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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Novos rumos do Nota de Rodapé

Querid@s leit@res:

Sempre foi uma tarefa bem complicada, mas sempre empolgante e satisfatória tocar o NR, projeto do qual tanto me orgulho, sobretudo por ter o apoio de todos vocês, que sempre foram fantásticos em manter a roda girando. Já faz uns dois anos, desde que ganhamos o prêmio TopBlog, que o espaço se mantém estável, sem grandes inovações.

Além disso, sozinho como editor, sempre foi complicado ter braço para inovar e tocar ideias mais robustas, como o “NR conversa”, que ficou só no programa piloto.

Contudo sempre é hora de mudar e arriscar. E fazendo um balanço percebemos (já explico o “emos”) que apostar no NR pode ser uma saída para as nossas vidas como profissionais do jornalismo.

Tudo isso é pra dizer que é um desejo antigo fazer do NR um projeto maior. E, para isso, resolvemos transformar a plataforma de publicação do atual Blogger do Google (mais engessado, com um texto seguido do outro) para um site dinâmico com tecnologia Wordpress. Isso está em andamento desde o início do ano. E a equipe responsável pelo layout novo e programação é o Estúdio Saci, do nosso também colaborador Fernando Carvall.

Como um site, o NR será mais dinâmico e vai proporcionar, além das tradicionais colunas (crônicas e artigos), informação, por meio de entrevistas, matérias, serviços, reportagens, vídeos... Pensando grande: seremos um coletivo de jornalistas, ilustradores, escritores e outros profissionais ainda mais forte e que, mesmo sem nenhum tipo de remuneração momentânea, seguirá na missão de produzir e difundir conteúdo de qualidade pautado pelo interesse público, com foco reflexivo nos assuntos e notícias do cotidiano do país.

Até o final de outubro (se tudo correr bem) o NR será relançado. E passará a ter quatro editores e coordenadores. Além de mim, João Peres, Moriti Neto e Fernando Evangelista. Todos jornalistas da mais alta competência que, por essas coincidências da vida, estão no mesmo barco do “o que vamos fazer da vida?”. Pensamos: “vamos unir forças e arriscar um projeto que possa, num futuro não tão distante, ser ampliado e, por que não, ser sustentável financeiramente”.

Não temos uma fórmula mágica. Vamos garimpar projetos que se encaixem no guarda-chuva do NR. Seguimos debatendo os meios para esse objetivo. E ideias são muito bem-vindas. No relançamento vamos soltar um espécie de "carta de princípios", algo que nos norteie em relação aos trabalhos que iremos realizar.

O que posso garantir a vocês, se desejarem continuar nessa jornada conosco, é que vamos trabalhar duro para qualificar o debate democrático e o resgate do papel do jornalismo como ferramenta social que ajuda a esclarecer os fatos e a refletir sobre os acontecimentos.

Então é isso, voltamos em outubro, que tá logo aí. Até já.

* * * * * *

Thiago Domenici, editor e coordenador do Nota de Rodapé

terça-feira, 1 de setembro de 2015

O dia em que fizemos nevar na cabeça do governador (Parte Final)


por Fernando Evangelista*

... E como ia dizendo, essa história de recolher giz, triturar tudo e espalhar pelas pás do ventilador de teto da nossa sala de aula, bem no dia da visita do governador do Estado, tinha tudo para dar errado.

Luciano teve a ideia e procurou dois cúmplices, Cristiano e eu. O plano foi traçado na escadaria do colégio, numa segunda-feira de novembro de 1988.

– Vai ser divertido.

– Acho arriscado.

– Que nada, é moleza.

Naquele ano, estudantes do colégio foram campeões brasileiros de xadrez e fizeram bonito na Olimpíada de matemática, conquistando uma medalha de ouro e outra de bronze.

Três dos integrantes da equipe de xadrez eram da nossa turma e por isso o governador passou na nossa sala, antes do evento oficial, para uma “saudação mais informal”.

A trupe oficial chegou, a regente deu as boas-vindas, o governador deu os parabéns para os “pequenos gênios do xadrez”, falou ainda sobre o trabalho em equipe, lealdade, honra e outras coisas bonitas e todo mundo bateu palmas e tudo bem ia bem até que alguém reclamou do calor.

