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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Uma estrada de Natal a São Paulo


por Nina Madsen   ilustração Marcelo Martins Ferreira*

A história de Seu João foi um desses presentes inesperados que algumas corridas de taxi nos oferecem. Estava em Natal, a caminho do aeroporto para voltar para Brasília. Dirigindo o taxi, um senhor de mais de 60 anos, animado e falante, louco para me contar sua história. Ela foi se desdobrando no decorrer do longo caminho rumo ao novo aeroporto da cidade, noutra cidade – São Gonçalo do Amarante.

Seu João foi dirigindo e me contando que por ali nascera e vivera a infância. Naqueles tempos, a distância era ainda maior, não em chão, senão em horas e dificuldades de percurso. A cidade de sua infância era um vilarejo feito na areia e por ela João caminhava todos os dias, descalço, fazendo o caminho de casa para a escola, da escola para casa. A caminhada, tão longa quanto nosso trajeto de carro até o aeroporto, era ato de resistência e insistência – aquela mesma teimosia da qual já falei por aqui.

Pois Seu João era teimoso nisso de ir à escola. E teimoso também na ideia de fazer crescer seu mundo. De modo que aos dezessete anos, decidiu subir em um ônibus e tentar a vida em São Paulo, terra prometida de então, numa época em que a seca e a falta d’água eram chagas nordestinas exclusivas.

Disse que preparou a marmita na lata de leite e se foi. Logo no início da travessia, Seu João foi reconhecido por um primo distante que não via há muitos anos. Contou da sua corajosa aventura e recebeu do parente o endereço de seu irmão, que morava em São Paulo, e uma foto, para que ele pudesse ser identificado como família.

E seguiu viagem, certo de que em não mais que sete horas estaria na grande cidade. E eis que aquelas sete horas começaram a se multiplicar em dias – três no total – e João, faminto, sem tostão que fosse para enganar o vazio do corpo. Quando chegou a São Paulo, foi em busca da casa do parente. Quem abriu a porta foi a mulher do primo, que nem de longe conhecia Seu João. Mas ao olhar a foto do marido mais novo, deixou entrar o garoto, dando-lhe logo de comer. Ele me contou com detalhes o banquete de pão com manteiga e carne com que apaziguou sua fome. E como em seguida saiu para passear pela cidade, deparando-se com um cartaz de Precisa-se de cobrador, em frente à parada de ônibus. Apresentou-se. O motorista pediu que fizesse umas somas – ele era bom de matemática – e o contratou.

E Seu João assim se instalou em São Paulo. Casou-se, teve filhos e foi fazendo por lá a vida. Quando pôde, voltou para sua terra de origem. Seus filhos, hoje adultos, nunca precisaram caminhar descalços em chão de areia para ir à escola.

Seu João não me contou das desventuras que viveu por lá pelo sudeste. Não me contou das discriminações, do preconceito, do ódio. Não precisou. Eu imaginei mesmo assim.

A história dele era a de sua satisfação e de seu orgulho com a vida vivida. Orgulho que logo virou meu também, orgulho por tabela, orgulho por emoção. De ver gente assim, que acredita na vida em qualquer circunstância. Gente que sabe caminhar seu caminho, que entende que entre Natal e São Paulo é uma terra só (sempre bom lembrar...), toda pronta para ser desbravada. Por mais que nos digam o contrário.

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Nina Madsen escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Integra o colegiado de gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o CFEMEA, e colabora com a Universidade Livre Feminista. Aventura-se pelo avesso do mundo quinzenalmente, na coluna Crônicas do desmundo. *Desmundo aqui faz referência ao romance de Ana Miranda, uma lindeza literária que nos conduz pelas fronteiras entre o real e o onírico. Marcelo Martins Ferreira, ilustrador, design e músico, especial para o texto

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