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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Tragédia de erros

Morei em Niterói aos quatorze anos de idade. A cidade era então capital do estado do Rio de Janeiro. Portanto estamos falando de muito tempo atrás. Precisamente 1970. Pois bem, nessa época eu era apaixonada por teatro. Queria subir no palco de qualquer maneira.

O Teatro Municipal de Niterói havia organizado um curso para pretendentes a atores. Foi muito bom, pois me fez desistir da coisa toda. Durante o curso ficou evidente minha falta de talento. Do mínimo talento. Na avaliação final, o professor gentilmente explicou que me faltavam: postura no palco, boa dicção, soltura do espírito.

Engraçado que essa passagem da minha vida se encontrava no quarto dos fundos da memória. A faísca que fez ela saltar para a sala de visitas foi o incêndio medonho da Boate Kiss na gaúcha Santa Maria. Esse que matou 235 garotos e garotas na casa dos vinte.

Antes que a leitora ou leitor conclua que estou variando, explico. Uma tarde a caminho do curso no Teatro Municipal dei de cara com uma moça de rosto desfigurado. Na minha lembrança, faltava-lhe o nariz. O resto era uma máscara esculpida pelo fogo. Senti um choque de altos volts.

Ao chegar no Teatro comentei o que havia visto. O professor, o mesmo que revelaria a minha falta de talento, disse que provavelmente a moça seria uma vítima do incêndio do circo, ocorrido nove anos antes. Acrescentou que centenas de pessoas ficaram deformadas pelas queimaduras.

A história do incêndio é esta: 17 de dezembro de 1961. Um domingo de verão escaldante que atraiu perto de três mil pessoas para a matinê do Gran Circo Norte-Americano (que de gringo só tinha o nome). Não precisa dizer que a maioria dos espectadores eram crianças.

Num número de trapézio, de repente, o fogo surgiu debaixo da lona e numa velocidade furiosa subiu, subiu. Pânico! Como não havia saídas de emergência (surpresa?) e a lona era de material altamente inflamável (surpresa?), o Gran Circo se transformou numa ratoeira incandescente.

Total oficial: 503 mortos e centenas de sobreviventes mutilados. A comoção tomou conta do país. Dizem que o então presidente João Goulart, ao visitar as pessoas queimadas no hospital Antonio Pedro, foi para um canto e chorou. Fica a dúvida: foram lágrimas de compaixão ou de vergonha pela incúria de quem devia fiscalizar?

O que sei é que o rosto da moça de Niterói atrapalhou meu sono por muitas noites. Depois, é claro, escapuliu para o baú sem fundo das recordações. Lá ficou por 42 anos. Ressurgiu na manhã do último domingo quando conectei a internet.

Vale a pergunta. Na hora que passar a comoção pelas vítimas de Santa Maria e mais uma vez a memória se recolher, quantos anos essas imagens de horror levarão para despertar novamente? Oxalá que jamais.


fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu tinha 6 anos e meio na data do incêndio de Niteroi e jamais me esqueci dele. Imaginava o horror vivido pelas vítimas que se foram e que ficaram. E depois, quando eu soube que tinha sido provocado por um cara (com 2 comparsas) que havia sido dispensado de um trabalho no circo e quis se vingar, fiquei ainda mais chocada.
Acredito que Jango chorou de tristeza e por compaixão, porque quando um fdp egocêntrico, desalmado e descerebrado resolve cometer um crime bárbaro como esse, não há muito como prever/evitar. E sabe-se lá se os assassinos incendiários também não dificultaram a saída dos que lá estavam. O mal foi tão grande que, pelo menos no Brasil, felizmente, nunca foi superado. A vingança é uma m..., mas essa foi uma das mais desgraçadas de que já ouvi falar.
Myriam

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