O Teatro Municipal de Niterói havia organizado um curso para pretendentes a atores. Foi muito bom, pois me fez desistir da coisa toda. Durante o curso ficou evidente minha falta de talento. Do mínimo talento. Na avaliação final, o professor gentilmente explicou que me faltavam: postura no palco, boa dicção, soltura do espírito.
Engraçado que essa passagem da minha vida se encontrava no quarto dos fundos da memória. A faísca que fez ela saltar para a sala de visitas foi o incêndio medonho da Boate Kiss na gaúcha Santa Maria. Esse que matou 235 garotos e garotas na casa dos vinte.
Antes que a leitora ou leitor conclua que estou variando, explico. Uma tarde a caminho do curso no Teatro Municipal dei de cara com uma moça de rosto desfigurado. Na minha lembrança, faltava-lhe o nariz. O resto era uma máscara esculpida pelo fogo. Senti um choque de altos volts.
Ao chegar no Teatro comentei o que havia visto. O professor, o mesmo que revelaria a minha falta de talento, disse que provavelmente a moça seria uma vítima do incêndio do circo, ocorrido nove anos antes. Acrescentou que centenas de pessoas ficaram deformadas pelas queimaduras.
A história do incêndio é esta: 17 de dezembro de 1961. Um domingo de verão escaldante que atraiu perto de três mil pessoas para a matinê do Gran Circo Norte-Americano (que de gringo só tinha o nome). Não precisa dizer que a maioria dos espectadores eram crianças.
Num número de trapézio, de repente, o fogo surgiu debaixo da lona e numa velocidade furiosa subiu, subiu. Pânico! Como não havia saídas de emergência (surpresa?) e a lona era de material altamente inflamável (surpresa?), o Gran Circo se transformou numa ratoeira incandescente.
Total oficial: 503 mortos e centenas de sobreviventes mutilados. A comoção tomou conta do país. Dizem que o então presidente João Goulart, ao visitar as pessoas queimadas no hospital Antonio Pedro, foi para um canto e chorou. Fica a dúvida: foram lágrimas de compaixão ou de vergonha pela incúria de quem devia fiscalizar?
O que sei é que o rosto da moça de Niterói atrapalhou meu sono por muitas noites. Depois, é claro, escapuliu para o baú sem fundo das recordações. Lá ficou por 42 anos. Ressurgiu na manhã do último domingo quando conectei a internet.
Vale a pergunta. Na hora que passar a comoção pelas vítimas de Santa Maria e mais uma vez a memória se recolher, quantos anos essas imagens de horror levarão para despertar novamente? Oxalá que jamais.
fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.
Um comentário:
Eu tinha 6 anos e meio na data do incêndio de Niteroi e jamais me esqueci dele. Imaginava o horror vivido pelas vítimas que se foram e que ficaram. E depois, quando eu soube que tinha sido provocado por um cara (com 2 comparsas) que havia sido dispensado de um trabalho no circo e quis se vingar, fiquei ainda mais chocada.
Acredito que Jango chorou de tristeza e por compaixão, porque quando um fdp egocêntrico, desalmado e descerebrado resolve cometer um crime bárbaro como esse, não há muito como prever/evitar. E sabe-se lá se os assassinos incendiários também não dificultaram a saída dos que lá estavam. O mal foi tão grande que, pelo menos no Brasil, felizmente, nunca foi superado. A vingança é uma m..., mas essa foi uma das mais desgraçadas de que já ouvi falar.
Myriam
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