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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O encantador de palavras

por Celso Vicenzi*

Constam nos registros que Manoel Wenceslau Leite de Barros, que se assinava Manoel de Barros, faleceu no dia 13 de novembro de 2014, aos 97 anos. Posto que tudo é finito e um dia completa o seu ciclo, isso é o que menos importa. O essencial é que semeou palavras que brotam e rebrotam a cada nova leitura. Sabia que a vida tem hora marcada para terminar. E não perdeu tempo. No documentário “Só dez por cento é mentira”, lançado por Pedro Cezar em 2008, o poeta, que construiu uma obra exuberante sobre as “grandezas do ínfimo”, resumiu, pleno de consciência: “A gente nasce, cresce, amadurece, envelhece, morre. Pra não morrer, tem que amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste”.

Ciente de que “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios”, estabeleceu para si uma outra rotina. “Não aguento ser apenas um sujeito que abre / portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que / compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, / que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. / Perdoai. / Mas eu preciso ser Outros. / Eu penso renovar o homem usando borboletas.”

Poetas, escritores, músicos, artistas de modo geral são alguns dos que procuram “amarrar o tempo no poste”. Dão algum sentido à vida para que não seja apenas a soma de esforços pela sobrevivência – e, em muitos casos, a busca desenfreada da opulência, com apetites insaciáveis que destroem a natureza, sem que tanto consumo e riqueza sejam capazes de preencher os buracos da alma e dar um pouco de plenitude ao tempo que vai do nascimento à morte.

Manoel de Barros, desde cedo, foi enfeitiçado pelo verbo que “delira”. E se tornou “encantador de palavras”. Fez desse feitiço o seu ofício, não sem antes esbarrar com todas as exigências de uma vida que pede muito mais utilidades do que poesias “sobre nada”. Ele só “queria crescer pra passarinho” e essa sabedoria o levou a roçar o infinito e devolver o ínfimo grão de pó à poeira interestelar.

Foi o poeta que iluminou “o silêncio das coisas anônimas”, desconstruiu estruturas para se aproximar da “infância da língua” com o intuito de “causar distúrbios no idioma”. Tanta originalidade e beleza acabou por criar um “idioleto manoelês archaico”. Uma nova forma de “desver o mundo”. É uma poesia que se faz de “inutensílios”, coisas, objetos e resíduos desprezados no cotidiano, tudo “o que pode ser carregado como papel pelo vento”. E tudo o que está na natureza: aves, árvores, rãs, lesmas, musgo, limo, água, barro, bichos e gentes, de todos os tipos, principalmente como Bernardo, dono de um acervo que incluía “um martelo de pregar água” e um “guindaste de levantar vento”.

A fábrica de palavras de Manoel de Barros vai do chão ao céu e contempla tudo que se move e respira, e presta atenção – mais que isso, louvação! – às miudezas de seres e objetos que compõem a paisagem dos dias e noites de uma vida a contemplar o infinito ao seu redor.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

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