Trajano e a minha amiga Marina Amaral, hoje diretora da Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

Na edição especial que fizemos após a morte do Serjão, ainda em 2008, Manera escreveu que para além do gosto comum em cavalos, "não tanto pela corrida, mais pelo animal", aprendera com Serjão “que nosso ofício tem de ser sério, mas não pode deixar de ser prazeroso, e que o prazer pode vicejar além da redação, em torno de uma mesa de sinuca, de futebol de botão ou de bar. Qualquer lugar em que se possa pensar”.

Com a notícia de sua morte, na última sexta-feira, a qual soube somente ontem, fiquei muito triste. Outra perda irreparável, como a de Ruy Fernando Barboza, no mês passado. Os bons se vão, infelizmente. Escrevo esse texto meio torto para registrar minha admiração e meu muito obrigado ao amigo que eu gostaria de ter ficado em contato. Adjetivos que o enquadrem são vários, mas seu sorriso maroto, humor irônico, charme e generosidade, além de grande texto e inteligência, serão sempre marcantes para mim. Uma das grandes tristezas de Manera foi a perda de seu filho Júlio, de três anos, numa madrugada de inverno, em 1990. Desde então, “nunca mais fui o mesmo”, lembro de me contar certa vez na feijoada da Lana, local na Vila Madalena que frequentávamos quase diariamente.

Fizemos juntos uma viagem ao Rio de Janeiro, para entrevistar o cantor Ney Matogrosso. Ele arranjou hospedagem na casa de um amigo, na Barra da Tijuca. A entrevista foi muito bacana e a viagem divertida, apesar de estarmos nos recuperando da morte do Serjão. É provável que tenha sido um de seus últimos trabalhos jornalísticos. O jornalista José Antonio Severo escreveu sobre ele no Jornal Já (leia aqui) e pontuou muito bem um pouco de sua trajetória. Diz, inclusive, algo que não sabia: que Manera foi um grande fotógrafo. Mas, infelizmente, pouco se acha sobre ele na rede, nem mesmo uma boa fotografia sua. Uma pena. Uma injustiça.

E nenhum texto, por melhor intenção que tenha, conseguirá captar aquela figura que tomava cerveja comigo enquanto comia uma feijoada. Pesa pensar, como descreve Severo, que Manera morreu sozinho, longe da maioria dos amigos e dos filhos. Mas se foi sua escolha, prefiro acreditar nisso, só mostra que grandes decisões são tomadas por pessoas com muita coragem. Manera fará imensa falta por aqui.

                                        * * * * *

Thiago Domenici, jornalista, editor e coordenador do NR

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Cidadania de segunda mão


por Celso Vicenzi*

Incorporamos o fracasso. Séculos de maus-tratos à população dão-nos a sensação de que as conquistas no cotidiano de outras populações, sobretudo na Europa, mas também em outros continentes, estão fora do alcance dos brasileiros. Aceitamos uma cidadania capenga, desfigurada, de segunda mão.

Em Florianópolis, uma ilha com três pontes e uma quarta sendo anunciada, com crônicos problemas de mobilidade urbana, soa estranho cada vez que alguns especialistas – brasileiros ou estrangeiros – sugerem soluções combinadas de transporte rodoviário, marítimo e ferroviário – sobretudo este último. Não é diferente em outras médias ou grandes cidades, descontadas as características individuais. Cada vez que se propõe o uso de trens elétricos de superfície ou veículos em trilhos ou monotrilhos, há uma sensação de espanto no ar. “Isso é irreal”, ouve-se, com muita frequência, de uma população acostumada a tantas deficiências. “É muito caro”, logo antecipam autoridades ignorantes ou de má-fé e gestores que nunca souberam ou quiseram fazer direito as contas.

Quanto custa uma cidade e uma população paralisada? Trabalhadores que gastam horas engarrafados no trânsito? Pessoas que desistem, muitas vezes, de se locomover a uma determinada área da cidade porque sabem o quanto de sacrifício isso exige. Sem falar na poluição – atmosférica e sonora. E os acidentes? Os feridos? Os mortos? Quanto custa acostumar uma população a se deslocar em ônibus precários e superlotados, de forma desumana, como se isso não contribuísse, com o passar do tempo, para desumanizar todas as relações na sociedade?

O Brasil copia ou reinventa quase tudo dos países mais ricos – o way of life –, mas não é capaz de incorporar os modelos de mobilidade implantados e que interligam todos os modais de transportes, inclusive as ciclovias. Em vários países é possível alternar diferentes modelos: posso ir de bicicleta até uma estação de trem e continuar a viagem sobre trilhos. Posso intercalar ônibus, trem e metrô. Não é preciso – nem faz sentido – usar sempre o mesmo tipo de transporte do começo ao fim do deslocamento. As soluções precisam ser integradas.

Em vários países compram-se passagens para trens, metrôs e outros modais em praticamente todas as plataformas de embarque e desembarque. Muitas delas automáticas, operadas pelo próprio usuário. Em todas as plataformas – inclusive rodoviárias – não faltam informações sobre os destinos dos ônibus que trafegam por ali.

E tudo é pensado em termos de custo-benefício: quem compra bilhetes para um ou dois dias pagará mais caro do que quem adquire passes para uma semana, mês ou ano, por exemplo. Os custos são progressivos, em círculos, a partir da área central até os pontos mais distantes servidos pelo transporte urbano. No Brasil, todos esses critérios não têm a mesma clareza. Muito menos as facilidades para operar. Faltam transparência e informações para os usuários, que precisam ser tratados como cidadãos, e transportados com conforto, segurança e agilidade.

Para que tirar o carro da garagem – para quem o tem – no deslocamento diário pela cidade ou entre cidades, se é possível fazê-lo de modo muito mais tranquilo, rápido e econômico por transporte coletivo? Ao longo dos anos, o custo-benefício mostra-se amplamente compensador, tanto que é adotado por cidades de médio e grande porte. Os chamados VLT – Veículo Leve sobre Trilhos –, uma entre tantas possibilidades que demoramos tanto a adotar, são uma solução bastante difundida em muitos países que diminuíram substancialmente seus problemas de mobilidade urbana.

No Brasil, um país que está entre as dez maiores economias do planeta, o custo não pode ser a eterna desculpa. A menos que sejam os custos da ignorância, da corrupção e da má gestão.

