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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 19 de março de 2014

Férias à lá Chuck Norris


por Tomás Chiaverini     ilustração Ligia Morresi 

Os doze recém chegados estão exaustos, suados e famintos. Vieram de lugares tão diversos como Nova Iorque, São Paulo e Berlin e enfrentaram uma estafante jornada Comandos em Ação por terra, céu e água para chegar àquela longínqua paragem amazônica. Passa um pouco das quatro da tarde e a sensação térmica se assemelha à de uma sauna a vapor. Ainda assim eles juntam forças e ensaiam sorrisos de simpatia enquanto o rapaz de bermuda cáqui e camiseta verde se utiliza de um inglês tropical para apresentar as espartanas regras do estabelecimento.

O desjejum é às seis da manhã, o almoço ao meio dia e o jantar às sete da noite. Sorrisos persistem. O rapaz explica que, apesar de a pousada ser flutuante, não é possível deixar a área dos bangalôs a não ser de barco, e sempre com o pessoal local. E que, a despeito do calor, é expressamente proibido nadar no rio, infestado de jacarés e piranhas.

Nesse momento, um homenzarrão loiro, de pele muito branca, levanta a mão e, visivelmente decepcionado, pergunta se realmente aquela água toda ficará ali à disposição e ele não poderá sequer refrescar os pés. O rapaz de camiseta verde conta de uma funcionária que limpava peixes na varanda da cozinha, foi atacada por um jacaré e por pouco não perdeu a perna. Depois dá prosseguimento às instruções que, apesar do tom amável, não deixam de remeter ao discurso de um carcereiro recepcionando presidiários novatos.

A água do rio alimenta os chuveiros e as torneiras mas não é potável. Cada bangalô conta com o auxilio luxuoso de duas garrafas térmicas para matar a sede e escovar os dentes. A energia elétrica é solar e, apesar do calor apocalíptico, escassa. Há pequenos ventiladores elétricos ao lado das camas, mas eles só funcionam por três horas diárias. Nesse momento, os recém-chegados, que ainda não se conhecem entre si, trocam olhares de cumplicidade, desconfiando que aquilo pode ser um trote de boas vindas. Não é.

O rapaz de camiseta verde informa que haverá uma hora de descanso antes de saírem para a primeira trilha. Os sorrisos prosseguem mas agora, além da simpatia forçada, denotam um discreto desespero. A maioria permanecerá ali por quatro noites. Alguns ficarão confinados por sete longos dias.

Sem mais a fazer, eles pingam de suor e arrastam malas e corpos cansados até seus bangalôs. São quartos amplos de madeira, cobertos por telhas cor de tijolo feitas de garrafas pet recicladas. A estrutura, interligada por passarelas de madeira, oscila de leve sob o peso dos hóspedes. Em cada cômodo há duas camas de viúva com cortinado, duas mesinhas pequenas e uma cadeira. As janelas são forradas por telas contra mosquitos. Ao lado da cama há dois ventiladores de Kombi cujo diâmetro não ultrapassa os ridículos vinte centímetros.

Há frestas consideráveis entre as tábuas do assoalho e é possível ver a água amarronzada do rio lá embaixo. Também é possível ouvir peixes pulando ou, no caso do pirarucu, subindo à superfície para respirar. Famílias de morcegos se mexem e guincham entre o forro e as telhas. De tempos em tempos um urro profundo e assustador vem lá de longe na floresta. Bandos de macacos guariba disputando território.

Os hóspedes largam as malas e se olham ampliando aquele sorriso de desespero, tentando não pensar que, pelos cerca de R$ 600 por dia para o casal, poderiam pagar um confortável e asséptico resort em Cancun ou um cruzeiro pelo nordeste com direito a show do Rei Roberto e sem limites para caipirinhas de frutas vermelhas. Acalma-se pensando que a Pousada Uacari fica dentro da reserva Mamirauá, e que o dinheiro arrecadado, em vez de engordar o caixa da CVC, será dividido entre os habitantes locais que gerenciam o lugar.

Na caminhada, o guia explica que aquele será o único dia em que o grupo sairá junto, porque na maioria das trilhas não são permitidas mais do que quatro pessoas. O ocaso urge e o passeio é rápido. Uma hora sob uma mata aberta, onde é possível ver a marca do rio no ano anterior, mais de cinco metros acima do chão. Na época da cheia, toda a região da reserva alaga, e os passeios são feitos apenas de barco.

Um pouco adiante o grupo avista um bando de macacos de cheiro e, ainda sem dimensionar o tamanho do problema, se depara com alguns exemplares da mais perversa criatura já saída das pranchetas do Criador: mosquitos. O guia, um caboclo baixinho que tem jeito de criança apesar do rosto enrugado, sorri enquanto o grupo se estapeia. O macaco de cheiro, explica, tem esse nome porque urina nas mãos e passa no pêlo pra espantar os mosquitos. Até o fim da estadia os doze integrantes do grupo, sem exceção, aventariam a hipótese de fazer o mesmo.

Na manhã seguinte, após o café, dividem-se em atividades diversas que basicamente se resumem em ver a floresta, com devoção especial a seus habitantes. Aranhas, besouros, escorpiões, grilos, peixes, répteis, preguiças e os reis do pedaço: nossos coleguinhas primatas. Macacos prego, macacos de cheiro e, claro, o Uacari branco de cara vermelha que só existe ali e que motivou a criação da reserva. Em passeios à pé, de barco a motor ou em canoinhas a remo, vêm bando de biguás decolando do meio do rio para pousar numa árvore ao pôr-do-sol. Vêm araras, tucanos, ciganas e falcões.

Depois da segunda ou terceira noite estão razoavelmente acostumados ao enxame de mosquitos que, qual a oitava praga do Egito, torna o ar denso e agressivo. Eles picam sem dó, por cima das roupas encharcadas de repelentes, mas, a essa altura todos já sabem, por experiência própria, que não se pode morrer devido a picadas de pernilongos (os guias garantem que a região é livre de Malária). Também já sabem que os morcegos, que voam à centenas, como se estivessem no quintal de Bruce Wayne, não apenas são inofensivos como alimentam-se de mosquitos.

Misteriosamente passam a ver algo de bucólico nos enormes jacarés boiando diante da sacada dos quartos, com aquela calma de rocha pré-histórica, e sabem que aquele silvo fantasmagórico que sobe pelo assoalho nas madrugadas nada mais é do que um suspiro dos companheiros répteis. O calor continua, mas já é algo natural, e os ventiladorezinhos de Kombi se constituem num artigo de raro luxo e deleite.

No último dia, visitam o lago Mamirauá, num passeio catártico que reúne todos os animais acrescidos da presença mítica dos botos cor de rosa, que corcoveiam na água de um lado para o outro, exibidos feito atletas de nado sincronizado. Voltam para a pousada já à noite, vendo as estrelas refletidas na água escura do rio.

Quando colocam as malas no barco no dia seguinte estão queimados de sol, cobertos de picadas, arranhados de espinhos e ligeiramente mais magros devido às caminhadas diárias e à dieta minimalista de arroz, feijão e peixe. Um hóspede sueco leva o troféu de um dedo enfaixado, depois de ser abocanhado por uma piranha durante uma pescaria. O paulista alto e branco ainda considera a hipótese de dar uma nadada com os jacarés, mas se contém. Nenhum deles trocaria a experiência por uma temporada em Cancun ou por um cruzeiro com o Rei Roberto.

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Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha. Ilustração de Ligia Morresi, especial para o texto

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