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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Cidadania de segunda mão


por Celso Vicenzi*

Incorporamos o fracasso. Séculos de maus-tratos à população dão-nos a sensação de que as conquistas no cotidiano de outras populações, sobretudo na Europa, mas também em outros continentes, estão fora do alcance dos brasileiros. Aceitamos uma cidadania capenga, desfigurada, de segunda mão.

Em Florianópolis, uma ilha com três pontes e uma quarta sendo anunciada, com crônicos problemas de mobilidade urbana, soa estranho cada vez que alguns especialistas – brasileiros ou estrangeiros – sugerem soluções combinadas de transporte rodoviário, marítimo e ferroviário – sobretudo este último. Não é diferente em outras médias ou grandes cidades, descontadas as características individuais. Cada vez que se propõe o uso de trens elétricos de superfície ou veículos em trilhos ou monotrilhos, há uma sensação de espanto no ar. “Isso é irreal”, ouve-se, com muita frequência, de uma população acostumada a tantas deficiências. “É muito caro”, logo antecipam autoridades ignorantes ou de má-fé e gestores que nunca souberam ou quiseram fazer direito as contas.

Quanto custa uma cidade e uma população paralisada? Trabalhadores que gastam horas engarrafados no trânsito? Pessoas que desistem, muitas vezes, de se locomover a uma determinada área da cidade porque sabem o quanto de sacrifício isso exige. Sem falar na poluição – atmosférica e sonora. E os acidentes? Os feridos? Os mortos? Quanto custa acostumar uma população a se deslocar em ônibus precários e superlotados, de forma desumana, como se isso não contribuísse, com o passar do tempo, para desumanizar todas as relações na sociedade?

O Brasil copia ou reinventa quase tudo dos países mais ricos – o way of life –, mas não é capaz de incorporar os modelos de mobilidade implantados e que interligam todos os modais de transportes, inclusive as ciclovias. Em vários países é possível alternar diferentes modelos: posso ir de bicicleta até uma estação de trem e continuar a viagem sobre trilhos. Posso intercalar ônibus, trem e metrô. Não é preciso – nem faz sentido – usar sempre o mesmo tipo de transporte do começo ao fim do deslocamento. As soluções precisam ser integradas.

Em vários países compram-se passagens para trens, metrôs e outros modais em praticamente todas as plataformas de embarque e desembarque. Muitas delas automáticas, operadas pelo próprio usuário. Em todas as plataformas – inclusive rodoviárias – não faltam informações sobre os destinos dos ônibus que trafegam por ali.

E tudo é pensado em termos de custo-benefício: quem compra bilhetes para um ou dois dias pagará mais caro do que quem adquire passes para uma semana, mês ou ano, por exemplo. Os custos são progressivos, em círculos, a partir da área central até os pontos mais distantes servidos pelo transporte urbano. No Brasil, todos esses critérios não têm a mesma clareza. Muito menos as facilidades para operar. Faltam transparência e informações para os usuários, que precisam ser tratados como cidadãos, e transportados com conforto, segurança e agilidade.

Para que tirar o carro da garagem – para quem o tem – no deslocamento diário pela cidade ou entre cidades, se é possível fazê-lo de modo muito mais tranquilo, rápido e econômico por transporte coletivo? Ao longo dos anos, o custo-benefício mostra-se amplamente compensador, tanto que é adotado por cidades de médio e grande porte. Os chamados VLT – Veículo Leve sobre Trilhos –, uma entre tantas possibilidades que demoramos tanto a adotar, são uma solução bastante difundida em muitos países que diminuíram substancialmente seus problemas de mobilidade urbana.

No Brasil, um país que está entre as dez maiores economias do planeta, o custo não pode ser a eterna desculpa. A menos que sejam os custos da ignorância, da corrupção e da má gestão.

                                           * * * * *

*Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

4 comentários:

Anônimo disse...

Quando vou para outros países o que me surpreende é exatamente isso, cidades com muito mais problemas, porem a mobilidade urbana é um espetáculo. Comprando um cartão, que muitas vezes não é barato, voce pode andar de onibus, trem, metro. Tem solução. Não entendo como Florianópolis foi ficar dessa maneira. Está faltando políticos que amem a cidade que estão administrando.

Roberto Reguse disse...

Por trás de tudo isso existe uma constatação básica: o bem comum, que atinge a maioria, não está sendo levado em consideração, mas sim os interesses individuais de empresários, partidos e políticos. Veja o exemplo da duplicação da BR-101. O que sobra é ignorância, corrupção e má gestão....e desculpas esfarrapadas....

Unknown disse...

Por 6 anos na Europa nunca pensei em comprar carro. Para que? Transporte público 24 horas, com ampla cobertura, preços acessíveis e qualidade garantiam zero stress. Tentei usar o transporte público por 1 ano aqui, mas tive que desistir. Seguindo o raciocínio de um colunista do DC (acho que foi o da Rosa), gasto 6 vezes o tempo que gastaria de carro se utilizo o ônibus, e pago o dobro. Mas nada é de graça nessa vida, pois tenho que agüentar o stress gerado pelos fominhas, apressadinhos, mal-educados e ineptos. E sinceramente, de nada serve investir em sistemas de transporte público se continuamos com esta mentalidade de consumo tão americana, tão medíocre e pequena, onde quem não tem bens e posses (começando pelo carro - dos mais caros e zero quilômetro), não é ninguém. Para muitos, o carro não é um meio de transporte, é um símbolo de status, uma maneira de se diferenciar do seu semelhante, um "te enxerga" implícito. Nunca vamos deixar o terceiro mundo se nossas mentes continuam lá, perpetuando estas dinâmicas de servilismo, privilégio, falta de horizontes e coronelismo. Esqueçamos de uma vez esta bobagem de transporte público, ninguém quer igualdade de condições, afinal, estamos no país da lei do Gerson e todos querem aparecer. Como disse um senhor outro dia na coluna do leitor do DC, "bicicleta é para vadios que não tem nada o que fazer, as pessoas precisam de mais avenidas e estacionamento, são mães levando os filhos para a escola, ambulâncias socorrendo feridos, cidadãos de bem indo trabalhar para o progresso do país, não hippies passeando no meio da tarde". Pode uma criatura dessas? Pode. Essa criatura é representante do grosso da população, independentemente do nível sócio-econômico. Então, esqueçam esta bobagem, falta um pouco mais de ilustração para que nossa gente entenda a beleza da expressão "igualdade, fraternidade e solidariedade".

Patricia Cunha disse...

Nem ouse discordar.

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