                                           * * * * *

*Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Saudades Eterna

por Ricardo Sangiovanni*

Alithea, esposa de James Woodcock, morreu em 26 de agosto de 1850. Partiu jovem, com 28 anos apenas.

Dali a quinze anos, em 1865, morreria também a filha do casal, Elizabeth, também num agosto – dia 12 – e também jovem – com 24 anos.

Mais dez anos passariam até que morresse Benjamin, irmão de Elizabeth, filho de Alithea e James Woodcock, em 14 de abril de 1875. Jovem ele também: tinha 24 anos.

De tudo isso fiquei sabendo no dia em que visitei o cemitério abandonado de Sheffield, uma simpática e cinzenta cidade do norte da Inglaterra onde pude viver por alguns meses. Terra de que tenho saudades, muito embora não devesse – afinal em Sheffield sofri com o frio cortante e a renitente garoa, comi mal, bebi, fumei e trabalhei muito, e não vivi nenhum amor. Mas, enfim, saudade é essa coisa, a gente não explica.

Talvez por ter sido um período em que me sentisse criativo e imensamente poeta – aliás, foi lá que comecei com este bendito NR. A lápide da família Woodcock e as de outras eu fotografei para caso um dia houvesse precisão de pôr nome verossímil n’algum personagem literário que porventura viesse a criar.

Acontece que desde então já mais de dois anos se passaram, e nenhuma história de personagem nenhum me surgiu – nem sei se um dia surgirá – , de maneira que eis-me hoje aqui revelando-lhes os truques de minha vida literária sem jamais ter tido uma.

Mas também, olha, isso de vida literária virou uma franca bobagem, porque requer mais mesmo é que o denominado escritor acumule pilhas de filigraninhas inúteis sobre livros e literatos, e que viva destilando menções sobre eles, e barroquiando a palavra fácil, e dando entrevistas para explicar seus processos criativos e influências e afins; enfim: requer bem mais vestir-se de toda uma parafernália pop, bem menos tratar de viver e pesquisar e padecer e lapidar até chegar a algo que preste que mereça ganhar forma de livro.

De sorte que, ao tomar a família Woodcock por mero estoque onomástico, por pura ansiedade literária, eludi a pergunta fundamental, da qual talvez parisse alguma literatura: por que será que a mulher e os filhos de Woodcock morreram todos tão cedo? Terão sido vítimas do trabalho extenuante nas fábricas insalubres da região? Ou terão morrido cada um por um motivo: Alithea de complicações do parto de Benjamin; Elizabeth pela saúde frágil que passou a ter desde que precisou trabalhar para suprir a falta da mãe; Benjamin porque, na falta da irmã e da mãe, deprimiu-se e entregou-se ao álcool e ao frio? Ou, pior: terão sido progressivamente eliminados pelo próprio Woodcock? Ou, ainda pior, por sua segunda esposa, Hannah Rodwell, ou por ambos mancomunados, uma vez que esses dois só morreriam (como informa também a lápide) muitos anos depois, já próximos de completar 80 anos?

Cada uma dessas perguntas daria início a uma bela história inventada, de fato. Mas, ainda assim, talvez nenhuma delas fosse a pergunta correta. Talvez mãe e filhos tenham morrido vítimas de alguma maldição conhecida em toda a cidade na época, feito uma maldição que já se passou na cidade de Poções – Bahia, entre final dos anos 1960 e início dos 70. Foi uma doença congênita, cujo nome agora ignoro, que levou cedo três irmãs, aliás as moças mais bonitas da cidade: Vaneide, aos 23, Rosa Amélia, aos 22, e Vera Lícia aos 26 anos.

Assim contou-me meu pai, em uma visita que fizemos ao cemitério da cidade certa feita. Se fosse para eu ser escritor, talvez já tivesse transformado essa história em algum conto, ou com ela dado início a algum romance. Mas não, segue me interessando mais ir amealhando semelhanças, miudezas que vou guardando num baú infinito de lembranças soltas e trocos de pinga, coisas que talvez ainda volte a encontrar no futuro, talvez não.

Aliás, naquela visita, fixei-me, mais do que na história das moças, no epitáfio escrito nas lápides delas: Saudades Eterna. Reparando, vi que é o que está escrito não só nas lápides delas, mas em quase todas as lápides do cemitério: Saudades Eterna. Estranho: achava que o certo fossem saudades eternas. Ou saudade eterna. Enfim, não importa, de qualquer jeito é saudade, essa coisa que a gente não explica.

                                                           * * * * *
*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Agência Pública: um chamado a reportagem

por Thiago Domenici*

A Pública, Agência de Jornalismo Investigativo, arrisco dizer, é o mais interessante projeto de jornalismo em andamento no país. Tirando o fato de Marina Amaral e Natalia Viana serem competentes, talentosas e das melhores repórteres desse país, a Pública, da qual são sócias-diretoras, é uma raridade no cada vez mais escasso e nobre ofício da reportagem.

A agência, já premiada por algumas de suas investigações, se mantém basicamente de doações de organizações estrangeiras, como a Fundação Ford e a Omidyar Network. Ela não aceita grana de governos, por exemplo. Não é fácil, acreditem, manter uma engrenagem de redação sem fechar uma simples equação financeira. Há três anos na estrada, as reportagens investigativas tem nesse modelo de financiamento uma garantia de independência editorial. Basta ler o que produzem como a matéria que entrou no ar hoje, sobre espionagem da Vale contra movimentos sociais, para concluir o óbvio: poucos têm levado tão a sério a reportagem investigativa com fins de interesse público.

Dito isso, esclareço meu objetivo: fazer um chamado a reportagem, já que termina dia 20 de setembro a campanha de crowdfunding que objetiva arrecadar no site de financiamento coletivo Catarse 47 mil reais - faltam 7 dias e pouco mais de 17 mil reais para chegar ao total necessário. Com o dinheiro dessa "vaquinha virtual", a Pública vai doar e supervisionar seis bolsas de 10 mil reais para repórteres de todo o Brasil que inscreverem suas propostas no site da agência. E o interessante é que quem doa pode votar em quais reportagens devem ser realizadas.

