Nas comemorações dos 100 anos de Billie Holiday, obra que conta a história da canção “Strange Fruit” vai além: trata do poema, de seus significados e de sua intérprete, sem deixar de lado o contexto racista e agressivo dos EUA dos anos 1930.
por
Pergentino Mendes de Almeida
Strange fruit – Billie Holiday e a biografia de uma canção
Autor David Margolick
Tradução José Rubens Siqueira
Editora Cosac Naify
Páginas 142
Ano 2012
Em 1939, o Café Society na Greenwich Village era uma boate frequentada por esquerdistas e comunistas, o único lugar em Nova York onde negros e brancos conviviam em paz. A conversa está animada, com o movimento dos garçons entre as mesas embalado por música. Inesperadamente, apagam-se as luzes. Escuridão total. Cessa o movimento. Param as conversas. Onde estão os garçons? Que diabos está acontecendo? Silêncio.
Um facho de luz rompe a escuridão e destaca a figura de Billie Holiday, uma negra de 23 anos, luminosa, sobre fundo negro. Ela começa a cantar:
“As árvores sulistas dão uma fruta estranha.
Sangue nas folhas, sangue nas raízes.
Corpos negros balançam à brisa sulista, frutas esquisitas penduradas nos álamos.
Uma cena pastoril do sul galante: olhos esbugalhados, boca torta,um suave aroma de magnólia, fresco e doce; e, de repente, o cheiro de carne queimada.
Eis uma fruta para os urubus beliscarem, para a chuva enrugar, para o vento secar, para apodrecer ao sol, para a árvore deixar cair, eis uma estranha, amarga colheita.”
A música para. Um silêncio pesado reina sobre a plateia chocada. Como Billie mais tarde descreveu, foram aqueles momentos, silenciosos e tensos, os de maior ansiedade que experimentara. “Então, uma pessoa começou a aplaudir nervosamente...” E, a seguir, todos se juntam num aplauso geral, ainda meio hesitante.
A partir daquele primeiro dia em que Billie Holiday se arriscou a cantar em público “Strange fruit”, os frequentadores do Café Society pediam-lhe sempre que a cantasse. Depois de “Strange fruit”, a orquestra atacava sem pausa um fox-trot dançável, para desfazer o ambiente pesado que a música deixava. Mas Billie não cantava mais nada depois de “Strange fruit”. Não cedia um bis, nem ficava no palco para receber aplausos. Era sempre um encerramento brusco, absoluto, de uma asserção firme que não admitia respostas e dispensava comentários.
Reconhecida como um clássico, considerada uma das dez músicas que realmente mudaram o mundo, “Strange fruit” marcou a imagem de Billie – mas sempre foi pouco divulgada nas rádios. Continua, até hoje, mais ou menos desconhecida das massas. Transformou-se num sucesso estranho, que as emissoras tinham medo de divulgar e que os empresários pediam que ela não cantasse nos seus shows. Mas o público pedia. Levou anos até que uma gravadora tivesse peito de prensar um disco. Venderam tudo em pouco tempo.
A tal ponto a música associou-se a Billie que ela mesma haveria de alimentar o mito de que era de sua autoria. Num certo sentido, isso é verdadeiro: ela introjetou-a como sua. Identificou-se com a canção aos olhos do público. Transformou-a no hino da luta pelos direitos humanos e pelas igualdades social e racial. Causava reações extremas. Havia os que se comoviam até chorar. Outros se levantavam indignados. E havia aqueles que Billie chamava de crackers, truculentos que protestavam, às vezes com violência, e ameaçavam-na de agressão. Mas Billie sabia se defender. Certa vez, atacou um cracker com uma cadeira e continuou a agredi-lo depois que ele ficou prostrado no chão. Os seguranças da boate tiveram de arrancá-la de cima do freguês, que foi sumariamente arrastado até a rua, sem pedidos de desculpas.
Afinal, a vida havia lhe ensinado a defender-se de homens agressivos. Criada sem pais e internada num orfanato para crianças pobres, foi estuprada aos dez anos e aos 13 tornou-se prostituta. Morreu aos 44 anos, em 1959, viciada em álcool e heroína. Não foi um fim excepcional para cantores e músicos dessa época.
