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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Povo das águas

por Ana Mendes*

Frio de renguear cusco. Ninguém tá tomando um chimarrão quentinho, pensei, pra aliviar a dor que sentia nas pontas dos dedos às 7h da manhã. Mas o balanço do barco não deixaria, afinal, servir o mate sem derramar tudo. Os dois pescadores que conduzem a embarcação nos olham e riem. O barulho do motor é grande e ninguém fala. A gente tem um certo pavor no rosto, com certeza é disso que eles gozam. A lagoa tá braba, deu mar. É culpa do vento. As duas mãos ocupadas em segurar firme a cada solavanco deixam passar possíveis fotografias do nascer do sol. O Ripper acendeu um cigarro e a Marcella colocou uma capa de chuva na câmera dela. Estamos nos molhando. No frio de julho nos disseram que “se tu cair na água, tu morre. De choque térmico”.

Nesta época do ano, o vento na Lagoa Mirim, no sul do Rio Grande do Sul, pode chegar a 100km/h. Em dias de ventania é prudente esperar em casa e acessar a internet volta e meia pra saber sobre as condições dos próximos dias. A rede com peixe no meio da lagoa pode esperar até 72 horas para ser recolhida, os bichos não apodrecem porque ficam conservados no gelo. No verão não. Há que ir todos os dias conferi-las. Na vila, enquanto esperam passar o vento forte, os pescadores consertam redes e barcos, limpam peixes e fazem outros biscates pra completar a renda. “Agora a gente fica em casa, no verão é comendo sol e vento pra recuperar o tempo perdido”, nos conta um pescador de pele amarelo queimado.

A lagoa é impositiva. Mas a intempéries do tempo são pequenas perto da ação predatória do homem. A cada quinze minutos de viagem de barco é possível ver um novo canal aberto para as lavouras de arroz, ávidas consumidoras de água. São 12 milhões de litros que escoam anualmente para as granjas dos arredores. Por isso, é comum ouvir os pescadores dizendo que atravessam um período de seca, “a lagoa tá baixa, as águas estão paradas, não tem oxigênio pros peixes”. E a traíra, o peixe mais desejado, que antes se reproduzia nos banhados de encosta perdeu o seu lugar de desova.

Na luta diária pela sobrevivência, o pescador artesanal é uma enciclopédia das coisas da terra, dos céus e da água. “Já pensou, o dia em que as mulheres deixarem de ter filhos? Pois vai ter um dia que essa lagoa vai deixar de ter peixe”, nos diz Eder de 35 anos. Ele, assim como a maioria dos pescadores aprendeu a profissão com seu pai. São os hábitos, transmitidos de uma geração para a outra, o embrião da consciência ambiental. A relação com a natureza é fundamental para a manutenção da identidade do pescador, pois na imensidão da maior lagoa de água doce do Brasil eles são a dimensão humana de um complexo sistema ecológico.

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www.facebook.com/fronteiramirim

*Ana Mendes, gaúcha de nascimento, é fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Mantém a coluna Faço Foto.

Um comentário:

Banca dos B-Boyzz disse...

Parabénz Ana, suas fotos são lindas! um bom rengueio de cusco! gostei muito da mão, onde dorme um... pedaço de mato? um inseto exótico? enfim, dorme...

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