Está tudo explicado, timtim por timtim, no site da agência (aqui). Eu já fiz minha doação, farei outra se necessário. Quem está insatisfeito com a imprensa tradicional, está aí uma boa oportunidade de ser parte de algo novo e contribuir com quanto puder – a partir de 10 reais – para um projeto que preza a independência e o bom jornalismo, aquele em que o leitor é a prioridade. 

Obrigado pela leitura,

Thiago Domenici, editor e coordenador do NR

Grandes encontros



por Júnia Puglia  ilustração Fernando Vianna*

A convivência nos espaços comuns e públicos implica um exercício constante de observação, respeito, tolerância e paciência. Dá trabalho, mas sem ela a vida fica muito sem graça. Se eu só convivo com gente conhecida, que vive uma vida parecida com a minha, ou com quem já estou de acordo, que pensa e age como eu, a conversa vai ficando aguada, a energia mingua. Afinidade a gente precisa ter, mas é com os amigos, os poucos escolhidos.

Talvez por isso me seja tão difícil seguir uma ideologia política, uma religião, ou frequentar grupos fechados de qualquer natureza, sejam de funcionários internacionais, gays, lésbicas, negros, arianos, feministas, evangélicos, católicos, veganos, petistas ou qualquer outro. Sempre me dão a sensação de que a mistureba lá fora é bem mais interessante e divertida. E apronta das suas. Todo mundo tem suas histórias de gente espaçosa ou inconveniente.

Viajando de São Paulo a Campinas de ônibus, meses atrás, eu e todos os outros poucos passageiros acompanhamos involuntariamente uma longa negociação sobre as obras de reforma de um escritório, cuja dona tratava ao celular, a viagem inteira, como se nada. Alguns anos antes, provando roupas numa loja, entreouvi uma mulher dizendo que poria o nome de Saddam Hussein no filho que esperava, por sua enorme admiração pelo dito cujo.

Esta me aconteceu em Cuernavaca, no México. Havíamos chegado, um grupo de mulheres de diferentes países, para uma reunião de trabalho, que começaria na manhã seguinte. Era domingo à noite, e todas nos encontramos no restaurante do hotel para jantar. Muitas já nos conhecíamos, umas doze pessoas, e acabamos sentando todas juntas. O papo rolava solto, até que começou uma conversa de criticar e ridicularizar os homens, algo que as pessoas em geral associam facilmente às feministas. Havia várias ali, mas posso assegurar, com conhecimento de causa, que falar mal dos homens não é uma prática frequente nem apreciada nesse meio. Isso é coisa de gente ressentida e mal resolvida, feminista ou não, e se aplica também a homens que se juntam para desqualificar as mulheres.

Fui ficando, na expectativa de que o assunto mudasse logo. Como isso não aconteceu, me mandei dali. O caminho até o meu quarto era ao ar livre, entre jardins bem cuidados. Logo notei outra pessoa andando na mesma direção e me dei conta de que era uma mulher do grupo, desconhecida para mim. Ela me alcançou e nos apresentamos. Constatei que se tratava de uma nova colega, mexicana, recém-chegada à minha organização. Comentei do meu incômodo com o assunto do grupo, e ela me disse que havia saído pelo mesmo motivo. Começamos a conversar uma conversa que dura até hoje, mais de dez anos depois, sobre tudo quanto há, salpicada de encontros em diferentes lugares, visitas mútuas, incrível cumplicidade e muitas garrafas de vinho tinto. Amigas de infância.

Então, enquanto andamos por aí, vivendo e convivendo no trabalho, na rua, no supermercado, aguentando malas sem alça, ouvindo comentários banais ou babacas e conversas às vezes divertidas, eventualmente atravessadas, podem acontecer grandes encontros, que tornam tudo mais fácil e gratificante. E fazem toda a diferença. Aposto que já aconteceu com você.

* * * * *

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

NR concorre ao prêmio TopBlog 2013

Querid@s leitor@s,

NR está concorrendo ao prêmio TopBlog 2013.

Quem puder votar e ajudar na divulgação ficarei imensamente agradecido! No ano passado, felizmente, com a ajuda de vocês nós ganhamos o prêmio na votação popular na categoria notícias e cotidiano. Isso, sem dúvida, fortaleceu a atuação e a relevância do NR na blogosfera.

Como mídia independente esse tipo de suporte e reconhecimento é fundamental pra seguirmos em frente e mostrarmos que é possível fazer jornalismo e arte de qualidade com competência e responsabilidade.

NR é mídia livre tocada com muita dedicação e compromisso pelo time de colunistas e colaboradores - é deles o maior mérito e de vocês, car@s leitor@s, vem o nosso maior incentivo.

O PRÊMIO

São duas fases: ontem começou a primeira etapa e os 100 blogs mais votados vão a segunda etapa. Nesse data, três serão finalistas e o resultado dos primeiro, segundo e terceiro sairá em janeiro de 2014. 

o link de votação: 
http://www.topblog.com.br/2012/index.php?pg=busca&c_b=3347

É possível votar com uma vez com email e outra com facebook. O espaço da votação fica no alto da página desse link acima. Depois de votar, é preciso confirmar o voto no link enviado para o seu email. É rápido e muito simples, mas qualquer dúvida estou à disposição. Podem me escrever em contatonotaderodape@gmail.com

O prêmio, vale lembrar, não tem recompensa financeira. No entanto, é considerado o maior prêmio para blogs do País. E, dessa vez, estamos defendendo o título que levamos no ano passado (veja aqui).

Valeu a todos vocês! Vamos em frente,

obrigado sempre!

Thiago Domenici, editor e coordenador do NR

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Exclusivo e histórico: “crise de consciência” da grande imprensa


por Thiago Domenici*

Num momento histórico das comunicações do Brasil, os principais grupos de mídia, aqueles controlados, principalmente, por sete famílias (Grupo dos Sete), publicaram um editorial conjunto, divulgado recentemente, inclusive em horário nobre de televisão, em que admitem a parcialidade das coberturas jornalísticas ao longo da história. “Enganamos nossos leitores, ouvintes e telespectadores durante décadas ao imprimir em nossas coberturas um tom de imparcialidade, quando, na verdade, sempre tivemos intenções que valorizassem somente nossos interesses privados. Admitimos: a imparcialidade não existe”.

