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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Os gatos de minha vida


por Thiago Domenici

 Para Mentor

Alvinegros, muita coisa diferencia a Piaf e o Zola. Nela, o nariz cor de rosa ganhou um leve “ponto final” preto. Nele, o nariz e o queixo, ambos brancos, ganharam uma cobertura preta sutil e meio triangular. Nela, o pelo é preto escuro e brilha. Nele, se esconde por baixo do preto uma tonalidade rajada num cinza grafite que só se vê com boa luz. Não são de sangue, mas são irmãos. E se amam. Nesse um ano de convivência, nem à distância é possível confundir a espreguiçada elegante da Piaf e o olhar de expectativa do Zola. O ritual da lambida de um e a faceirice da outra ao se jogar ao chão de barriga para cima ao identificar alguém que gosta é espetáculo à parte.

A adoção dos dois tem sido uma vivência das mais apaixonantes. Eu, que sempre gostei de bichos, tive algumas experiências dolorosas antes da emancipação a vida adulta. Emancipação significa ser o responsável, de fato, pelo bem estar do animal. Ao voltar no tempo lembro, por exemplo, de dois poodles (Snoopy e Baby) da minha infância que amei. Certo dia, sem mais, foram embora por conta de uma mudança de casa. Foi repentino e chorei muito.

Antes, tive outro cachorro vira-lata que nem Cesar Millan, o encantador de cães, daria jeito tão rapidamente. Eu, criança em flor, não sabia lidar e tive medo. E a cachorra se foi a desfrutar outro lar. Surgiria um gato siamês no horizonte. Era o Don Juan da rua Cantiga do Desencontro, onde morei parte da minha infância. Além dos amores e desamores felinos, o siamês arrumou inimigos zumanos na vizinhança, de quem roubava comida da panela. Era um boêmio e chegava sempre estropiado de suas quentes noitadas. Era livre. E um dia não voltou mais.

Antes de Piaf e Zola chegarem a bordo da nave, convivi com outro siamês: o Mentor. Além dele, ainda convivo com as persas Nina – carinhosamente chamada de Pipoca – e Fumaça. Tem ainda o Sombra, um vira-lata como a Piaf e o Zola, mas que de tão grande e peludo é confundido com a raça Maine Coon (aquela dos maiores gatos do mundo). Pois são quatro gatos e um cachorro além da Piaf e do Zola. Uma cachorra que tem certeza que é gato, no caso: a Lisa, uma pastora de shetland encantadora que merece um texto só para ela.

Todos são da família materna da Natalia (e dela também, é claro). Por assim dizer: da minha sogra e seu marido, além do meu cunhado. Nina lembra um algodão doce ou um pedaço de nuvem bem branquinho. Tem uma espécie de síndrome de down felina. A Fumaça, uma pequena maravilha, é de um cinza tenaz, desconfiada, mas amorosa, dona de um corpo lânguido que flutua em vez de andar. De olhos amarelo-ouro e expressão blasé, o Sombra, que é todo preto, não esconde sua verve gato de pelúcia dengoso.

E o Mentor? Ah, o Mentor. Logo nos primeiros meses de casa nova fora confundido com uma fêmea. Era macho, oras! E de olhos firmes e atentos. Um siamês voluptuoso e dono de uma inteligência difícil de explicar. Certa vez, conta Natalia, pegou uma caneta com uma patinha só e sentou com as duas patas traseiras. “Lembro que brinquei e cheguei a oferecer um papel pra ele”. Além disso, suas artes foram inúmeras: ficou preso no forro da cama-box, no edredon, com uma patinha presa na janela, no esgoto/fossa do banheiro, no telhado da casa do zelador. E sempre que alguém ia trocar uma lâmpada ele subia na escada e ficava estendendo a patinha como se fosse ajudar. Diz minha sogra que ele pegou uma mosca com uma pata só. É, sem dúvida, o felino mais perspicaz e curioso que conheci. Era dono de si mesmo, independente e orgulhoso. Resume bem o que o historiador Frances Taine escreveu: “conheci muitos pensadores e muitos gatos, mas a sabedoria dos gatos é infinitamente superior.”

Piaf e Zola vieram da UIPA – União Internacional Protetora dos Animais. Zola chegou adulto e um tanto traumatizado. É um gato especial, sem dúvida. Seu miado é sua marca registrada: um cantarolar, quase um mantra, que varia de entonação conforme o seu desejo. Piaf, harmoniosa de ritmo próprio, dormia em meio a centenas de outros quando foi escolhida. “É calminha”, disse Natalia. De fato, é tranquila, mas com períodos de turbulência. Já Zola nos escolheu, estava decidido: olhou bem fundo nos nossos olhos e cantarolou: “me leva daqui, vai...”.

A adaptação nos primeiros meses foi complexa. Zola, por exemplo, se escondeu debaixo do armário da cozinha e depois no escritório. Foi preciso conquistar sua confiança,  coisa que veio umas 24h depois de sua chegada. Hoje, dorme diariamente ao pé da cama, acorda com minha esposa, toma “café” junto e volta a dormir. É um ritual, uma rotina inabalável.

Piaf, que adaptou-se bem a mudança de ambiente, foi acometida por uma espécie de gripe de gatos e sofreu com medicação pesada e rações especiais. Hoje, é a lady da casa e adora subir nas cadeiras, sofás (além de destruí-los) e se esfregar em nossas cabeças. Nesse um ano, nossa casa se encheu de alegria e nosso prazer é tão bom quanto o ronronar deles.


Thiago Domenici
, jornalista, coordenador e editor do NR. Ilustração: quadro do artista Aldemir Martins.

3 comentários:

Anônimo disse...

Crônica sensível, amorosa, terna.
O texto flui fácil, com graça, parecido com o andar da Fumaça.
Parabéns ao autor e a todos os patudos do mundo.

Moraes disse...

Estou com uma enorme dúvida:aplaudo ou choro de emoção...

Thiago Domenici disse...

Moraes e Fernando, muitíssimo obrigado.

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