– Liga o ventilador – ordenou a regente.

A partir daí, na minha memória, tudo acontece como se eu estivesse assistindo a um filme, daqueles da Sessão de Gala, quando existia Sessão de Gala, um típico filme B, exagerado nos closes e nas emoções.

Neste filme, o ventilador de teto aparece em primeiro plano, espalhando pó para todos os lados, lentamente. Corta. Closes em sequência dos olhos arregalados da madre superiora, da regente, dos alunos, das alunas e também da professora, que ainda não tinha aparecido nessa história. O governador permanece impassível, quase indiferente.

A câmera foca os alunos, de frente. Eu sou aquele lá no fundo da sala, à esquerda, pertinho da porta. Tenho medo desses homens engravatados, tenho medo da madre superiora, medo da regente e da neve falsa que continua a cair, devagar e sempre.

As meninas estão vestidas de saia bordô, camiseta bordô, casaquinho bordô, meias bordô e sapatos bordô. Os meninos estão também, de cima a baixo, de bordô - e tudo isso vai ficando branco, inclusive o hábito preto da madre, o cabelo da regente, os ternos dos assistentes do governador e o próprio governador parece, agora, bastante branco.

Não há trilha, só alguns gritinhos de espantos e tosses. Muitas tosses.

Luciano, mentor de tudo aquilo, está encolhido, quase desaparecendo, na pontinha da cadeira, queixo encostado à mesa. Cristiano, de cabeça baixa, parece petrificado. Me vejo outra vez: pálido, sem ar, arrependido. Por que me meti nisso?

Por respeito ao Luciano, provavelmente. O cara é o craque do time e, como todo craque, há meninas querendo namorar com ele. No fundo, todas as estripulias que a gente fazia se resumiam a três objetivos: chamar a atenção dos pais, afrontar professores e impressionar as meninas, principalmente impressionar as meninas. Aí a gente cresce, amadurece e... continua com os mesmos objetivos.

A neve continua a cair. Os homens do governador estão perfilados em frente à turma. Percebo que um deles me olha fixamente. É um olhar de acusação, de cão farejador, olhar de ameaça. Como ele poderia saber? Tento disfarçar, olho para os lados, mas me imagino com uma placa luminosa grudada na testa, dessas que piscam em vermelho à beira da estrada, em frente a hotéis sem categoria: Culpado!

Aquele homem sabia. Como ele poderia saber?

– Não imaginava que fosse ver neve hoje – disse o governador, quebrando o gelo, fingindo descontração.

Mas o governador é um homem sério, os homens do governador são sérios, a regente é séria e a madre superiora seriíssima. A turma, batizada-catequisada-quase-crismada, 100% católica, amedrontada por pecados e punições, também é séria.

Aquilo é sério pra cacete. É o suficiente para um processo de expulsão, no caso uma tripla expulsão.

– Senhores, foi um prazer – disse o governador, seguindo em direção à porta. Seus homens o acompanham, em fila.

Sentado na minha cadeira, lá no fundo, perto da porta, observo a marcha oficial e torço para que aquele homem-cão-farejador passe logo por mim e desapareça. Ele, porém, mantem o olhar e caminha na minha direção. Finalmente, ficamos frente a frente.

É muito mais alto do que imaginava. Ele me olha de cima a baixo e, sem mudar a expressão, sem levantar a voz, aperta o indicador de sua mão direita contra o meu peito magricelo e diz, marcando bem as quatro sílabas:

– De-sa-ca-to.

Que diabo significa aquilo?

O homem segue, cabeça erguida, mas a palavra gruda em mim. Ainda hoje, nas situações mais banais, a cena me vem à memória: o homem, o dedo, a acusação: “de-sa-ca-to”.

Apesar das investigações, pressões e centenas de ameaças, nunca ninguém descobriu quem tinha feito aquilo. E sabe por quê? Por uma razão bem simples e já citada: para impressionar as meninas, os mancebos (era assim que nos chamavam!) começarama reivindicar a autoria da ação.

Em menos de meia-hora, havia uns 40 culpados que, de peito aberto, contavam orgulhosos como tinha feito nevar na cabeça do governador, tudo nos mínimos detalhes.