Esses interesses, esclarecem, pautavam, sobretudo, as questões políticas, econômicas e sociais. Como forma de amenizar o que chamam de “notícias enviesadas em detrimento da informação de interesse público”, esses grupos de mídia irão lançar um Portal de Transparência, inspirado na Lei de Acesso à Informação, em vigor desde 2012. A ideia é corrigir – com a participação direta do público e dos que se julgarem prejudicados – as informações que estiverem “comprometidas do ponto de vista jornalístico” e que “estão distantes da  possível verdade factual dos acontecimentos”.

Uma Comissão Nacional da Verdade dos Crimes de Imprensa (CNVCI) também será formada, mas a atuação e duração seguia indefinida até o fechamento desta matéria. A CNVCI foi sugestão dos controladores do jornal diário carioca de maior circulação, que recentemente admitiram ter errado ao apoiar o golpe militar de 1964. Além dessas medidas, os donos dos jornais alegaram que o movimento inédito, de aparente arrependimento e acerto de contas com a sociedade, faz parte do que chamaram de “delação de amenização de consciência”, ou seja, algo de difícil compreensão, mas que, uma vez a cada mil anos, pode ocorrer na humanidade. “O capitalismo selvagem fez com que eu e meu jornal perdêssemos o prumo. Por isso, prejudicamos pessoas, instituições e governos, ao passo que isso precisa acabar”, disse o dono da revista semanal de maior circulação do país.

Em busca de uma credibilidade real, não falseada por propagandas que “vendem a ilusão do correto a se fazer”, o grupo propôs um novo Marco Regulatório das Comunicações. “Já passou da hora de assegurar a pluralidade de ideias e opiniões nos meios de comunicação, os métodos de financiamento equânimes, além de promover a participação popular na tomada de decisões acerca do sistema de comunicações brasileiro”, disse o apresentador do telejornal de maior audiência no país. O editorial conjunto, publicado em primeira mão no site www.sonhomeu.org, enumera várias razões para uma guinada nas comunicações, entre elas:

* ausência de pluralidade e diversidade na mídia atual o que esvazia a dimensão pública dos meios de comunicação;
* a Constituição Federal de 1988 carece da regulamentação da maioria dos artigos dedicados à comunicação (220, 221 e 223), deixando temas importantes, como a restrição aos monopólios e oligopólios e a regionalização da produção sem nenhuma referência legal.

O último item, inclusive, é o ponto principal do Projeto de Lei de Iniciativa Popular das Comunicações, lançado nacionalmente por um pool de entidades no dia 22 de agosto, em Brasília, que há anos lutam pela bandeira da democratização. O “Grupo dos Sete” afirmou endossar o apoio ao PL publicamente. Afirmaram em nota: “No Brasil há uma grave situação de concentração monopólica da mídia. Sabemos e admitimos que somos parte fundamental desse problema e estamos dispostos a corrigir, seja espontaneamente ou por via judicial, essa aberração. Por isso, vamos colaborar e apoiar qualquer iniciativa que vise romper com esse nó górdio das comunicações no país”.

A repercussão dessa inédita e surpreende decisão foi manchete de jornais em todo o mundo. Em pesquisa divulgada ontem pelo DataNR, a maioria dos veículos internacionais (80%) é contrária a postura do "grupo dos Sete". A população, no entanto, vê com bons olhos a iniciativa: 70% dos brasileiros querem regulação da mídia e, para 35% dos entrevistados, os meios de comunicação defendem os interesses dos donos; apenas 8% avaliam que estão a serviço da população.

Procurados pelo NR, políticos e autoridades que preferem não se identificar admitiram "confusão mental" com a notícia. “Muita gente vai se indignar com as 'novas verdades' que vão surgir”, comentou uma alta figura da república. De fato, o mundo não será mais o mesmo.

*Thiago Domenici, editor e coordenador do NR, escreve fantasias, caso dessa que você acaba de ler (as partes em negrito no texto são reais).

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Souvenir de Angola

por Ricardo Sangiovanni*

De todas as imagens de Luanda que pude ver, escolho a poética para deixar-lhes aqui de registro: um sol vermelho pendurado no meio da tarde, desenhando no chão a sombra de um majestoso baobá desfolhado; e o vento levantando poeira. Sol sob o qual vi que de fato ardem muitas misérias, mas muito mais atenção do que elas me chamou o jeito de ser do povo, tão sorridente e barulhento, tão entropicamente parecido ao de nosso Brasil, ao desta Bahia em especial.

À guisa de fundo musical minha memória elege a canção que pude apreciar cantarem sete, talvez oito senhoras da comunidade do Zango, na periferia da periferia da cidade. Delas lhes pouparei de minha descrição imprecisa: vistam-nas com aqueles panos coloridos de nossa imaginação de África; ponham-lhes umas unhas coloridas salientes nos dedos dos pés rachados; dêem-lhes a pele enrugada do rosto daquelas senhoras das fotografias de Pierre Verger, e não estarão distante do que vi.

Mas sobretudo ouçam-nas, ouçam-nas entoar num ecumênico kimbundo ancestral a música que ensaiavam para cantar na missa católica de logo mais. E, se for o caso, deixem-se tocar pela melodia, pelas vozes, pela afinação imemorial capaz de elevar o espírito de quem ouve, de transformar tudo o mais ao redor em passageira banalidade.

Gana tukuatele renda, tuakuai tuxi – para quem quiser escutar, são só 4:57

*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Desvestimenta breve


por Júnia Púglia      ilustração Fernando Vianna*

Nos idos de 1990, passei umas férias em Florianópolis, num bairro meio isolado, o Campeche, então uma pequena comunidade com jeitão alternativo, cortada por ruas de terra e sem sinal de televisão, por decisão dos moradores. Minha amiga e eu nos hospedamos na casa de uma professora universitária, que, com toda naturalidade, decidiu não trabalhar enquanto estivéssemos lá. Estávamos em março, com dias perfeitos. O clima era de sossego total, muito diferente das minhas experiências anteriores no Sul. Íamos cada dia a uma praia nova, circulávamos pela vizinhança, onde todo mundo se conhecia e convivia num clima meio Woodstock, comíamos o pão integral feito pelo namorado da nossa hospedeira, conversávamos e ríamos muito.

