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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Sampa

por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*

Atendo alguém ao celular enquanto espero o meu ônibus, sentada no banco da parada, quando se aproxima uma pessoa visivelmente maltratada pelo dia-a-dia nas ruas de São Paulo. Um homem, com a barba crescida, vestido com o que um dia foi uma saia estampada, agora bem encardida, uma camiseta regata vários números maior que ele e chinelos. Fala alto, coisas desconexas, com gestual e entonação de bicha bagaceira, cheira mal de longe, faltam-lhe alguns dentes. Senta-se ao meu lado, falando sem parar. Um ônibus se aproxima, ele se encaminha para embarcar, o motorista fecha a porta e arranca.

Ele grita sua indignação e senta de novo ao meu lado. Continuo ao celular. Uma senhora, com pinta de moradora do bairro, chega e me pede uma informação. Peço-lhe que espere um minuto, por favor, ela insiste. Interrompo a conversa para atendê-la, e ela me diz: na verdade, eu só queria te advertir que não fique falando ao celular aqui, é muito perigoso; mantenha-o bem guardado na bolsa. Retomo a conversa.

Jantando com a amiga que me hospeda, ela me conta uma história fascinante. Na primeira metade do século vinte, viveu nesta cidade uma milionária, única herdeira de grande fortuna em dinheiro e propriedades, com hábitos refinados e atitudes avançadas. Ainda bem jovem, dirigia automóvel e tirava fotografias, para espanto das pessoas de boa família. A certa altura, começou a apresentar sinais de doença mental. Uma de suas casas foi, então, transformada numa espécie de manicômio exclusivo, por ordem do seu tutor legal. Não tendo deixado herdeiros, seu patrimônio foi entregue à Universidade de São Paulo, que recentemente realizou um primoroso trabalho de restauração dessa casa e instalou nela os escritórios da faculdade de arquitetura.

Fui visitar a bela Casa da Dona Yayá, que é também um espaço cultural. Os detalhes são um tanto inquietantes, como as estreitas janelas pivotadas, que impediam a moradora de escapulir por uma delas, as aberturas nas paredes por onde lhe serviam a comida, e o solarium, ladeado por muros tão altos, que só mesmo voando ela poderia ultrapassá-los. Ali ela viveu confinada até morrer, prisioneira em sua própria casa. Como muitas outras, antes e depois dela, com mais ou menos recursos, mas igualmente submetidas às determinações de quem as considera sua propriedade.

Os drinks e a conversa fiada saboreados numa deliciosa espelunca da Praça Roosevelt, seguidos do macarrão com vinho tinto na cantina do Bixiga, proporcionam aquela indispesável conexão com as melhores coisas de São Paulo. Num súbito ataque de nostalgia e adolescência, peço "Dio, comme ti amo" ao cantor que se oferece à mesa, acompanhado por violão e acordeon. Tenho quinze anos de novo.

Ínfimas amostras das infinitas possibilidades paulistanas. Obrigada, São Caetano Velloso, por ter forjado um nome para todas elas.

* * * * * * 

 Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

2 comentários:

Anônimo disse...

Alguma coisa acontece no meu coração quando piso as ruas e olho os céus sem teto desta pauliceia desvairada! E viva Sampa! Bjs, Olga Ronchi

Anônimo disse...

QUE FALTA FAZ A FAMOSA GAROA DE SÃO PAULO ! SÃO PAULO, TERRA BOA, SÃO PAULO DA GAROA VIVE NO MEU CORAÇÃO.
MUMMY DIRCIM

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