Vendo aquela mentirada correndo solta, Luciano e Cristiano ficaram quietos. Eu, não, não gosto de mentira. E aí, para quem quisesse ouvir, confessei minha participação naquele ato subversivo. Eu, sim, eu mesmo, eu, mancebo desengonçado e rebelde, era um dos autores daquele feito.

Ninguém acreditou em mim.

* * * * * *

Fernando Evangelista é jornalista, mantém a coluna semanal Desacato.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

O dia em que fizemos nevar na cabeça do governador (Parte 1)

por Fernando Evangelista*

A ideia foi do Luciano:

– Vamos pegar giz e triturar.

– Giz? Pra quê?

Ele explicou. Cristiano achou a coisa muito arriscada, eu também achei, mas a gente topou, a gente sempre topava as maluquices do Luciano. Ele tinha moral, era o artilheiro do nosso time.

Na escola, com aquele esquema de notas e competições, se aprende que para ser respeitado é preciso ser “o mais” em alguma coisa: ou o mais inteligente ou o mais valente ou o mais bonito ou o mais cdf ou o mais engraçado e, num colégio de freiras, também vale ser o mais católico. Luciano era o mais habilidoso – fazia gols em todas as partidas e de todos os jeitos.

Estávamos na escadaria do colégio. Era uma segunda-feira de novembro de 1988, por volta do meio-dia. O plano seria executado ainda naquela semana e coincidiria com a visita, em carne e osso, do excelentíssimo governador do Estado.

–  Combinado?

Sim, claro, vamos nessa. E foi cada um para a sua casa, cabeça erguida e olhar atento, imitando a pose destemida dos fora da lei que a gente via no cinema.

Naquele ano, a equipe de xadrez do colégio sagrou-se campeã nacional nos jogos de Pernambuco, título inédito, que rendeu prêmios e viagens para os vencedores. Três desses jogadores estudavam na nossa sala; três nerds inteligentes e antipáticos que andavam sempre juntos e não falavam com mais ninguém. E, pela primeira vez, a Olimpíada Brasileira de Matemática fora conquistada por uma catarinense, ela também estudante do colégio, só que do período vespertino.

Como prova de reconhecimento oficial do Estado, o governador iria cumprimentar, pessoalmente, os gênios do xadrez e a menina prodígio da matemática. As homenagens ficaram agendadas para a sexta-feira, no período da manhã, no ginásio principal da escola.

Antes, porém, a pedido do próprio governador, ele passaria na nossa sala para uma saudação informal. O plano foi pensado para aquela sexta, mas começaria na manhã de quarta, bem cedo, antes do sinal.

Corredores ainda vazios, com duas sacolas de feira, nós três recolhemos giz em todas as salas do primeiro andar, em todas as salas do segundo e em todas as salas do terceiro. Exceto o encontro inesperado com a Irmã Veronice, na curva do corredor, correu tudo bem.

– O que é isso? – ela quis saber, olhando para as nossas sacolas.

– Maçãs – respondi. – A senhora quer uma?

Ela não quis.

Fomos embora antes das aulas começarem. Passamos a manhã triturando giz no quarto do Cristiano, num edifício rosa de três andares, pertinho do colégio. Era giz que não acabava mais e aquilo desencadeou em nós espirros em série. Achamos engraçado, a gente achava tudo engraçado naquela época.

Na quinta-feira, colocamos o pó dentro de sacolas plásticas de supermercado e essas a gente socou dentro das nossas mochilas, que ficaram redondas e pesadas. O plano foi concluído no fim da manhã, ao meio-dia.

Luciano improvisou uma escada, com mesa e duas cadeiras, no meio da nossa sala de aula. Cristiano subiu e foi colocando montanhas de giz triturado nas hélices do ventilador. Eu fiquei na porta, à espreita de algum inimigo. Não apareceu ninguém, nem a Irmã Veronice.

No dia D, sexta-feira, depois de duas aulas seguidas de matemática, a Madre Superiora e a regente apareceram para dar a notícia:

–  O governador chegou.

Descobri naquele instante que governador nunca anda sozinho, está sempre rodeado de assistentes – um segura a pasta, outro segura o discurso, um controla o tempo, outro controla a multidão, quando há multidão, e assim por diante. Os homens do governador, de terno-gravata-e-sapatos-encerados, entraram porta adentro – e de repente a sala ficou apinhada de sobrenomes importantes.