A todas essas, a dona da casa dizia: vocês têm que ir ao Pinho, lá é que é bom. Para mim, ali já era bem divertido, mas ela insistiu, e lá fomos nós, no seu bravo fusca amarelo, com uma tralha impressionante, rumo a Camboriú. Chegando lá, subimos por uma estradinha de terra, até que ela avisou: é aqui. Mal ela havia terminado a frase, veio nos recepcionar um sujeito todo sorridente, pelado. Já sabíamos que estávamos chegando a um camping de naturismo, mas esta aparição foi inesperada. Engoli o susto, mas aí foram se aproximando a mulher dele e dois filhos pequenos, igualmente nus. Aijisuis, era tudo verdade! O pessoal vivia pelado mesmo.

Bagagem arriada, chalés designados, era hora de cumprir o regulamento e tirar a roupa. Depois de hesitar por uns quinze minutos, me senti tão ridícula que tirei tudo de uma vez. Logo todos estávamos nus, iguais às outras pessoas que circulavam por ali. E assim passamos os três dias seguintes, na única experiência de nudismo que tive até hoje, infelizmente.

Desvestir-me teve um efeito libertador. Eu me senti a própria Eva, nua à beira-mar, dormindo num chalé de madeira cravado numa encosta coberta de vegetação nativa. A praia era reservada para o naturismo e aberta ao público – pelado. Tinha gente de todo jeito, naquele clima de que quando o tabu se rompe, rompido está – mas só o da nudez, esclareço. Havia uma rígida vigilância sobre comportamentos, de modo a evitar baixarias públicas. Um limite que não deixa de ser intrigante.

Em poucas horas, já agíamos com naturalidade, como se não estivéssemos apenas ocasionalmente expostos aos corpos alheios, e nos expondo. A parte engraçada era que, no alto de uma colina próxima, sempre havia uns carros parados e umas pessoas nos observando de longe. Os “espia-cus”, como os chamava o pessoal do camping.

Foram dias únicos, em que eu acordava e dormia desfrutando cada momento daquela onda princípio do mundo, um hiato de frescor na vida urbana classe média careta, com muito borrachudo no fim da tarde, como deve ser. Efêmero hiato. Logo, nos vestimos de novo, subimos no fusca desconjuntado, reassumimos os personagens cotidianos e voltamos para as nossas vidas de sempre, mas trazendo a marca do Pinho tatuada lá por dentro.

* * * * *

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Democracia, uma interpretação

por Fernando Carvall*




*Ilustrador e caricaturista, Carvall é um dos grandes nomes da ilustração brasileira; professor do Senac há quase 20 anos, mantém o Estúdio Saci e colabora com o NR desde 2011

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Monarco, a memória viva da Portela


por André Carvalho ilustração Kelvin Koubik "Kino"*

Hildemar Diniz recebeu o apelido que carregaria para o resto de sua vida aos 6 anos de idade. Vivia em Nova Iguaçu, que naquela época (final da década de 1930) estava mais para roça do que para subúrbio urbano. Certo dia, quando um amigo lia um gibi, em voz alta, para toda a turma, achou graça na parte da história que falava do “grande monarca”. Na sapecagem de criança, os amigos começaram, então, a lhe chamar de “Monarca”. Com o tempo, virou “Monarco”, nome com o qual o futuro portelense se tornaria conhecido.

Monarco celebrou, no último dia 17 de agosto, a chegada da 80ª primavera em sua vida e a festa de comemoração não poderia ser melhor. Na quadra de sua Escola de Samba do coração, o “Portelão”, cantou, sambou e festejou cada instante das oito décadas intensamente vividas, ao lado de amigos e familiares. Memória viva da Portela, Monarco, desde maio deste ano, é presidente de honra da agremiação, o que representa um sopro de esperança para uma legião de portelenses que, nas últimas décadas, viram interesses econômicos sobrepujarem toda uma tradição e uma história de cultura popular.

A chapa de oposição à antiga diretoria – que fez a Portela se acostumar a não mais brigar por títulos, sendo obscurecida por rivais menos tradicionais e com menos gabarito no quesito “samba” – venceu as eleições e pretende expurgar a conduta, nociva, de valorizar mais o aspecto financeiro ao cultural dentro de uma Escola de Samba. Apesar do jejum de 29 anos sem títulos, Portela ainda é a maior vencedora do Carnaval carioca. Nesta nova gestão, tão significativo quanto à presença de Monarco na composição da diretoria é o fato de o próprio presidente ser intimamente ligado à memória musical da Portela – Serginho Procópio, o novo mandatário, é cavaquinista da Velha Guarda, filho de um dos maiores instrumentistas que já passaram por lá, Osmar do Cavaco.

Sendo assim, a celebração de seu 80º aniversário foi, de fato, uma ode à Velha Portela. Estavam lá Waldir 59 – sócio número 1 da Escola –, Wilma Nascimento, Dodô, Noca, Cabelinho, Tia Surica, Tia Eunice, além de toda a Velha Guarda, incluindo seu padrinho, Paulinho da Viola. Familiares, como o filho Marquinhos Diniz e a neta Juliana Diniz, bem como amigos caros ao velho bamba, como as cantoras Cristina Buarque e Teresa Cristina, o veterano sambista mangueirense Nelson Sargento e o cartunista Lan também marcaram presença.

Aos 80, Monarco recebeu o cargo e o diploma de guardião da memória portelense, algo que sempre o fez, de maneira espontânea. Nesse contexto, os festejos terem sido realizados no “Portelão”, e não na “Portelinha”, primeira sede da escola, foi emblemático – a nova diretoria faz questão de fazer da sede oficial a casa da Velha Guarda, de modo a ressaltar a união entre a Escola de Samba, moderna, atual, inserida em um contexto de competitividade, e a memória musical desta mesma (a tradição), representada naqueles velhos bambas da Portela de outrora. A “Portelinha” foi casa da Velha Guarda durante os anos nebulosos da antiga administração. Assim, apesar de sua beleza, de seu significado e seu charme, ficou estigmatizada como o local onde se relegavam os “velhos”, que não poderia representar a Portela “oficial”, em detrimento do “novo”, moderno e mais adequado aos tempos atuais, esvaziado da tradição portelense.

