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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 6 de setembro de 2005

O milênio que não veio

Essa matéria de minha autoria foi publicada no especial Caros Amigos Terra em Transe.
A mídia fez a retrospectiva do último milênio. O novo viria e a Austrália seria o primeiro país da virada. Tudo pronto: pacotes turísticos esgotados, fogos de artifício, multidões nas praças, boates e restaurantes decorados, o megashow seria transmitido pela televisão. A maioria não demonstrava, mas havia o tom de interrogação no ar. Para completar, tínhamos o bug do milênio – o poderoso vírus Y2K que paralisaria todos os computadores do planeta. Para profetas, milenaristas e místicos era certo: não teríamos escapatória.
Nada se viu. Tudo normal. A exemplo da Babilônia e do Egito antigos, nenhuma transformação radical, nada de messias e nem anjo descendo dos céus detonando a fúria divina. À época da prometida virada, o famoso costureiro francês Paco Rabanne previu que em 11 de agosto de 1999 a estação espacial MIR cairia sobre Paris, carregada de ogivas nucleares, e mataria 20 milhões de pessoas: “... eu imploro, fujam” foi o que declarou à revista L´Evénement. Paranóia? O professor da PUC de São Paulo Rafael Rodrigues da Silva, especialista em ciências da religião, provoca: “Imagine se o tsunami de agora tivesse acontecido no ano 2000? Ia ser um auê”. Para ele, o Apocalipse é interpretado de forma errada, já que apokalypsis, do grego, significa revelar: “É nessa perspectiva errada que essa gente associa datas simbólicas, troca de períodos, a calamidades”. O teólogo Leonardo Boff completa: “É expressão da crise da cultura, das certezas e das seguranças. Quando a cultura entra em crise, surgem mitos do fim da espécie ou do fim do mundo”. O caso de Paco Rabanne não é o único. Historicamente, são vários os casos de profetas que tentam adivinhar o futuro. O mais famoso é o francês Michel de Nostre-Dame, o Nostradamus. Numa de suas primeiras profecias, na Itália, disse ao jovem criador de porcos Felice Peretti: “Numa ocasião como esta, não posso deixar de me curvar diante de Sua Santidade”. Em 1585 – dezenove anos após a morte de Nostradamus –, Peretti seria eleito papa com o nome de Sisto V.
Também se atribui a ele a previsão dos ataques ao World Trade Center, em 2001: “No ano de 1999 e sete meses, do céu virá um poderoso rei do terror para reviver o grande rei de Angolmois”. Porém, a referência pode ser a Francisco I, que governava a França na época do profeta. O rei foi duque de Angoulême antes de subir ao trono. Sem contar que, de 1999 a 2001, são 26 meses de diferença. Creia-se ou não, as Centúrias de Nostradamus prevêem o futuro do mundo até 3767. São Malaquias foi outro profeta – religioso e reformista – falecido em 1148 que profetizara em frases curtas os papas da história. João Paulo II, por exemplo, foi descrito com a frase “De labori solis”, que significa “do trabalho do sol”.A explicação é que João Paulo é de Cracóvia, onde nasceu Copérnico, primeiro a explicar a órbita solar da Terra. Sobre o último papa a ser eleito no século 21, a previsão assusta: “No papado de um novo Pedro, a Igreja sofrerá uma derradeira perseguição, Roma será destruída e chegará o Juízo Final”.

