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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O barbeiro machão

por Carlos Conte*

Esperava sentado numa cadeira escolar, quieto no meu canto, enquanto o Barbeiro (vou chamá-lo assim) cortava o cabelo de um homem velho, narigudo e careca – aqui na Vila Romana é um tipo clássico – até que, me olhando pelo reflexo no espelho, o Barbeiro ordenou:

– Não lê essa revista aí, meu! Tenho coisa melhor. Claro: pra quem gosta de mulher!

Sem largar a tesoura, abriu uma gaveta e tirou dali uma pilha de revistas de mulher pelada.

– Lá no armário tem mais! – jogou as revistas no meu colo. – Depois me fala qual é a melhor. Minha preferida é a Patrícia Jordane. Esse Neymar é um cara de sorte, você não acha?...

Patrícia Jordane, ex-affair do Neymar. Essa não conhecia. A edição era recente mas o exemplar estava tão surrado que não pude evitar um princípio de nojo. Muitos pares de mãos masculinas já tinham virado aquelas páginas, só espero que ninguém tenha lido no banheiro (sabemos que isso é quase impossível).

Talvez fosse apenas sua maneira de receber bem um cliente, pondo à sua disposição toda pornografia disponível a fim de agradá-lo. Mas fico com a hipótese de que ele queria me provar alguma coisa, marcar posição, com sua exibição testosterônica exagerada e sem sentido, além de muito constrangedora. Acho que na cabeça dele funciona assim: pelo fato de tocar um salão de beleza masculino – afinal, barbearia não deixa de ser isto: um salão de beleza masculino, sendo barbearia só o nome “macho” para distingui-lo dos salões femininos –, o Barbeiro precisava provar aos clientes que não jogava no “outro time”. Atitudes como a dele, afobadas, atrapalhadas, escondem na verdade um medo terrível. Medo de passar por “cabeleireiro”.

Ao mesmo tempo em que provava sua “macheza”, ele me testava. Notei que o Barbeiro, entre uma tesourada e outra, ficava me olhando pelo espelho enquanto eu folheava a revista. Dependendo da minha reação diante da Playboy, ficaria provado se eu jogava ou não no “time” dele.

– E aí, aprovou?

– Nada mal...

Quando perguntada pelo repórter se vale tudo entre quatro paredes (já que no futebol existem regras bem definidas), a Maria Chuteira não titubeou: “com certeza!”.

O problema dessas revistas é que as fotos são ruins e cheias de photoshop. Um pouco de olhar crítico já faz você perder o tesão. Tem que entrar no jogo, abstrair. Tipo futebol. Se você começa a pensar um pouco, já era. Por isso que na adolescência eu gostava tanto de revista de sacanagem. Hoje não sinto a menor emoção. E a Playboy já foi uma revista melhor.

– Viram a polêmica da Viviane Araújo? Lembrei disso agora porque o cara que aparece no vídeo é careca...

O cliente e eu nos entreolhamos pelo espelho.

– Não viram? Não acredito! Dá uma olhada nisso aqui... – e me empurrou o iPhone.

Eram imagens de uma câmera de vigilância, dessas que nos filmam pra lá e pra cá o dia todo. Um carro estaciona numa rua deserta, um homem e uma mulher saem do veículo, abrem a porta traseira, ela se debruça no banco de trás, ele fica em pé atrás dela, e então, sem desconfiar de nada, começam a fazer sexo ali mesmo. Tem uns 2 minutos. O homem é calvo. A mulher, de fato, é bem parecida com a garota do Fantástico 94. Nunca vou me esquecer dela apagando a lousa na Escolinha do prof. Raimundo.

Claro que no dia seguinte ela negou tudo. No Instagram, descolou um álibi: no mesmo dia e no mesmo horário, cumpria compromisso com uma escola de samba. Abri a edição do mês seguinte e comecei a ler uma entrevista com o deputado Jean Wyllys, em que ele conta da sua experiência com maconha, diz que já ficou com meninas e admite que é um cara feio. Já pensou se o Barbeiro descobre que eu estou lendo a entrevista do Jean Wyllys? Ia ser divertido. Corrijo: ia ser pavoroso. Mas nunca, nunca mesmo, se deve arrumar encrenca com um barbeiro. Caso você brigue com um, nunca mais ponha os pés lá. Quem está com a navalha é ele, não você. O pescoço é o seu, não o dele. Enfim, essas coisas do dia a dia às quais precisamos estar sempre atentos. E com garçom é a mesma coisa.

Chegou minha vez. O de sempre: diminuir o volume e fazer um corte “normal” (seja lá o que isso signifique), mas não tem muito o que inventar na minha vasta cabeleira.

– Gostou da Viviane? – ele insistiu.

– Gostei.

– Lembra quando o professor Raimundo chamava ela pra apagar a lousa?

Só queria dizer a ele que não precisava forçar tanto a barra para provar sua heterossexualidade. “Já entendi, cara. Você gosta de mulher, parabéns! Eu também. Mas isso agora não importa. Corta meu cabelo e dá um tempo!”.

Claro que não foi isso que eu disse. Melhor não contrariar quem está com a navalha na mão. Afinal, o pescoço é o meu, não o dele.

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.

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