Com fama de autoritário e antipático, o governador chegou feliz, distribuindo cumprimentos e sorrisos, como nos bons tempos da campanha eleitoral. – Fiz questão de vir aqui, pessoalmente, para dar os parabéns à equipe de xadrez, vencedora do prêmio nacional.

Aplausos orgulhosos da turma. Os três alunos se levantaram e, orientados pela Madre Superiora, agradeceram. Mais aplausos. O governador, ex-aluno do colégio, falou rapidamente sobre honra e outras coisas bonitas. E já estava quase indo embora, quando alguém reclamou do calor.

– Liga o ventilador – ordenou a regente.

Nunca, até então, eu tinha ficado paralisado de medo. E quando digo paralisado não é força de expressão, não. Fui dominado por uma terrível sensação de arrependimento. Luciano escorregou a bunda pela cadeira, tentando sumir ou se desintegrar. Cristiano permaneceu de cabeça baixa, fingindo ler alguma coisa no caderno.

“Vai dar merda”, foi a única coisa que pensei. E deu.

(Continua na terça-feira que vem).

* * * * * *

Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Só por hoje

por Celso Vicenzi*

“Só por hoje” é um princípio seguido à risca por alcoólicos anônimos, com resultados comprovados. Mas pode ser um mantra, também, contra qualquer tipo de vício. A ideia, simples, é dar um passo de cada vez. A cada 24 horas, uma batalha vencida. Os movimentos conhecidos por AAA – Associação dos Alcoólicos Anônimos –, surgidos na década de 30, nos Estados Unidos, e que se espalharam pelo mundo, praticam o lema ainda nos dias atuais, com bons resultados.

Sem abdicar dos antigos, novos vícios têm sido incorporados à sociedade, como a compulsão pelo uso de aparelhos celulares. Há outros igualmente perniciosos: o vício por consumir informação de péssima qualidade, inclusive nas redes sociais, e o vício de entreter-se com programas de rádio e tevê que atrofiam a inteligência e a capacidade de análise. Incluem-se nesse rol comentaristas famosos de diferentes mídias.

Talvez, justamente por isso, as redes sociais estejam entulhadas de diálogos e debates de baixíssimo nível, em que os xingamentos e a desinformação sejam moeda corrente. E que, não raro, descambam para um superávit de ódio e um déficit de solidariedade. Graças às redes sociais, descobrimos que aquele cidadão (vale também para o sexo feminino) que parece tão fino e educado, cheio de gentilezas e que aparenta ser adepto de causas nobres, na verdade esconde um troglodita, machista, reacionário, egoísta, homofóbico, desinformado e mal-educado. Não necessariamente nessa ordem.

Por isso, para pôr um pouco de água na fervura e, quem sabe, serenar os ânimos, pensei em resgatar o lema que tem mantido longe do vício tantas pessoas que, no passado, estiveram às portas do inferno. Se não nos levar ao céu, pelo menos poderemos viver e dialogar mais civilizadamente.

Então...

Só por hoje não direi que a política e todos os políticos não prestam e procurarei estudar um pouco mais, sobretudo ciência política, história e sociologia, para tentar entender as engrenagens do poder e, quem sabe, a partir daí, contribuir decisivamente para a criação de políticas públicas que visem ao bem comum, ao bem-estar coletivo.

Só por hoje não xingarei, não usarei palavrões, nem tentarei ganhar no grito um debate que só tem sentido quando houver argumentos e informações fidedignas e sensatas sobre aquilo que se procura demonstrar. Ou seja, vale a pena fazer um esforço para diversificar as fontes e informar-se melhor sobre o que acontece no país e no mundo.

Só por hoje não direi que “é tudo culpa da Dilma”, seja lá o que aconteça no país. Afinal, vivemos numa República Federativa e as principais instâncias de poder são o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, que, por sua vez, operam nas esferas federal, estadual e municipal. Farei um esforço para lembrar que a responsabilidade precisa ser dividida no mínimo com mais 27 governadores, 5.570 prefeitos, 81 senadores, 513 deputados federais, 1.059 deputados estaduais, cerca de 60 mil vereadores e 20 mil juízes espalhados por todo o país. Sem falar em milhares de importantes entidades representativas dos mais diversos setores da sociedade.

