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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Arquipélagos


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Uma das constatações sobre a vida nos nossos dias é que já não podemos viver em clãs, como até poucas décadas atrás. As famílias eram numerosas e várias gerações conviviam, senão na mesma casa, na mesma cidade ou em lugares próximos. A convivência era intensa. Traduzia-se na quantidade de comida que se preparava e de pessoas à mesa, no compartilhamento do único aparelho de rádio ou de televisão da casa, nos quartos quase sempre divididos por vários irmãos, avós e tios, e nos muitos conflitos que tudo isto acarretava, e que nunca se resolviam, pois eram parte do pacote da vida “tribal”. Quanta violência e abusos aconteciam, sem que se pensasse em buscar uma solução para algo visto com naturalidade, apesar do sofrimento causado.

Por outro lado, exigíamos muito menos, pois a individualidade era um luxo desconhecido. Quem expressasse o desejo de ficar ou, pior, viver sozinho, era visto como um bicho esquisito, cheio de manias. Afastar-se era uma atitude altamente recriminada, e muitas vezes significava um rompimento definitivo. Lembro-me de como eu achava curioso um personagem de novela ou filme dizer “por favor, vá embora, quero ficar sozinho”, porque eu nunca tinha visto acontecer na vida real.

A urbanização galopante trouxe o encolhimento das famílias e o conceito de privacidade, acho que nesta ordem. As famílias se tornaram arquipélagos, e se aprofundou a ideia da individualidade, de que cada um cuida da própria vida, para mal e para bem. Daí surgiram a psicanálise e o estudo das emoções e das relações humanas, que virou tudo pelo avesso.

Apesar da herança cultural e social embutida na palavra “família” e em suas continentais implicações, os arquipélagos me parecem uma conformação muito interessante. Como já não é possível – e, de minha parte, nem mesmo desejável – manter a convivência obsessiva, o controle sobre as decisões e escolhas dos familiares e a vigilância sobre suas vidas, a figura do arquipélago pode nos ajudar a encontrar novas formas de convivência e contato e, quem sabe, novas emoções, profundas, nutritivas e gratificantes, assim como novos motivos para a convivência.

Ao pensar assim, convém considerar, também, que as ilhas de um arquipélago podem ser muito diferentes entre si, com mais ou menos vegetação, outras espécies de animais nativos, variados grupos populacionais, climas, incidência do sol ou da chuva, sabores, cores e odores. Mas sempre estarão ali, pois ilhas não se soltam no mar. Ficarão ali mesmo, naquele arquipélago, por muitos milhões de anos, um tempo eterno para os seres vivos.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

3 comentários:

Carlos Augusto Medeiros disse...

Lembro também, que no início do processo de urbanização as casas possuíam uma área ampla e uma menor e restrita. A ampla era o espaço de convivência pública: sala de estar, sala de jantar, salão de festas etc.; a restrita eram os aposentos íntimos. Com o tempo, os espaços se inverteram: o restrito ganhou mais área e a convivência pública encolheu. A lógica passou a ser a do "menor contato possível" traduzida na arquitetura das casas que nada mais fizeram que reproduzir a arquitetura do convívio social. Sinto falta daqueles intermináveis conflitos familiares, mas carregados da certeza de que no outro dia todos estariam ali novamente, juntos. Abraços, Carlos.

Anônimo disse...

QUERO SER A MENOR ILHA DO SEU ARQUIPÉLAGO, CERCADA POR DEZENAS DE OUTRA ILHAS COM QUE POSSA DIVIDIR MINHAS IDÉIAS ,QUE PRECISAM DE ATUALIZAÇÃO. ASSIM, AO LONGO DO TEMPO SABEREI APRECIAR MELHOR AS INFORMAÇÕES DESSA EXCELENTE CRÔNICA.
BEIJOS DA MUMMY DIRCIM

Anônimo disse...

Um retrato muito bem urdido de como fomos e de como estamos, em relação à nossa teia familiar.
A ilustração faz um casamento perfeito com o texto.
Terê

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