Memória dos mais velhos,
legado para os mais novos


Monarco é a memória da Portela. Sempre foi. Agora, está oficialmente legitimado nessa função. Para os sambistas mais novos que se interessam pela bagagem cultural, pelo acervo valiosíssimo que faz da Portela uma Escola de Samba rica em tradição, o velho sambista também é a principal referência.

Sambistas de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, desvinculados de uma trajetória feita dentro de Escolas de Samba – longe, inclusive, da Portela – celebram o compositor frequentemente, promovendo rodas de samba com o portelense e aprendendo antigos sambas – muitos, quase totalmente esquecidos –, de forma a recuperar e tirar do ostracismo verdadeiras pérolas do nosso cancioneiro.

Monarco é a pessoa certa para lembrar aquele samba inédito do Alvaiade, dos irmãos Andrade, a melodia do Quininho, a “segunda” que nunca foi gravada, o verso original do samba que fez sucesso, o samba de terreiro de Paulo da Portela que a Escola desfilou nos anos 30 etc. A facilidade para lembrar sambas compostos há mais de meio século é herança de outro grande sambista da Portela, parceiro de primeira hora de Monarco em tempos passados: Alcides, o Malandro Histórico.

Desde cedo, Monarco fez questão de se associar aos sambistas mais velhos da Portela, procurando adotar, inclusive, a mesma linha de composição dos veteranos. Entre seus parceiros na Escola, estão nomes como Manacéa, Francisco Santana, Mijinha, Antônio Caetano e Alvaiade, bem como o grande baluarte da escola, Paulo da Portela, com o qual fez uma série de parcerias póstumas, colocando “segundas” em sambas curtos criados pelo bamba.

Curiosamente, o compositor pouco se associou aos sambistas da sua mesma faixa etária, como Candeia (com ele, fez apenas um samba, o clássico “Portela é uma família reunida”), Casquinha e Picolino (conhecidos como a Turma do Muro), preferindo manter a tradicional linha de composição dos mais velhos - depois superada e modificada por esta nova geração, inclusive, nas disputas de samba enredo.

Velha guarda,
aos 37 anos


Foi pelo fato de manter esta linha e caminhar lado a lado com os sambistas que participaram da fundação da Portela e edificaram o estilo de composição portelense, que Monarco, aos 37 anos, foi convidado a integrar a primeira formação da Velha Guarda da Portela, em 1970, idealizada por Paulinho da Viola.

Dotado de voz potente, Monarco era presença marcante nas rodas de samba no terreiro da Portela, tirando da mente sambas das mais diversas procedências – inclusive seus -, cantados em uma afinação impecável. Assim, foi um dos selecionados para o registro pioneiro da Velha Guarda da Portela, tendo a honra de ter sua composição elevada a nome do disco: “Portela, Passado de Glória”. Trabalhando duro, como peixeiro, entretanto, o sambista não pôde comparecer no estúdio, no dia da gravação (não havia, à época, para cidadãos suburbanos pobres, a opção de querer, ou tentar, levar vida de “artista” – a necessidade falava mais alto).

Esta frustração foi dissipada nas gravações seguintes da Velha Guarda, já nos anos 80, quando Monarco foi intérprete de várias faixas, atuando ativamente, também, na elaboração do repertório, fruto de sua memória sagaz. Seu cantar, desde o primeiro registro, tornou-se evidente a beleza e a força. Tem “gogó” de sambista de terreiro, que canta alto para fazer-se ouvir em meio ao rufar de tamborins, pandeiros e cuícas. Lançou o primeiro disco solo em 1976, pela Continental, com capa ricamente ilustrada por Lan. Outros quatro viriam depois.

Um compositor
portelense


Como compositor, emplacou grandes sucessos. Sozinho ou com seus parceiros da Portela, teve registrado sambas por João Nogueira, Martinho da Vila, Roberto Ribeiro, Beth Carvalho, Clara Nunes, Paulinho da Viola, entre outros. Clássicos, como “Tudo menos amor” (com Walter Rosa), “Quitandeiro” (com Paulo da Portela) e “Lenço” (com Francisco Santana) foram fartamente executados em uma grande parcela de lares brasileiros, nos anos 70.

A partir dos anos 80, Monarco formou uma parceria com o compositor Ratinho que seria muito gravada por Zeca Pagodinho e resultaria em sucessos retumbantes (que ajudaram a melhorar a condição de vida do sambista), como “Coração em desalinho” e “Vai vadiar”. Além das dezenas de músicas gravadas, o compositor possui, ainda, uma série de inéditas – e, claro, traz na lembrança outras tantas composições de portelenses de outrora.

Por muito tempo, essa linha de sambas da Portela, bem como a própria tradição portelense perderam espaço. Nas rodas de samba poucos se lembravam dos sambas de terreiro dos compositores da antiga. Dentro da Escola então, nem se fala. Monarco se viu nesta aridez por muitos anos, muitas gestões. Agora, é chegada a hora da Águia da Portela voar, altaneira, novamente. No belo samba de Argemiro do Pandeiro e Francisco Santana, feito quando os títulos começaram a escassear, já há várias décadas, o estado de espírito dos portelenses era retratado nos seguintes versos: “Vitória para a Portela era banalidade, mas da vitória estou sentindo saudade”. Nos últimos anos, Monarco concordou, triste e resignado. Agora, porém, quer que as glórias do passado voltem a ser, novamente, doces trivialidades.

"Escute, na íntegra, o disco de estreia de Monarco, lançado pela Continental, em 1976"



*André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba. Ilustração de Kelvin Koubik, "Kino", colunista do NR, artista visual, grafiteiro e músico de Porto Alegre

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Curvas


por Carlos Conte ilustração Ligia Morresi*

A tropa marchava sob o sol forte de janeiro. Eventualmente se revezavam chapéus, cangas, toalhas, camisetas, o que servisse para cobrir do sol as partes mais expostas do corpo. Debaixo de seus pés, do areal infinito, subia um bafo picante que pouco a pouco ia pegando na pele, junto com a areia que vinha de toda parte trazida pelo vento. Aliás, nas praias uruguaias o vento nunca dá descanso.