Só por hoje não direi que esquerda e direita são “tudo a mesma coisa”. Para esclarecer melhor tudo aquilo que não compreendo muito bem, melhor começar por ler o livro clássico de Norberto Bobbio sobre o tema. Há outros igualmente bons, é só procurar.

Só por hoje não direi que a política e todos os políticos não prestam e procurarei estudar um pouco mais, sobretudo ciência política, história e sociologia, para tentar entender as engrenagens do poder e, quem sabe, a partir daí, contribuir decisivamente para a criação de políticas públicas que visem o bem comum, o bem-estar coletivo.

Só por hoje não direi que a política de cotas (políticas afirmativas) é uma injustiça e vai prejudicar a qualidade do ensino. Primeiro, comprometo-me a ler com mais atenção a história dos negros no Brasil e, na sequência, divulgarei as pesquisas que demonstram que a maioria daqueles que entraram por cotas nas universidades brasileiras tem um desempenho igual ou superior aos que acessaram o ensino superior por outros meios. Só por hoje não vou converter-me à ideia de que problemas de segurança pública devem ser resolvidos à bala. Consultarei a vasta bibliografia sobre o assunto que desmente, categoricamente, a ideia de que a ênfase na repressão e a criação e manutenção de um sistema de segurança baseado na discriminação possam pôr um fim à violência.

Só por hoje evitarei o uso de falas e comportamentos machistas, para que a relação entre duas ou mais pessoas seja sempre baseada na igualdade, na dignidade e no respeito às diferenças. Igualmente repudiarei os estereótipos machistas da publicidade e me posicionarei contra atitudes cotidianas que reforçam esses hábitos.

Só por hoje não reclamarei do engarrafamento no trânsito se estiver sentado em um automóvel. Afinal, concluirei, é a minha presença ali, juntamente com milhares de outros condutores de automóveis, a razão de um trânsito que não anda. Aproveitarei o tráfego parado para refletir sobre a importância de apoiar a construção de ciclovias e dar prioridade ao transporte público de qualidade.

Só por hoje não vou ridicularizar e hostilizar pessoas com preferências sexuais diferentes da minha. Tentarei compreender que o desejo sexual independe de gênero e que não há nada errado nisso, ao contrário da homofobia. Se persistirem os sintomas homofóbicos, procurarei ajuda. Talvez Freud explique.

Só por hoje buscarei novas formas de me manter informado, diferente das fontes habituais, para que não me torne refém de interesses particulares, não raro economicistas, que favorecem grupos minoritários, e que, no entanto, se apresentam como porta-vozes de interesses justos e igualitários.

Só por hoje não acreditarei que recentes investigações sobre ilícitos sejam parâmetro para afirmar que “nunca houve tanta corrupção no país”, sem questionar primeiro por que antes essas investigações eram tão raras e por que, ainda hoje, o mesmo dinheiro que foi distribuído aos principais partidos, por diferentes setores empresariais, é considerado ilegal para uns e absolutamente honesto e sem problema para outros?

Só por hoje entenderei que, num estado laico, como é o caso do Brasil, política e religião não se misturam e credos particulares não podem ser aceitos como objeto de leis e normas para o conjunto da sociedade.

Só por hoje, cada vez que começar uma reclamação contra os altos impostos cobrados pelo governo federal, tentarei lembrar-me de que alguns dos principais impostos que me afetam diretamente, como o ICMS, o IPVA e o ISS são impostos estaduais e que o IPTU é um imposto municipal. E decidirei reclamar, com a mesma intensidade, da sonegação de impostos, que desvia bilhões de reais que fazem falta às políticas públicas do país. De bônus, investigarei por que as camadas mais ricas pagam, proporcionalmente, tão poucos impostos no país, ao contrário do que acontece em nações sempre citadas como exemplo de sociedades desenvolvidas.