O livro Strange fruit, com o subtítulo “Billie Holiday e a biografia de uma canção” (Cosac Naify, 2012), “é exatamente o que o nome diz”, destaca André Midani na apresentação da obra. “É a biografia de uma canção que ninguém pode ignorar. Racismo, crueldade, perversões podem participar da natureza de seres humanos normais, cristãos devotos e de boa família. Podem contaminar americanos, arianos, negros, judeus, palestinos e até brasileiros. O livro fala pouco e diz muito sobre isso, versando apenas sobre uma poesia, uma canção e uma intérprete. E é uma obra-prima de David Margolick, indispensável para os apreciadores de blues, de jazz, da História, da cultura americana e da nossa.” A tradução brasileira do livro de Margolick, escrito há 12 anos nos EUA, trata, sobretudo, de um tema tabu na época, o racismo e relata minuciosamente os linchamentos de negros por brancos americanos, nos Estados do sul do país.
O autor da letra e música de “Strange fruit”, Abel Meeropol, foi um comunista judeu e branco, um professor universitário poeta, que compunha músicas. Como compositor, tornou-se mais conhecido sob o pseudônimo Lewis Allan. Publicou a letra de “Strange fruit” num periódico marxista, The New Masses, e depois a musicou. Levou-a ao Café Society e pediu que Billie Holiday a cantasse. Billie topou o desafio. Mas Meeropol não esperava o sucesso que obteve. Nem sequer se deu ao trabalho de registrar a autoria da canção. “Strange fruit” era uma excentricidade, fora da estética musical da época e completamente contraditória com a imagem romântica de Billie Holiday.
Meeropol e sua esposa, Anne, foram os pais adotivos dos filhos de Julius e Ethel Rosenberg, acusados de espionagem a favor da União Soviética, depois que estes foram executados. O casal Rosenberg foi condenado e eletrocutado ao fim de um processo que é até hoje discutido. Ninguém põe em dúvida, porém, a sua sinceridade e idealismo, assim com as de Abel e Anne Meeropol. Quando o casal Rosenberg foi executado, seus filhos, Michael e Robert, ainda eram pequenos. Criados com desvelo, adotaram seu novo nome de família sem deixar de lado o afeto filial pelos pais biológicos.
De acordo com Robert (Rosenberg) Meeropol, a subsistência da família era garantida principalmente pelos direitos autorais de Lewis Allan (ou Abel Meeropol) sobre os sucessos “Strange fruit”, “The house I live in” (sucesso de Frank Sinatra e Josh White, o pianista do Café Society) e “Apples, peach and cherries” (sucesso de Peggy Lee). Meeropol nasceu em 1903 e morreu em 1986, na Casa de Repouso Judia em Longmeadow, Massachusetts. Muitos fãs negros de “Strange fruit” não imaginavam que ela tivesse sido composta por um branco judeu nova-iorquino.
Como se vê, “Strange fruit” sempre foi um enigma: como pode uma poesia transformar-se numa canção de sucesso, deprimente e triste, que fala de morte e crueldade? O contexto político -social dos EUA no período em que a canção foi escrita dá uma pista. Num cartão-postal, reproduzido no livro, “dois corpos de negros pendem de uma ponte sobre um rio. Do alto da ponte, um grupo de brancos contempla-os e comemora. Este cartão já é datado dos anos 30. Da mesma década em que Billie Holiday cantou 'Strange fruit' pela primeira vez, em Greenwich Village [...] A fotografia era uma novidade e a troca de cartões-postais, uma prática moderna, própria de gente refinada. Os linchamentos eram anunciados com antecedência e convidavam-se fotógrafos para documentá-los. Não havia o que esconder nem do que se arrepender. Pelo contrário, ainda que ilegal, essa prática era tolerada e mesmo estimulada pelas autoridades locais. O objetivo era justamente a sua divulgação. Não que houvesse malevolência nisso, afinal os brancos não queriam exterminar os negros. A intenção era apenas assustá-los, para que eles ficassem no seu lugar”.
* Resenha publicada na edição 65 de
Retrato do Brasil, dezembro de 2012