Nada que atrapalhasse a caminhada. Há alguns dias tinham encarnado o espírito “buena onda” dos uruguaios. Nem mesmo as dunas, enormes obstáculos que se sucediam como numa paisagem desértica, os desanimava. Era caminhar. Uma ânsia deambulatória que se misturava com uma vontade louca de falar. O único grilo foi do Pelo, que não sabe nadar, e preferiu atravessar o “arroyo” de barquinho junto com as bagagens. De resto, nenhuma chateação. Pacha empunhava seu inseparável cajado de outras viagens enrolado numa canga feminina, talvez da Juca, o que para os olhos chapados dos demais era a perfeita imagem de um visionário, um messias encarregado de anunciar ao povo alguma coisa muito boa, talvez a paz mundial ou algo do gênero. Tudo bem, estavam loucos de LSD e sua viagem era outra.

Tinham uma missão, na verdade. Chegar ao vilarejo de Cabo Polônio, ver os lobos e leões marinhos – que são bem diferentes, explicava Khan, os lobos são menores, os leões maiores e mais gordos, mas ambos extremamente agressivos, Khan lhes dizia. Sim, queriam chegar ao Polônio antes do sol se pôr, primeiro para não correr o risco de perder o último caminhão que os traria de volta a Valizas, onde estavam hospedados, depois porque queriam ver os tais lobos e leões marinhos – que são fedidos pra cacete, alertava Khan.

Chico, o mais falante da turma, contava a história de Juancho, um velho sábio uruguaio, rouco como todos os uruguaios (pois entraram na noia de que todos os uruguaios são roucos, uma maluquice, sem dúvida), e Juancho, com sua voz sempre tranquila e sempre rouca, tipicamente uruguaia, portanto, costuma dizer aos viajantes que passam por sua cabana que na vida só existem dois caminhos: “el camino del mar y el camino del bosque”. Assim, alerta Juancho, pelo caminho do mar deve-se tomar cuidado com os lobos, e pelo caminho do bosque, com “los cascaveles”.

A missão era chegar ao Polônio a tempo de ver os lobos e os leões marinhos, mas pelo caminhar da tropa via-se que seria difícil estar no Polônio antes do entardecer. Era aparecer um inseto exótico, ou pegadas animais misteriosas, uma borboleta colorida, rochas revestidas com uma trepadeira que parecia maconha, era alguém ter uma ideia, subir numa pedra e começar a solar sobre qualquer bobagem que a turma parava a caminhada para ouvir a explanação. Uma formação curiosa de nuvem. Paravam. Analisavam, como se aquela nuvem fosse a nuvem mais bonita e bem feita entre todas as nuvens. Numa baixada, passaram por um pedaço de areia que, para alguns, seria movediça, mas na realidade não era areia movediça nenhuma, apenas uma paranoia de quem está muito louco e quer experimentar enfiar o pé naquela areia fofa e úmida – e era de fato gostoso brincar de afundar o pé na areia – que, de todo modo, não chegava a ser movediça, como afirmavam, quem sabe uma prima distante da verdadeira e temível areia movediça que só se vê na televisão.

Assim, erravam por aquele espaço imenso, tomado por dunas intercaladas por terrenos baixos, de charco: a aridez das dunas, a umidade das baixadas. Devido a essas distrações, acabavam não seguindo uma linha reta, que, como se sabe, é o caminho mais curto entre dois pontos, mas faziam curvas, de acordo com a necessidade da loucura. Faziam curvas, curvas que são. Traçavam parábolas absurdas naquele areal, cujo rastro logo seria desfeito pelo vento incessante do Uruguai. E assim o grupo se distraía, demorava, atrasava... Mas seu objetivo, na verdade, seu verdadeiro objetivo nisso tudo não era chegar ao Polônio antes de escurecer; sua missão, se é que se pode lhe dar esse nome, era atender ao chamado das curvas, curvas que são. E para aumentar o grau de curvice da viagem juntou-se a eles, de última hora, uma colombiana chamada Paola, que viajava sozinha pelo Uruguai. Em poucas horas, já era adorada por todos: Salchi, Lili, Ju, o europeu da turma Robert, Cisne, Line e o argentino Julio. Ao todo, treze. Doze sem Paola. Treze com Paola, que estava acampada junto com a turma do Pacha no camping do pirata Hernán, e mantinha um diário do qual não se desgrudava. Num momento de distração, Chico teve acesso ao diário e leu um trecho em que ela descrevia a sensação de ter visto discos voadores na noite anterior. Foi o bastante para que Khan e Line, no final da viagem, chegassem à conclusão de que, entre todos os curvas dessa temporada de férias no Uruguai, Paola era a maior de todas, uma espécie de Tamburello, uma curva da estrada de Santos, o “oconcur” da curvice sulamericana, estando à frente até mesmo do pirata Hernán, o dono do camping, que, durante um “asado” noturno, enquanto cortava uma peça de carne, meteu a faca na palma da própria mão, fazendo-lhe um talho até que profundo, de onde imediatamente começou a escorrer sangue, que foi se juntando ao sangue da carne bovina crua; e foi nesta noite que comungaram o sangue de Hernán, também chamado de Profeta, que não deu a mínima nem para o corte nem para o sangue, que serviu de tempero pra carne.

O Hernán é um velho hippie típico dessa parte do litoral uruguaio. Os curvas estavam no lugar certo. Como na lenda de Juancho, enveredaram pelo “camino del bosque”, onde felizmente não se depararam com nenhum “cascabel”, mas, aproveitando a sombra, pararam mais uma vez: largaram suas mochilas, estenderam suas cangas no solo duro e espinhoso, repleto de folhas secas, ramos, pinhas e cascas de madeira. Quanto tempo passaram dentro desse bosque! Conversavam compulsivamente. Estavam loucos por falar, como diria Jack Kerouac, inclusive sobre a possibilidade de, quem sabe um dia, sair da cidade grande e ir morar num desses vilarejos rústicos, pouco povoados, extremamente tranquilos, do litoral uruguaio. Chico liderou um grupo expedicionário pelo interior do bosque. Paola, a colombiana dos óvnis, abriu seu inseparável diário e começou a escrever; estaria vendo alguma coisa extraordinária no meio daquele pinheiral? Elfos. Fantasmas. Quem sabe o lendário Juancho ao lado de um “cascabel”? Mas a surpresa veio do europeu da turma, o Richard, que explicou aos demais que “curva”, em polonês, significa “puta”. Ou soa parecido com “puta”. A palavra “curva”, desde então, passou a fazer mais sentido para todos.