Milenarismo histórico
O milenarismo é a crença de que Cristo estabeleceria sobre a Terra, após a segunda vinda, seu reino de mil anos (o milênio). “Todos eles (os justos) reviveram e reinaram com Cristo mil anos; os demais (mortos) não reviveram até que se passaram mil anos”. (Apocalipse 20,4-5.) É daí, desse trecho do livro do Apocalipse, do apóstolo João, a origem do termo milenarismo. A confusão entre milenarismo e apocalipse vem de longa data. A mais comum relaciona o milenarismo a catástrofes transformadoras que trariam o fim dos tempos e a renovação posterior, quando, na verdade, a análise é mais profunda e envolve um histórico político-social.
O livro Mil Anos de Felicidade: Uma História do Paraíso, do francês Jean Delumeau, explica o milenarismo na cultura ocidental desde os tempos pré-cristãos até hoje. Segundo ele, “há em geral uma ligação entre febres milenaristas e grupos sociais em crise. Os atores dos movimentos escatológicos são freqüentemente marginalizados, desenraizados ou colonizados que aspiram a um mundo de igualdade e de comunidade”. Leonardo Boff mantém o raciocínio: “Todas essas manifestações devem ser entendidas como expressões imaginárias de uma situação de crise generalizada que demanda sua superação não imaginária ou simbólica, mas real, sócio-histórica”.
As primeiras interpretações são judaico-cristãs, lá do século 12, quando o monge Joaquim de Fiore pregava a volta de Cristo nos moldes atuais. Outros povos também dão conta de milenarismos históricos. Por exemplo, os sumérios (3.000 a.C.), com a mitologia dos “deuses da ordem” e os “deuses da destruição”. Ou os incas e a concepção de “regresso do inca”, na qual a América seria unificada espiritualmente. Conhecedores de astronomia e baseados no calendário maia, tinham até a data do regresso: “21 de dezembro de 2012”, ou seja, daqui a sete anos.
O Brasil não fugiu à regra. Temos Canudos (1898) e a Guerra do Contestado (1916). Em Canudos, no sertão da Bahia, o líder Antônio Conselheiro se considerava um emissário divino. Seus seguidores eram trabalhadores pobres e contra a República. O “Império do Belo Monte” (região onde habitavam) seria uma nova Canaã depois do fim. A repressão militar fez a estatística: 4.000 mortes. No Contestado, sul do Brasil, não foi diferente. Um ex-soldado, Miguel Lucena de Boaventura, reuniu gente em torno da crença dos “Quatro Santos” do monge João Maria – morto em conflito e venerado na região. Com base nisso, pregavam a volta do Rei Encoberto, dom Sebastião. Fundaram a Monarquia Sul-Brasileira, mas a resistência foi contida no mesmo ano, 1916.

Radicalismo da fé?
O pontapé inicial foi de João e bastou para aparecerem inúmeros grupos milenaristas. Segundo o instituto americano Millenium Watch, que pesquisa o assunto, só nos Estados Unidos, em 1999, existiam mais de 1.200 profetas auto-aclamados. Já a Itália teria mais de quatrocentos grupos, entre evangélicos, satânicos, espíritas, mágicos e ufólogos, revelou o Grupo de Busca e Informação sobre Seitas (Gris). Uns esperam o messias e outros já têm o seu próprio. De certo, essas novas tendências utilizam elementos de religiões mais antigas e delas constroem a própria concepção. Para citar as mais conhecidas: Nova Acrópole, Testemunhas de Jeová, Mórmons, Igreja da Unificação ou seita Moon, Rosa-cruzes e outras. As mais radicais apelam para o suicídio como forma de martírio. Texas, 1993, região de Waco. O ex-líder da seita Branch Davidian (Ramo Davidiano), David Koresh, pregou a seus seguidores que deveriam morrer para renascer das cinzas quando chegasse o fim. O resultado: oitenta pessoas carbonizadas. Em 1997, Califórnia, a seita Heavens Gate levou 39 de seus seguidores ao suicídio. Acreditavam que na cauda do cometa Hale Bopp vinha uma espaçonave para salvá-los. O líder, Marshall Applewhite, acreditou que o suicídio era etapa necessária para a salvação “O suicídio deles mudou o mundo?”, pergunta o professor Rafael Rodrigues, da PUC. Ele explica que essa suposta restauração através da morte se deve à marca religiosa forte, já que nesses ambientes a teologia que prevalece é a da resistência pelo martírio: “O martirizado não morre, sai vitorioso. É o Daniel na cova dos leões e seus três amigos que saem da fornalha sem um arranhão. Isso passa como historinha popular que alimenta a mística de resistência”.
Tirar vantagem da situação foi um bom negócio para Karen Anderson, de Dallas, EUA, que tem um livro e vídeos direcionados para donas de casa – são vídeos explicativos de como lidar com o fim do mundo. E Mário da Silva Brito escreveu: “Você já pensou que o destino da humanidade pode estar na dependência de uma dose a mais de uísque no bucho de um piloto atômico norte-americano ou de vodca no do russo encarregado de disparar foguetes balísticos intercontinentais?”

Thiago Domenici é jornalista

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