por Ricardo Viel*
Itabira, novembro de 1929
João:
meu amigo, gostaria tanto que esta carta levasse boas notícias, mas não, não será assim. Carrega um pedido de desculpas e uma triste nota de falecimento. Começo pelo segundo, que é mais urgente. Ontem, dia 20 de novembro deste ano de 1929, o nosso Joaquim deu cabo da vida. Antes de se enforcar em uma mangueira, deixou a típica carta de suicida na qual nos exime a todos de qualquer culpa, e que nos faz sentir ainda mais culpados.
Todo suicídio é evitável, e o caso do nosso amigo é só mais uma prova disso. Desde a tua partida para os Estados Unidos (já deve fazer uns oito anos anos ou mais), nosso grupo foi se desfazendo. Você foi tentar a vida do outro lado do continente (por certo, diga-me como vão as coisas, as notícias que chegam cá é que vive-se uma grande crise, espero que estejas bem), Raimundo mudou-se para a Bahia, o Carlos instalou-se na capital, e eu cada vez via menos o Joaquim. Sinto-me culpado, eu era quem estava por perto, e não percebi – ou não me importei – que ele estava passando por um período complicado. Havia rompido com a Maria, mas esse não era o principal problema, eu creio; ele nunca a amou. O grande baque foi com a Lili, que o desprezou e jogou muito baixo. Um dia, no Bar da Lúcia, o Joaquim me contou que a Lili certa vez lhe disse que enquanto ele estivesse com a Maria nunca nada aconteceria entre eles. Ou seja, deixou nas entrelinhas que se ficasse solteiro as coisas poderiam funcionar. Você não acompanhou isso, mas foi um escândalo na cidade quando o Joaquim resolveu romper o noivado com a coitada da Maria. Cidade pequena, todo mundo ficou sabendo, e muita gente desconfiou de que havia uma culpada. E então o Joaquim esperou passar umas semanas, deixou a poeira assentar, e foi todo perfumado e com ramo de flor na mão para conquistar Liliane Dutra Buaventura. Recebeu foi um tremendo não no meio do peito. Aquilo lhe doeu mais do que fosse uma navalhada nas carnes. Lembro-me de encontra-lo na praça umas quantas vezes perdido, só, e sem dizer coisa com coisa. Por conta da bebida, perdeu o emprego na companhia. Cheguei a vê-lo dormindo na rua num domingo antes da missa. E eu, como estava bem, feliz, casado e cheio de planos, evitava cada vez mais o contato.
Uma das últimas vezes que o vi foi no velório do Raimundo. Espero que tenham lhe contado... Foi terrível, pobre homem. Pobre e azarado, porque no trem ia muita gente, mas só morreu ele. Demoraram quase um mês para trazer o corpo dos confins da Bahia. A família endividou-se, precisou pedir dinheiro a todos, e o caixão veio lacrado. Sabe-se lá se o corpo que havia ali era o do Raimundo. Nem sei se ali havia um corpo.
O Joaquim apareceu bem vestido, mesmo terno que hoje o enterraram, cabelo penteado, barba feita, mas era impossível disfarçar a miséria de vida que levava. Contou-me que tinha planos de abrir um negócio, que precisava de um capital. Antecipei-me, e disse que se ele soubesse como conseguir que por favor me dissesse porque eu também necessitava dinheiro para trocar minhas máquinas. Dali fomos tomar umas cachaças, e falarmos de ti. E da Maria, que parece ser que não sai de casa e disse que não quer saber de homem mais na vida. E logo surgiu o tema Lili. Joaquim disse que o que mais lhe doía era que cada vez que a via ela estava mais bonita e encantadora, enquanto ele era aquele farrapo sem trabalho e sem sonhos.
João, depois da terceira dose ele começou a chorar, e falou que não valia a pena viver, que o bom mesmo era dar um fim. Disse assim, João, “dar um fim nas coisas”, e eu me fiz de desentendido, olhei o relógio, disse que era tarde, paguei a conta (faço questão de pagar, eu disse com o peito cheio), dei um tapa nas costas dele, e fui embora achando-me um homem bom, um sujeito que havia vencido na vida, não como o Joaquim.
Isso faz uns seis meses. Foi a última vez que nos falamos. E ontem ele cumpriu com o que tinha dito. Deve ter sofrido um bocado o nosso amigo. Lembro-me tanto dele menino, de todos nós, das nossas farras, das nossas conversas e dos nossos projetos. Nada saiu como planejávamos, verdade?
No velório, já entrada a noite, apareceu a Lili. Ia acompanhada de um tal de João Pinto, parece ser que é filho do Fernandes da Carniçaria, você conhece? Abraçou a dona Dolores, cumprimentou-me com um cordial e falso inclinar de cabeça, e foi-se embora com cara de triunfo tomada da mão daquele homem que eu nunca tinha visto na vida. E fiquei a pensar que se ela tivesse escolhido o Joaquim, eu estaria agora era escrevendo uma carta para contar da festa de casamento, ou do batizado da criança que acabara de nascer. Mas não, não é assim, e a Lili não conseguia disfarçar a alegria mórbida de estar ali, de estar acompanhada, de ter optado pelo filho do Fernandes e não pelo Joaquim, que não era filho de ninguém e tampouco será o pai de alguém.
Só não foi pior porque por lá apareceu o Carlos, que há anos se foi para a capital e pouco aparece por aqui. Contou-me que a faculdade de farmácia não lhe serviu para grandes coisas, que o seu negócio é mesmo escrever, e que está metido em um projeto de um livro de poesia. Disse que prepara surpresas. É o mesmo de sempre: elegante, discreto, e genial. Tenho certo que se falará muito dele no futuro.
Pois era isso, meu caro amigo. O pedido de desculpas é pelo sumiço. É inadmissível que nos percamos dessa maneira. Mande notícias, de preferência boas, eu tratarei de fazer o mesmo. Um abraço forte,
Edu Coutinho
Pós-escrito: e de Teresa, sabe algo?
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Ricardo Viel, jornalista, atualmente em Lisboa, Portugal. Ilustração: ROBERT BEATTY SURREAL-SCAPES
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