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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Perseguição


por Carlos Conte   ilustração Leandro Lobo*

Enquanto ela descia, eu subia a Av. Angélica. Pena que foi dessa maneira, ao acaso, no meio da cidade. Apenas uma desconhecida. Vejo hoje uma pessoa na rua e provavelmente não voltarei a vê-la.

Mas foi impossível ignorá-la. Sim, tinha cruzado meu caminho, enquanto eu subia e ela descia a Av. Angélica: o encontro de dois roteiros, um que leva ao centro, outro que leva ao bairro. Sei que faz parte da rotina cruzar com meninas interessantes, totalmente desconhecidas. E ninguém é louco de sair se apresentando, ainda que seja a mais bonita de todas as meninas.

Como andava rápido! Paulistana demais. Calça jeans apertada, marcando-lhe as coxas, cintura, bunda. Caminhava com o tronco firme, mas a cintura rebolando. Seus braços, como se atendessem a uma rígida disciplina, não se afastavam muito do corpo; apenas se movimentavam para frente e para trás. Pulseira discreta no pulso direito, mais o relógio. Cabelos pretos, cacheados, até a cintura, contrastando com a pele branca, sob a blusinha de alça vermelha (e fiquei imaginando o ritmo dos seus seios, já que a observava de costas). Estava apaixonado.

Atravessou a rua, entrou na Sergipe. Quem sabe uma vestibulanda... Ou talvez procurasse pelo número de um laboratório, uma clínica médica. Impassível, atravessou a rua imersa nas sombras gigantescas das árvores, caminhou mais alguns metros e parou no sinal. Assim ficamos lado a lado, esperando o farol fechar.

Atravessamos e descemos a Consolação. Juntos. Já não pensava nas minhas obrigações. Meus compromissos do dia foram subjugados pela loucura. Pelo desejo. Queria me aproximar o suficiente para sentir o seu perfume. Queria sussurrar alguma coisa no seu ouvido.

Entrou na padaria. Eu entrei também, e nos sentamos juntos ao balcão. Ela pediu café com leite. Eu pedi um expresso e peguei um livro na mochila, para disfarçar. Acho que ela me olhou. Pela primeira vez eu pensei, um pouco humilhado, que tinha me desviado do caminho de casa há 20 minutos, em plena segunda-feira, por causa de um rabo de saia. Mas levantei a cabeça e continuei minha perseguição, assim que ela pagou a conta e se levantou.

Viramos na Rua Augusta, atravessamos na faixa, atingimos a outra calçada. Aonde me levava? Ela me guiava, eu consentia. Nossa relação era essa.

Até que parou em frente a um sobrado. Sacou da bolsa o telefone celular, depois um batom e um pente de plástico. Virou-se na minha direção: “Oi, gato!”, como se nos conhecêssemos. Pelo que entendi, deveria esperar meia hora. Em meia hora ela estaria pronta. “Sabe que fui com a sua cara, gato? Gosto de homem corajoso... Você faz isso sempre?”. “Isso o quê?”. “Seguir as meninas na rua... Não que eu tenha me incomodado”. Respondi que não, que raramente fazia isso.

O porteiro a cumprimentou com um beijo no rosto e um abraço efusivo. “São 10 reais pra entrar”, ele me disse, “e enquanto a menina se apronta você pode ir tomando uma cerveja, uma caipirinha...”. Esse lero conhecido dos que experimentam descer a rua Augusta até o fim. Entrei.

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Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração de Leandro Lobo, convidado especial para o texto

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