Claro que não chegaram a tempo de ver os lobos e os leões marinhos. Assim que entraram no vilarejo do Polônio, no entardecer, ficaram sabendo que os dois últimos caminhões estavam de saída.



Hora de fugir para as montanhas, como costuma sugerir o Binho Miranda quando a barra pesa. Melhor, disse Pacha há um mês no facebook, voltemos às planícies uruguaias, banhadas pelo Atlântico, rever os “arroyos” translúcidos que cortam o país em direção ao oceano, os bosques litorâneos cheios de coelhinhos e esquilos, quem sabe trombar o Mujica de bobeira por lá, viver modestamente, mas felizes, com certeza, arrumar uma chica, comprar um pedacinho de terra e daí encher este mundo de “niños uruguayos”, que em vez de dizer “tchau” diriam “que pase lindo!” todo dia antes de ir pra escola. Será que por aqui a água está batendo no umbigo, meu chapa? A barra pesando, toca pro Uruguai! Viver com o pirata Hernán, entre o oceano e o bosque, num chalezinho hipponga, e quem sabe um dia topar com o mitológico Juancho, que certamente irá falar sobre os dois caminhos da vida e o perigo de se encontrar pela frente um lobo ou um “cascabel”.

* Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ligia Morresi, designer e ilustradora, especial para o texto

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Povo das águas

por Ana Mendes*

Frio de renguear cusco. Ninguém tá tomando um chimarrão quentinho, pensei, pra aliviar a dor que sentia nas pontas dos dedos às 7h da manhã. Mas o balanço do barco não deixaria, afinal, servir o mate sem derramar tudo. Os dois pescadores que conduzem a embarcação nos olham e riem. O barulho do motor é grande e ninguém fala. A gente tem um certo pavor no rosto, com certeza é disso que eles gozam. A lagoa tá braba, deu mar. É culpa do vento. As duas mãos ocupadas em segurar firme a cada solavanco deixam passar possíveis fotografias do nascer do sol. O Ripper acendeu um cigarro e a Marcella colocou uma capa de chuva na câmera dela. Estamos nos molhando. No frio de julho nos disseram que “se tu cair na água, tu morre. De choque térmico”.

Nesta época do ano, o vento na Lagoa Mirim, no sul do Rio Grande do Sul, pode chegar a 100km/h. Em dias de ventania é prudente esperar em casa e acessar a internet volta e meia pra saber sobre as condições dos próximos dias. A rede com peixe no meio da lagoa pode esperar até 72 horas para ser recolhida, os bichos não apodrecem porque ficam conservados no gelo. No verão não. Há que ir todos os dias conferi-las. Na vila, enquanto esperam passar o vento forte, os pescadores consertam redes e barcos, limpam peixes e fazem outros biscates pra completar a renda. “Agora a gente fica em casa, no verão é comendo sol e vento pra recuperar o tempo perdido”, nos conta um pescador de pele amarelo queimado.

A lagoa é impositiva. Mas a intempéries do tempo são pequenas perto da ação predatória do homem. A cada quinze minutos de viagem de barco é possível ver um novo canal aberto para as lavouras de arroz, ávidas consumidoras de água. São 12 milhões de litros que escoam anualmente para as granjas dos arredores. Por isso, é comum ouvir os pescadores dizendo que atravessam um período de seca, “a lagoa tá baixa, as águas estão paradas, não tem oxigênio pros peixes”. E a traíra, o peixe mais desejado, que antes se reproduzia nos banhados de encosta perdeu o seu lugar de desova.

Na luta diária pela sobrevivência, o pescador artesanal é uma enciclopédia das coisas da terra, dos céus e da água. “Já pensou, o dia em que as mulheres deixarem de ter filhos? Pois vai ter um dia que essa lagoa vai deixar de ter peixe”, nos diz Eder de 35 anos. Ele, assim como a maioria dos pescadores aprendeu a profissão com seu pai. São os hábitos, transmitidos de uma geração para a outra, o embrião da consciência ambiental. A relação com a natureza é fundamental para a manutenção da identidade do pescador, pois na imensidão da maior lagoa de água doce do Brasil eles são a dimensão humana de um complexo sistema ecológico.

www.fronteiramirim.blogspot.com
www.facebook.com/fronteiramirim

*Ana Mendes, gaúcha de nascimento, é fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Mantém a coluna Faço Foto.

domingo, 1 de setembro de 2013

Chegando em África

por Ricardo Sangiovanni*

Gostaria, amigos, de já ter um ótimo causo para lhes contar, ou alguma anedota animada para lhes entreter, ou algum palavreado exótico para lhes informar, mas ocorre de eu me encontrar um bocado cansado, vítima de um primeiro dia de trabalho já intenso, por sua vez precedido por dez horas de voo, cinco de aeroporto e só duas de sono.

Mas o que me impede mesmo de escrever hoje é a emoção, uma grande emoção cheia também de pensamentos ricocheteantes que tento apanhar pelo rabo para transformar numa crônica mas não consigo. É a imensa emoção e honra de estar pisando, desde hoje de manhãzinha, em solo africano pela primeira vez.

De sorte que vou lhes poupar – e a mim mesmo, afinal estou me esforçando para levar a sério essa coisa de pensar o humano, o social, o cultural – de qualquer tentativa de por as impressões em palavras agora.

Vou-lhes ficar devendo a crônica que não redigi, a foto tosca de celular que não tirei, o video mirando minha cara com o sol se pondo no mar desta cidade de Luanda – que ainda não me concedeu licenca para que falasse dela – que não fiz.

Porque qualquer uma dessas coisas, neste momento, seria puro jogo de cena, puro anteprojeto de lixo virtual, puro arremedo de antecipação barata das experiências que ainda hei de vivenciar aqui – e principalmente das que não, haja vista o tiro curtíssimo da estadia. Qualquer coisa dita agora seria só uma bandeira a mais fincada, ainda que virtualmente, sobre este solo, este solo onde tantas bandeiras alheias já foram irremediavelmente fincadas, que não precisa de mais nenhuma.

Volto então na semana que vem, contando alguma coisa. Ou quem sabe nem conte nada, quem sabe o certo seja ver e sentir as coisas daqui, depois guardar tudo calado mesmo dentro de mim.

*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.

Web Analytics