Só por hoje evitarei falar e publicar nas redes sociais a primeira ideia que me vem à cabeça, sem refletir, inicialmente, se não estou reproduzindo aquilo que me foi incutido por veículos de comunicação e instituições da sociedade com interesses muito particulares, tendo como resultado um pensamento que não é necessariamente meu, mas orientado para reproduzir conceitos que interessam a outros, sem que eu nunca tenha me dado conta, ainda, disso. Como antídoto, buscarei bons livros e boas fontes de informação e conhecimento, na tentativa de me “deseducar” um pouco e compreender que o mundo e as relações podem ser muito diferentes do que hoje são e que mudar isso não é uma impossibilidade.

Só por hoje, não repetirei ideias-clichês do tipo “no Brasil não tem racismo”, “só é pobre quem não trabalha”, “direitos humanos só servem para proteger marginais”, “na ditadura era tudo melhor, não tinha corrupção”, “negros também têm preconceito contra os brancos”, “o mensalão é o maior escândalo de corrupção da história do país”, “político é tudo ladrão”, “tudo que é público não funciona”, “o mercado regula”, “o mundo está cada vez pior”, “no Brasil nada dá certo”, “bandido bom é bandido morto” etc. etc. Se quero compreender os fenômenos sociais, prometo, vou estudar e ler – ler muito –, para não dizer bobagens inconsistentes.

Só por hoje.

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Celso Vicenzi, jornalista, mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Realidade paralela

por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

E cá estou eu de novo, desviando-me da tão apreciada desocupação, mas é por uma boa causa. Rapidamente constatei que retomar o batidão da vida do escritório pode ser bem menos natural do que parece, apesar das décadas pregressas. O tempo faz o seu trabalho, bem caladinho, e nem precisa de plano estratégico corporativo.

Voltei a ter sobrenome institucional. O “sou de mim mesma”, que adotei quando encerrei essa carreira, em resposta à infalível pergunta “a senhora é de onde?”, que busca definir (e classificar) os seres humanos frequentadores desses ambientes, foi para um rápido intervalo no freezer.

Ressuscitado o crachá, começou a ciranda de reuniões. Logo na primeira, num alto gabinete da república, me senti numa realidade paralela, como se de repente eu entrasse num enredo que não era o meu, num cenário absurdo. Apesar da intensidade saariana do sol de agosto em Brasília, a parede de vidro aonde se encaixam grandes janelas basculantes estava tapada, de cima a baixo, por largas persianas verticais do tipo blackout. Com o sistema de ar condicionado a toda, começou a reunião de pessoas meio azuladas pela iluminação fluorescente, em torno de uma grande mesa, devidamente hierarquizada.

Ouvidos e neurônios destreinados bem que tentaram decifrar o grego falado ali. Em vão. Quando muito, consegui acompanhar o que disseram e anotar o que me soou relevante, pra depois repassar com quem está em dia com o dialeto, aí incluído o emaranhado de siglas, conexões e níveis de responsabilidade. Quando comecei a sentir o que esta breve reencarnação exigirá de mim, fui salva da danação eterna pela voz de Gilberto Gil soprando ao meu ouvido uma triste melodia, que parecia um prelúdio bachiano, um frevo pernambucano, um choro do Pixinguinha.

Inspiradíssima e curiosa canção(*), relato de um sonho em que o autor falava à plateia de um congresso mundial de economia. Enquanto ele, empoderado e convicto, argumentava em favor de mais trabalho, mais esforço, mais controle, apresentando estatísticas e gráficos que demonstravam os maléficos efeitos da teoria do lazer, do descanso e da poesia, um velho levantou-se da cadeira e saiu porta a fora assoviando e levando atrás de si a plateia inteira, até esvaziar o salão e deixar o preletor sozinho com seu portentoso powerpoint. O sonhador acordou assustado, se levantou e foi pra calçada ver o céu azul. Os estudantes e operários que passavam riam e gritavam: viva o índio do Xingu!

Conversando sobre tudo isto, inclusive a minha sensação de realidade paralela, alguém lembrou das promessas que nos fizeram algumas décadas atrás, de que a vida no trabalho se simplificaria muito com a tecnologia digital e as facilidades de comunicação em rede, dando lugar à possibilidade de instalação de uma cultura de ócio criativo, em que todos teríamos tempo para gastar com aquilo que fosse importante para cada um. A realidade - real ou virtual, à escolha do freguês - é bem outra.

(*) “Um sonho” - Gilberto Gil

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 Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
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